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Categoria: Ateísmo

5 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

Ser-se como se é

Há sempre razões para cada um ser como é e não de outro modo. Nada acontece por acaso. O próprio acaso, por si só, é o resultado da soma de “vários acasos”. 

O “acaso” é como a tinta na paleta de um pintor quando consegue a cor verde misturando azul com amarelo. Mas o verde assim conseguido não é um acaso fortuito… é sempre o resultado lógico de reacções físicas, químicas e matemáticas. Se cada cor tivesse menos ou mais quantidade, já o verde conseguido (o “acaso” que daí resultava) seria outro!…

As razões de sermos como somos, encontram-se no tempo imediatamente anterior a nós e repousam no fundo da arca da nossa vida. Se remexermos nela encontramo-las. Depois delas vêm outras como, por exemplo: realidades geográficas, sociais e antropológicas do meio que nos envolve (ou envolveu), ensinamentos familiares, oportunidades de vida, percursos académicos e profissionais, interesses particulares e mera curiosidade, são algumas delas, que nos formatam e às quais não se consegue fugir… acrescentando-se a inevitável e primordial transmissão genética que faz parte do processo. 

Todos estes elementos são responsáveis pela construção e formatação intelectual de cada um. Ninguém nasce crente ou ateu, do mesmo modo que não se nasce a falar ou a saber ler. A linguagem aprende-se no seio familiar desde o berço… e os credos religiosos também, na consequência directa das características do cérebro que possuímos e nos impele à busca do conhecimento… o qual tem um número imenso de portas… cabe-nos a escolha das que vamos abrir!… 

No meu caso particular, sou filho de pai nascido em 1912, quando a República Portuguesa ensaiava os primeiros passos (a escolha do tema para esta prosa surgiu-me a 5 de Outubro, na passagem do 113º aniversário da vitória dos republicanos sobre a Monarquia). Talvez por isso cresceu republicano e anticlerical, que era a característica da Primeira República. Muito provavelmente o anticlericalismo também seria uma característica filosófica do seu pai, já que o nosso pai é, na maioria das vezes, a primeira fonte onde vamos beber o conhecimento e cujas atitudes copiamos. No caso, o meu avô era operário da indústria de panificação, um meio profissional onde cabia o descontentamento pela política praticada e pela ditadura religiosa acoplada à Monarquia, cuja filosofia ainda pairava no espírito Português no início da República. 

A minha mãe (de apelido Pereira; logo, Cristã-Nova), nascida em 1923, pertencia a uma família católica. Crente, não tinha o hábito de ir à missa. Só o fazia quando entendia e podia, e não tenho memória de alguma vez a ter visto a caminho da igreja se não houvesse funeral, casamento ou baptizado (excepção feita após enviuvar, quando passou a assistir a missas com alguma regularidade). Por esta amostra se vê que o culto religioso não era coisa normal lá em casa. Nem normal, nem anormal… simplesmente… não era!

Familiarmente ensinaram-me o respeito devido aos outros e à Natureza. Cumprimentar e sorrir, falar com educação, não derrubar árvores ou arbustos nem pisar flores dos canteiros e jardins, e não maltratar animais, foram os primeiros ensinamentos caseiros de que tenho memória, dos quais nunca fez parte a Religião na sua vertente seguidista de um credo… foi porta que nunca abri.

Agradeço aos meus pais o facto de não me terem lavado a cabeça com banhos de religiosidade deísta, permitindo-me ter pensamento próprio para raciocinar de acordo com a lógica natural do Ser Humano que sou, e de me orientarem no sentido cívico da postura cidadã e ética laica universal. 

Muito obrigado, meus queridos pais.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

2 de Fevereiro, 2024 Onofre Varela

Falar “contra” ou falar “sobre”, ou, “Todos diferentes, todos iguais”

Ter pensamento próprio e não calar, é tarefa que pode causar dissabores a quem possui tal característica. Há quem não tenha sido “desenhado” para o exercício do pensamento crítico e por isso não reconheça o valor que tem falar livremente, liberto das amarras da ditadura da tradição.

As tradições, sendo respeitáveis, também podem (e devem) ser questionadas. No lote das tradições incluem-se as que são defendidas por associações religiosas e seitas aparentadas, na obediência a um credo comportamental. Há quem não conheça outra liberdade para além da “liberdade de obedecer”, que é sempre cómoda por se enquadrar nas explicações oficiais internas do grupo a que pertence… mas não mostra outros caminhos, afirmando que há “apenas um caminho”; aquele que o seu grupo indica!…

Recentemente (23 de Setembro) Miguel Esteves Cardoso, na sua crónica diária do jornal Público, com o título “Ainda ontem”, dissertou “Contra a obediência”, congratulando-se pelo facto de, no Reino Unido, a obediência dos jovens estar em queda livre desde há um quarto de século. Mencionou o lema dos movimentos hippy dos anos 60 e Punks dos anos 70 que, numa tradução livre e jocosa, referiu como “recusa-te a fazer aquilo que os mais velhos querem que tu faças”, na tentativa de ferir de morte o culto à obediência cega.

Obedecer cegamente é o que, desde sempre e até hoje, os ditadores esperam dos seus povos, quer a ditadura seja de pensamento político ou religioso. Os chefes da nossa tribo (de todas as tribos) anseiam por nos controlar o pensamento. A desobediência é a solução que, partindo das franjas sociais mais livres e progressistas (habitualmente as mais jovens) constrói a modernidade (ou fornece matéria para a sua construção) mostrando que o “nosso” pensamento não é o “deles”. Quem usa o saudável raciocínio próprio, recusando bitolas padronizadas pelas tradições e usadas nas “histórias oficiais”, corre sempre vários riscos. Um deles é colarem-lhe o rótulo (já tão velho de usado) que o acusa de “falar contra” determinada matéria, quando, na verdade, apenas “fala sobre” ela!

Se os meus textos “sobre a Religião” são interpretados como sendo “contra a Religião”… será uma leitura abusiva por ser pouco atenta, não coincidindo com a intenção que a produziu… embora possa coincidir com o espírito religioso do leitor que, preconceituosamente, me julga “contra” a sua fé, e não como um “crítico” da sua fé (a diferença é abissal!).

Neste esquema retórico, o termo “contra” é usado por quem defende determinado pensamento, tendo dificuldade em aceitar discurso diverso do seu. Há até quem, na superlatividade do seu radicalismo, reaja com violência perante ideias diferentes das suas. Tal é o caso dos extremistas islâmicos, muitos dos quais são, apenas, assassinos que nunca passam dessa triste e desumanizada figura.

Dizer algo diferente do discurso habitual dos crentes que repetem o que ouviram nos bancos das madrassas, das catequeses, das juventudes partidárias e de outras organizações aparentadas que lhes moldaram o pensamento… é “falar contra”!…

No desporto acontece o mesmo fenómeno indiciador da menor atenção sobre o outro, substituindo a frase “jogar com”, pela tão usada e podre de agressiva “jogar contra”! É uma atitude que demonstra, desde logo, falta de desportivismo, sobrando-lhe em demasia o pensamento tacanho do confronto, tantas vezes destruidor do saudável espírito desportista.

Na minha experiência de abordar o espírito religioso indagando sobre ele, tenho aprendido com a fé dos outros… e da boca de um amigo religioso já ouvi, sobre o meu discurso: “curioso!… Nunca tinha pensado no tema sob esse ponto de vista!…”. Isto pode querer dizer que o melhor das relações humanas é a aprendizagem mútua… e para isso é preciso ouvir o outro, entender o que ele diz e raciocinar sobre o que ouviu.

Estar com o outro (em vez de “contra ele”), mantendo conversa sobre assuntos em que, naturalmente, cada um tem entendimento diverso, é a aprendizagem da vida em sociedade saudável, onde é imprescindível a existência do respeito mútuo pela diferença que há na igualdade (Todos Diferentes, Todos Iguais).

Se assim não for… eclode a guerra que os melhores de nós repudiam e querem evitar… sendo certo que nas cadeiras do poder das sociedades que nos governam, muito raramente estão sentados os melhores de nós!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

26 de Janeiro, 2024 Onofre Varela

Estórias de Jesus

Em Novembro de 2012 foi lançado no mercado um livro biografando Jesus Cristo (o terceiro de uma colecção de três), da autoria de Ratzinger, então Papa Bento XVI. Convenhamos que Jesus Cristo, enquanto personagem histórico, é dono de uma biografia difícil, se não mesmo impossível, de escrever. Já na versão de Homem-Deus, as coisas estão facilitadas… por aí podemos dizer dele os maiores dislates que, se não ofenderem os crentes e roçarem as estórias contadas pelos evangelistas e propagadas pela Igreja durante dois milénios, não as contrariando, essas narrativas ficcionadas serão tomadas como a mais alva pureza das realidades.

Uma biografia tem de partir de um ponto de vista histórico. Não há outro modo de a fazer que não seja relatar os episódios que fizeram a vida real de uma pessoa concreta. Se a obra ultrapassa esta baliza, deixa de se denominar biografia, para passar a ser ficção, romance, ensaio, romance histórico, biografia ficcionada ou… expressão de fé… que é aquilo que a obra de Ratzinger é: a expressão subjectiva da sua fé em Jesus Cristo. E só assim deve ser entendida.

Enaltecer a subjectividade é o que faz o partidarismo, seja político ou religioso. Tomar partido por algo ou por alguém, é colocar-se ao lado de uma corrente de pensamento, por muito que a racionalidade e a História possam garantir o erro dessa corrente. As visões contrárias à natureza das coisas nunca são avalizadas pelas disciplinas científicas que as estudam… por isso a História não garante que seja verdadeiro o teor da maioria dos livros biografando Jesus, os quais não contêm História, mas sim estória (conto popular ficcional… como é a Estória da Carochinha!).

A afirmação de que Deus existe tem por base a crença, não passando de uma convicção. A ideia de Deus permite várias interpretações e discussões, desde logo a sua estranha natureza, até à necessidade que dele muitos sentem e dependem, em consequência dos banhos de religiosidade de que foram vítimas na infância.

Todos nós temos direito às nossas convicções, e a defesa de uma convicção só pode ser rotulada de acto desonesto se o seu defensor tiver consciência da “inverdade” que apregoa; e só é vigarice se, conscientemente, ele quiser comprar a concordância do outro, sabendo que lhe está a vender gato por lebre. Quando o defensor de uma ideia está convicto daquilo que defende, presumindo estar com a verdade, ele é honesto nas suas afirmações e deve ser respeitado na “sua verdade”.

Por isso aceito a subjectividade de Ratzinger, embora não concorde com ele. E todos nós sabemos, pela História, que através dos tempos o Ser Humano conseguiu a audácia de criar fundamentos intelectuais que lhe permitiram direccionar o seu entendimento para a interpretação naturalista, distanciando-se dos mitos que as religiões defendem como verdade e dos quais se alimentam.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

24 de Janeiro, 2024 Onofre Varela

Da ciência e da religião.

Falar de Ciência e de Religião é como falar de chá e de vinho. Não são a mesma coisa… mas ambos contêm água!

O leitor mais avisado, seja religioso, agnóstico ou ateu, que não detenha um pensamento fundamentalista e pretenda ser coerente com as coisas que ao mundo e ao Homem pertencem, saberá que desde a origem da Humanidade surgiram tantas religiões como idiomas; umas cem mil… e todas elas sempre foram afirmadas como únicas e verdadeiras.

E também poderá apontar atitudes de crença como sendo indutoras de calma e de paz que lhe mostram a “divina graça da criação”… a mesma calma e a mesma paz que o cientista encontra no final do estudo que lhe mostra a realidade das coisas naturais, baseado na verdade científica dispensando credos religiosos.

Credos que construiram uma espécie de “estrada do conhecimento” que nos serviu de percurso na construção da História do Pensamento, permitindo-nos o “entendimento” da criação do mundo e da criação do Homem modelado em barro, mais o paraíso e o próprio conceito da vida para além da morte como negação do natural fim que recusamos contrapondo-lhe a ideia que criamos da “vida eterna” baseados na fé.

O raciocínio que nos mostra a mesma água contida no chá e no vinho… é que faz a diferença!…

O sabor final de cada uma das bebidas, mais os efeitos que cada uma produz em nós, são tão diversos, como diversos são o saber e o crer. Mas não é absolutamente necessário abandonar um para seguirmos no caminho da vida carregando, somente, o outro. Na nossa mala de viagem cabem os dois.

O chá não substitui o vinho, tal como o sal não substitui o açúcar… mas há um lugar próprio nas prateleiras da nossa cozinha (e da nossa mente) para ambos… o que não devemos é misturá-los!…

Se há religiosos para quem a narrativa do Génesis não ultrapassa o mito que é (não misturando sabores), esses constituem uma minoria… não integram a massa compacta de crentes que se arrastam em lugares ditos sagrados e que aceitam a Bíblia como História, confundindo os frascos na prateleira.

Afirmar a crença como substituto do conhecimento científico, pode conduzir a caminhos tão escuros como os que levaram Donald Trump à presidência dos EUA… país onde, numa sondagem do jornal “USA Today”, há uma vintena de anos, se garantia que 60% dos norte-americanos reivindicavam o ensino do Génesis bíblico nas escolas, em substituição do Evolucionismo de Charles Darwin!

Quando se junta a crença à crise de intelecto, procura-se apoio nas santinhas de altar e na mesa pé-de-galo da bruxa e da cartomante-adivinhadora das televisões, desacreditando a informação científica. O raciocínio religioso de uma grande parte de nós é muito primitivo… e isso é coisa que me inquieta, tanto mais quando penso nas palavras do físico e prémio Nobel Steven Weinberg: “Com ou sem religião sempre haverá gente boa fazendo coisas boas e gente má fazendo coisas más, mas para que gente boa faça coisas más faz falta a Religião”.

No nosso percurso pela estrada da vida, o desencontro das ideias de Ciência e de Religião já levou a alguns confrontos, mas hoje essas atitudes bélicas não têm razão de ser. As duas disciplinas pertencem a diferentes campeonatos… nunca jogam juntas nem disputam a mesma taça. Devemos arrumar cada uma no seu devido lugar nas prateleiras do nosso Conhecimento.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

21 de Janeiro, 2024 Onofre Varela

SOBRE JESUS CRISTO

Acabamos de viver mais uma quadra festiva integrando o Natal e a Passagem de Ano, duas datas emblemáticas para as culturas ocidentais. A primeira delas, considerada a Festa da Família, transporta uma carga religiosa conotando o dia 25 de Dezembro com o nascimento de Jesus Cristo (JC). 

O que se sabe de JC é o que os Evangelhos nos contam. Referências históricas que confirmem os relatos dos evangelistas Marcos, Mateus, Lucas e João, não existem.

Perante a falta de fontes históricas credíveis, podemos considerar a existência de “dois Jesus Cristos”: o JC histórico e o JC mitológico. Do Jesus histórico pouco se sabe… e do Jesus mitológico há bibliotecas imensas sobre ele, que o afirmam Deus e que operou milagres, o último dos quais foi a sua própria ressurreição e a subida ao céu!

A vida real do Jesus Cristo histórico será bem mais prosaica, mais terra-a-terra e muito mais humana, do que a fórmula mitológica com que a contam as várias Igrejas inspiradas nos Evangelhos que foram escritos algumas dezenas de anos depois de JC morrer, e não passam de narrativas na fórmula “alguém disse que ouviu dizer”.

Jesus Cristo foi um rebelde que ascendeu à condição de personagem histórica com maior repercussão na História da Humanidade nos últimos dois mil anos, chegando a condicionar a vida, a Arte, a Cultura e os costumes de milhões de pessoas. Aceite como Deus, em seu nome se mataram inocentes, e muitos dos seus seguidores perderam a vida na propagação da sua fé.

Jesus Cristo é, incontornavelmente, a figura mais poderosa na história da civilização ocidental. Jesus nasceu e viveu no local e no tempo certos.

Se tivesse vivido na Alemanha nazi, teria sido morto nos fornos crematórios de Hitler, anonimamente, entre milhares de outros judeus. 

Se tivesse nascido na União Soviética de José Staline, teria sido enviado para a Sibéria e fuzilado entre tantos infortunados filhos da mãe Rússia. 

Se tivesse nascido na América Latina das ditaduras protegidas pelos EUA, teria sido um guerrilheiro camarada de Che Guevara, em luta contra o imperialismo americano (que o adora), e seria assassinado numa emboscada montada pela CIA numa selva da Bolívia. 

Se tivesse crescido na China de Deng Xiaoping, enfrentaria o exército e os tanques na praça Tiananmen, seria preso e rapidamente julgado por um Pilatos de olhos em bico que o condenaria à morte. A bala que lhe perfuraria a nuca teria de ser obrigatoriamente paga pelo seu pai carpinteiro. 

Se fosse português desempregado no Portugal governado por Passos Coelho e Paulo Portas, e presidido por Cavaco Silva, manifestava-se ruidosamente contra as atitudes do governo e o silêncio do presidente, e os responsáveis pelo seu desemprego apontavam-lhe a fronteira para que emigrasse. 

E se vivesse hoje no seu próprio território natal, a Palestina, era contestatário dos colonatos judeus e seria assassinado pela fúria criminosa dos soldados de Netanyahu na vaga de ódio que promove o genocídio do seu Povo Palestino… com a aprovação dos EUA, que o adoram!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

21 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo!

Neste texto, Daniel Ramalho explica as motivações que levaram a que diminuísse o tempo dedicado a escrever sobre ateísmo.

Escrevi sobre ateísmo com frequência e de forma disseminada durante mais de metade da minha vida, de tal modo que muitos dos meus conhecidos (em particular nas redes sociais) pouco mais conhecem de mim para além dessa faceta. Há relativamente pouco tempo, e quase de repente, parei, o que levou a que alguns desses conhecidos me perguntassem porquê. A esses, aqui deixo a minha resposta.

Não foi por ter passado a achar que é tempo perdido argumentar com fanáticos que me calei, nem por ter deixado de considerar o tema importante ou interessante, nem por me ter convertido. Apenas cheguei à conclusão de que o ateísmo está finalmente completo. Quero com isto dizer que chegámos a um ponto em que não já existe argumento teológico algum que não tenha um contra-argumento demolidor. Por não ser um sistema de crenças independente, o ateísmo precisa da vitalidade da religião para sobreviver, e há já muito tempo que não surge um argumento teológico com pretensão de originalidade que dê aos ateus alguma coisa que fazer. Houve tentativas como a do Plantinga, mas tão exangues e fáceis de rebater que podem ser consideradas nados-mortos. A religião chegou ao limite do que pode dizer em sua defesa, e já não pode haver dúvida razoável que faça pender o fiel da razão a seu favor.

O ateísmo chegou à sua última página. Nada do que possa ser dito daqui em diante em resposta aos velhos argumentos teológicos mesmo dos mais sofisticados católicos (que sempre gostaram de se considerar mais espertos do que a concorrência) poderá ser mais do que a repetição de um argumento também ele já vetusto ao qual nada de importante precisa de ser acrescentado para que seja fatal. Tanto do lado da física, cosmologia, biologia, geologia, etc., quanto da história, antropologia, filosofia moral e crítica textual, todos os “bolsos de ignorância” onde se poderia adivinhar a presença de um deus foram ou iluminados para se revelarem vazios, ou se verificou que enfiar lá deus apenas multiplicaria os problemas. Chegámos a um ponto em que os nossos melhores teólogos (e note-se que a completude do ateísmo implica o fim da teologia) não têm como discordar de grande parte da argumentação avassaladora com que agora se deparam. Resta-lhes refugiarem-se nos únicos dois redutos em que tal ainda é possível: ou na fé esvaziada de razão que se assume como tal, ou na deprimente afirmação de que o valor cultural e utilidade social da religião a justificariam ainda que fosse falsa – e é incrível o número de apologetas cristãos derrotados que segue esta última linha.

Por tudo isto não tenho muito mais a dizer acerca de ateísmo excepto que está lá para quem o quiser visitar, em exposição num mausoléu. Ser religioso neste momento é, como sempre será doravante, um imperativo psicológico dos doutrinados desde tenra idade, daqueles com demasiado investimento social/profissional na sua crença, seduzidos emocionalmente pela estética religiosa, ou que simplesmente não aguentam a ideia de que um dia deixarão de existir. Ironicamente, estes sempre existirão (de forma colectiva), mas é um facto que toda a argumentação de que tentem socorrer-se para defender a sua crença de forma discursiva já tem resposta suficiente escrita algures. Nada mais podem fazer do que desviar os olhos e acreditar porque sim.

O trabalho do ateu militante não terminou, claro. A religião continua e continuará a ter de ser empurrada diariamente e sem descanso para a esfera privada, a que pela sua natureza nunca se confinará de forma voluntária. No que diz respeito à questão da sua veracidade ou falsidade, o trabalho está feito. E por isso vou lendo, vendo e ouvindo sobre ateísmo como quem contempla uma estátua: em silêncio, deleitando-me com um prazer que é agora apenas estético.

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo.

15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.

11 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

O medo da morte e a eternidade

Texto de Onofre Varela previamente publicado na imprensa, em que reflete sobre o medo da morte.

O medo é um sentimento que funciona como escudo protector da vida, activando o sentido de alerta perante situações de perigo. No bordo de uma falésia, qualquer animal, incluindo o Homem, recua com medo de cair. Só as aves se abeiram e saltam no vácuo… porque voam.

Nós compreendemos o medo pelo sentimento que temos dos riscos que corremos quando nos encontramos em perfeito estado de consciência… o que parece não acontecer aos suicidas. É normal e natural evitarmos tudo quanto possa apresentar risco de vida: não ingerimos veneno, não saltamos de uma ponte nem nos deitamos na linha do comboio (aqui fica uma dica para os candidatos ao suicídio: esta ideia da linha do comboio deve ser evitada… porque as frequentíssimas greves dos ferroviários fazem gorar o desejo do suicida).

Nós não temos, só, medo da morte; também receamos o futuro… que não sendo propriamente sinónimo de morte, já foi mais entendido como promessa de melhor vida do que o é neste tempo de má globalização. O futuro apresenta-se cada vez mais carrancudo e armadilhado para a maioria das pessoas que já têm, no tempo presente, um inferno sem porta de saída. Inferno imposto por guerras, lutas políticas violentas e pelos “mercados”, desde o do trabalho ao económico, embora o nosso inferno seja um paraíso para quem se alimenta de tais “mercados”.

Na consciência dos nossos medos, também tem lugar a morte natural. Todos temos medo de morrer. Mesmo quando vivemos em sofrimento social ou de saúde, queremos continuar a viver na convicção de o futuro nos premiar com melhor sorte (mesmo sabendo-o armadilhado).

Em situação normal numa sociedade civilizada, a vida apresenta-se atractiva e é uma alegria vivê-la junto de quem gostamos, sentindo-nos realizados vendo o crescimento dos nossos filhos e netos. Pôr um ponto final neste gozo que sentimos pela vida… só pode ser uma maldade!…

Ninguém, no seu perfeito estado de saúde mental, quer morrer. Mas o fim da vida é a coisa mais certa com que podemos contar. Só porque nascemos, haveremos de morrer. O nascimento activa o relógio da contagem decrescente. Após cada dia vivido, temos um dia a menos para viver. A morte é o nosso fim natural, e dela ninguém pode fugir. Desta vida ninguém sai vivo.

Algum dia a Ciência conseguirá vencer a morte?… Para já, consegue prolongar-nos a vida, aumentando o “prazo de validade” marcado pela estatística… o que já não é nada mau. Espero que jamais se vença a morte, porque se fossemos eternos não cabíamos todos no mundo… a não ser que se cancelassem os nascimentos! Mesmo assim, garantíamos lugar físico para termos chão, mas a sociedade não evoluía porque éramos sempre os mesmos, com as mesmas ideias e a porta fechada à renovação… por isso a eternidade seria uma chatice… só nos apeteceria morrer!…

A eternidade do corpo conservando todas as faculdades anímicas, é mito. A eternidade só é possível na memória histórica, não na matéria (pelo menos não o é em organismos complexos).

Mesmo sabendo que somos mortais, gostaríamos de viver eternamente e alimentamos esse gosto criando a ideia da vida eterna numa suposta existência espiritual a usufruir depois da morte, num suposto céu, junto do igualmente suposto deus que criamos à nossa imagem e semelhança, e à medida dos nossos desejos, da nossa angústia e da nossa ignorância.

Acredito que seja um consolo crer na vida espiritual eterna. Quem crê nela, na esperança de se encontrar com o deus da sua crença depois de morrer, terá nessa ideia um repelente para o medo da morte, ajudando a aceitar a naturalidade do fim com a muleta da fantasia religiosa na convicção de que, finalmente, irá encontrar-se com o seu deus e ser feliz. É o derradeiro consolo que configura a face positiva da crença por ajudar a aceitar a morte sem dramas maiores, mesmo que com base numa mentira que o crente aceita por verdade.

Na verdade natural das coisas naturais, depois de se morrer não se tem consciência… nem nada!… Não se sofre nem se goza, porque a hipotética alma não tem sistema nervoso nem cérebro!… A felicidade ou o sofrimento “post mortem” é anedota. Morrer é como apagar a chama de uma vela… aquela chama “morre” completamente, deixa de existir, não se traslada para um outro hipotético pavio no céu das velas de estearina!…

É por isso que quem morre nunca reclama da vigarice que lhe venderam da promessa de vida eterna “post mortem”. E os crentes vivos crêem (por isso são crentes) que se o morto não reclama… é porque está bem e se recomenda!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Milos Duskic por Pixabay
2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.

20 de Setembro, 2023 Onofre Varela

Sobre a morte de deus

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando se ouve vaticinar a “morte de Deus” aventada por Nietzsche, pensamos numa revolução que nasce na madrugada de um dia, e que ao raiar do Sol… Deus já não existe. Mas não é nada disso!…

A “morte de Deus” não é mais do que o abandono do conceito deifico por uma maioria que faz o caminho da sua descrença naturalmente e sem drama.

Na verdade, no nosso tempo, Deus (enquanto ideia de um ser criador omnipotente, omnipresente e omnisciente) já está a morrer… e tanto mais morrerá quanto mais alargada for a consciência das pessoas sobre a real dimensão imaginária desse milenar conceito de Deus que formatou sociedades, mas que não existe veramente fora do pensamento de quem crê.

Enquanto essa consciência não se generalizar (se, quiçá, algum dia se generalizar… e eu acredito que sim pelo facto de o Homem ser a última experiência da Natureza; somos ainda muito primitivos; cheiramos a pintado de fresco… e lá chegaremos quando atingirmos a “idade adulta”) a maioria de nós garante que a divindade é real, mercê da educação familiar e social que recebeu desde o berço. Em consequência, deposita mais confiança nos sacerdotes, bispos e pastores de igrejas e seitas malvadas… que são tão falsos quão falsos são os pregões dos políticos quando nos prometem a felicidade se receberem votos suficientes para atingirem o poder.

Na verdade a ideia de Deus emparceira com a Política no que respeita ao alimentar de desejos e paixões, e ao criar guetos e inimizades (mas também amizades… se francas ou falsas… isso já é outra conversa), e no extremo leva a guerras que a História regista e a actualidade assiste. Guerras declaradas com a invasão de países independentes, ou acções terroristas “em nome de Deus”, tão graves e mortíferas como muitas das acções bélicas decretadas por Parlamentos, generais ambiciosos e presidentes que sonham ser czares.

E também serve para manter a classe clerical e os gestores de seitas – que se pretendem defensores da moral instalada – em níveis económicos e sociais elevados… mas sem respostas realistas para o engrandecimento da sociedade onde se instalam… em vez disso prometem benefícios celestes baseando a sua moral em mitologias que são, afinal, a ferramenta do seu trabalho, de onde retiram o sustento… embora também abracem a realidade material recebendo subsídios governamentais para explorarem ramos sociais como o ensino, a saúde, lares da terceira idade e infantários. No extremo, organizações desta índole (a maior das quais, entre nós, é a Igreja Católica) transformaram a caridade numa indústria social.

A indústria da caridade é indigna numa sociedade verdadeiramente democrática e de cariz socialista que se interesse pelo bem-estar do seu Povo. Enquanto houver um sem-abrigo e uma família sem pão, a Democracia (e toda a prática política) é uma fraude. A indústria da caridade ajuda a alimentar essa fraude ao substituir a solução definitiva, que pertence aos governos, por remendos sazonais e “sopa dos pobres”, que nada resolvem em definitivo e só adiam a morte anunciada a quem tem fome, lhe falta abrigo e meios de subsistência dignos.

Neste contexto político e social (que, infelizmente, cada vez mais, faz o nosso dia-a-dia) a crença em Deus é positiva porque acaba por ser uma tábua de salvação das consciências religiosas, garantindo algum conforto espiritual.

Quero acreditar que quando atingirmos a “maioridade” enquanto “Homo sapiens-sapiens”, a perfeição comportamental estará mais perto… e a razão será de Nietzsche no vaticínio da definitiva “morte de Deus”.

Mas parece-me que isto também é fé… embora laica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Por Friedrich Hermann Hartmann – Domínio público