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Etiqueta: Laicidade

8 de Abril, 2024 Onofre Varela

O Negócio da Fé

A fé é um negócio como qualquer outro, e quem o explora espera obter lucro. É como vender hambúrgueres e Coca-Colas… se a loja não der lucro fecha-se a porta ou muda-se de ramo… mas as lojas que são as igrejas, estão isentas de alguns impostos, o que lhes dá alguma folga económica nas despesas. Os lucros são óbvios… a demonstrá-lo está a divulgação do santuário de Fátima que obteve um rendimento superior a 21,70 milhões de euros ao longo do ano de 2023, superando todos os números de visitantes pré-pandemia Covid: um total de 6,8 milhões de peregrinos.

A fé tem esta característica: depois de o cliente se habituar ao produto, passa a consumi-lo desregradamente (como se fosse uma droga viciante) porque foi para isso que os seus clientes compulsivos foram educados. Ao contrário do jogo e do álcool, que são viciantes e têm contra-indicações merecendo alguns recados de instituições governamentais no sentido de se ter atenção a regras, na fé isso não acontece!… Não há livro de reclamações nem manual de instruções para evitar consumo exagerado de missas e deglutição de hóstias.

O Papa Francisco I é mostrado como uma boa pessoa cheia de excelentes intenções e que quer o melhor para o mundo… não só para as comunidades da sua religião. É um sentimento universalista que só lhe fica bem, o qual ficou sublinhado em 8 de Junho de 2019, segundo notícia divulgada pelo jornal espanhol El País: o Papa mostrou-se escandalizado com o marketing comercial do santuário de Lourdes (França), onde crescem as visitas, aumentam as receitas, e os peregrinos se transformaram em clientes turistas.

Os visitantes do santuário viajam desde paragens longínquas na tentativa de ali encontrarem algum milagre que lhes alivie as vidas sofridas e cure doenças. O Papa entende que o marketing comercial de Lourdes se sobrepõe à fé, no sentido em que ele quer que se entenda a fé: na “humanização da Igreja”. Por isso encarregou o arcebispo Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, de meter mãos à tarefa de melhorar o cuidado pastoral dos santuários, a qual se inicia em Lourdes… mas presume-se que não se ficará por aí.

Foto de Milada Vigerova na Unsplash

Lourdes é considerada a “jóia da coroa dos milagres” desde que a pastorinha Bernardette Soubirous disse ter visto a imagem de Maria, há precisamente 166 anos (1858), na gruta de Massabielle. Desde então a receita recolhida em Lourdes atinge somas multimilionárias!…

Fico sem perceber a verdadeira intenção do Papa!… Não é ele o chefe de uma empresa exploradora do sentimento de fé religiosa em Deus, em Jesus, em Maria e numa panóplia de santinhas e de santinhos que enfeitam as paredes dos templos como deuses menores da medieval Igreja Católica?

Não é a Igreja a grande inventora e exploradora de milagres e fazedora de santinhos?!…

Não é ela que alimenta a fé em todas as missas, sublimando o deus alojado nas mentes religiosas?!

O Papa só agora teve consciência da exploração que a sua Igreja faz do pensamento de fé?!…

Começando esta purga por Lourdes, será que ela vai chegar a Fátima?

Que dirão os adoradores dos pastorinhos de Ourém que já os elevaram ao altar e conduziram à construção de uma basílica (que já são duas) transformando o local numa outra Lourdes… que, pelos vistos, o Papa Francisco entende ser uma vergonhosa máquina de marketing comercial para extorquir dinheiro a crentes intelectualmente indefesos?!…

Oh valha-nos Deus e o São Cricalho!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

11 de Março, 2024 Onofre Varela

Acreditar em Deus

Um dia perguntaram a Agostinho da Silva, sem mais nem para quê… assim à “queima-roupa”: “Acredita em Deus?”. O filósofo respondeu: “Depende. Se você me disser o que é Deus, pode ser que eu lhe diga se acredito ou não”.

Não conheço resposta mais concreta e acertada para tal pergunta! Na verdade não se pode negar a existência de Deus assim, tão simplesmente, porque logo a seguir a essa negativa se colocaria a questão: se Deus não existe, porque é que estás a falar dele? Se não existia até aqui, passa a existir a partir deste momento, caso contrário não se entenderia porque estás a nomeá-lo!

Só se pode negar ou afirmar aquilo que se conhece. E aquilo que eu conheço do conceito de Deus (o conceito, sim, existe) não merece crédito de existência real fora do conceito que é, nem fora da mente de quem o afirma. O deus apregoado pelas religiões é definido como um ser espiritual, mas tem personalidade e forma, produz milagres e orienta os homens, castiga e premeia, dá e tira, e reina num universo paralelo onde nos espera depois de morrermos para nos premiar com felicidade eterna, ou nos condenar também eternamente.

Este deus, pintado assim, desta maneira tão infantil para o raciocínio de um adulto saudável, definitivamente, não pode existir. As leis da física e da química não permitem a existência de uma coisa com tais poderes!

Imagem de Michelangelo Buonarroti no Freepik

As opiniões que contrariam a fé dos crentes costumam incitá-los à recusa imediata da opinião do outro, sem qualquer raciocínio crítico que os levasse a comparar ideias antes de negarem o “incrédulo demoníaco”. Seria mais razoável enfrentarem os factos contrários à sua fé, analisá-los com isenção, e concluírem depois. Se assim fizessem, as crenças religiosas perderiam a maioria dos seus adeptos por terem adquirido conhecimento ou se encontrarem com a dúvida.

A ignorância produz fé religiosa, e a informação, elimina-a. A fé que hoje habita o pensamento da maioria dos crentes, tem características da medievalidade do pensamento e não é compatível com a nossa época. As Ciências Humanas e Naturais arruinaram definitivamente as premissas dos dogmas religiosos que pertencem, cada vez com mais consciência, ao reino da fábula, ou da fantasia.

Na crença entregámo-nos ao sonho mais inconcretizável e à simulação, e somos vítimas de alucinações! Para o princípio da causa das coisas, há religiosos que defendem o Génesis contra a Ciência, convictos de estarem com a verdade!… Para uma mudança de atitude, bastaria que se entendesse uma coisa tão simples como isto: Para produzir um petisco tão comum e rotineiro, como é um ovo estrelado, é necessário, no mínimo, a existência de cinco elementos prévios. A saber: 1 – O ovo; 2 – Uma gordura; 3 – Um recipiente resistente ao calor; 4 – Uma fonte de calor capaz de fazer ferver a gordura; 5 – O cozinheiro, que prepara o cenário e parte o ovo sobre a gordura, esperando o momento certo para o retirar e servir. Sem estes cinco elementos podemos ter muita vontade de comer um ovo estrelado, e por mais que rezemos na esperança de que o ovo apareça estrelado à nossa frente… nunca mais saciaremos a nossa vontade, e morreremos ougados por um ovo!… Tal como morremos “ougados por saber”, quando tudo o que pensamos tem a marca de uma qualquer religião deísta.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

19 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

O Dom do Dom Aguiar, Que Afinal é Política

Não foi uma grande entrevista, mas foi uma entrevista grande. Digo isto porque me chateou quase do início ao fim, a Grande Entrevista (Temporada 17, Episódio 7, 14 de fevereiro de 24) com Américo Aguiar. Ponderei se devia fazer aqui um comentário ou não. Em boa verdade, que é isto se não o dia a dia de uma ateia? Desculpem-me os meus consócios que preferem uma postura mais neutra quanto à influência da Igreja Católica em Portugal e no mundo, mas eu calada fico com azia e diz que isto dá úlceras.

Vítor Gonçalves caracteriza-o como o “rosto da JMJ” e como tendo tido uma “ascensão fulgurante na Igreja portuguesa”. Tudo coisas que eu não escolheria para elogiar alguém, mas que não deixam de ser verdade. Depois refere que Américo Aguiar decidiu encontrar-se com os cabeças de lista de todos os partidos que concorrem no círculo eleitoral de Setúbal. Eh lá, foi aqui que comecei a pensar, “dá-lhe o Papa um dedinho, já o homem quer um braço e uma perna”. Mais me espanta que os ditos partidos lhe tenham feito a vontade, mas sabemos que a Igreja continua a movimentar esse tipo de influência.

A ideia que Américo Aguiar passa de que a Igreja não se pode afastar da política não é nova. Aliás, o seu maior problema é ser antiga. Desde que conseguiu deitar a mão, ou a cruz, a meia dúzia de pessoas influentes, que a Igreja se tem dedicado historicamente a influenciar a política das nações. No passado, fê-lo com tanto sucesso que um rei não era rei na Europa, sem beijar o anel ao Papa em Constantinopla. Mais recentemente, a Igreja Católica abraçou o Estado Novo em Portugal até se tornar evidente que estava do lado da História que teria de perder. No pós-25 de Abril, lá se agarrou ao poder que pôde manter, com a segunda Concordata (2004) que lhe garantiu muitos dos privilégios que Salazar lhe havia concedido em 1940. Antes fosse uma ideia nova. Mas a Igreja tem esta tendência de estender tentáculos para todo o lado.

Que conhecimentos tem o Cardeal de política para ser convidado a fazer este comentário na RTP? Ora, sabe que a raiz da palavra “política” vem do grego antigo, πολιτεία (politeía), que se refere à participação na vida coletiva de uma sociedade. A partir daí a coisa deixa de correr tão bem. Se calhar é porque já há muito que abandonou a política e já só lhe ficaram os chavões. Portanto, para Dom Aguiar, justifica-se que a Igreja meta o proverbial nariz na política porque tem de estar envolvida “naquilo que são as alegrias e as tristezas, os sorrisos e as lágrimas” do povo a que se dirige. E até é tão inclusivo que refere outras religiões, não que tenham muita importância no seu discurso. E até respeita muito os não-crentes. Só não o suficiente para não se meter onde não é chamado.

Ora, as decisões políticas referem-se (não só, mas também, e principalmente) à alocação de recursos. Vulgo, onde se gasta o dinheiro público obtido por meio de impostos. Portanto, o Cardeal quer ter uma palavra a dizer naquilo para o qual não contribui, dado que impostos não é coisa que lhe assiste. Pensando bem, é a postura tradicional da Igreja. Uma instituição de homens a quererem ter uma palavra a dizer sobre o que a mulher pode ou não fazer com o seu próprio corpo, uma instituição de supostos celibatários a querer ter uma palavra a dizer sobre o que constitui ou não uma forma de amor válido, uma forma válida de constituir família, até uma forma válida de morrer. Um conjunto de homens cujo objetivo é viver o menos possível a querer cortar as asas a quem só quer ser livre.

A influência que Américo Aguiar quer vai da freguesia ao mundo. Já não me devia chocar, mas a esta altura ainda vou nos dois primeiros minutos desta entrevista de quase uma hora, e já o coração me quer saltar da boca. Ah esperem! A igreja não se pode meter em questões partidárias. E qual é a diferença? – pergunta Vítor Gonçalves. E eu queria ter estado lá, para dizer “nenhuma!”. Falei para a TV, como os adeptos de futebol mais irascíveis. Mas o Cardeal não explica a diferença. Deixai-me dizer eu contudo, oh gentes da minha terra: o padre não precisa de dizer aos crentes em quem votar. Basta defender ativamente a mesma postura que o seu partido de eleição para que o crente entenda em quem deve votar. E essa manipulação sempre foi feita de uma maneira ou de outra. Não tivesse o Cardeal começado a sua enumeração de partidos candidatos ao círculo eleitoral de Setúbal com… a Aliança Democrática.

Valeu-me concordar com o Bispo de Setúbal numa coisa, não se justifica a abstenção. Já dizer que é pecado, foi um momento de humor que apreciaria, se quando se falasse em pecados se falasse sempre com esse tom jocoso. Mas o alívio é momentâneo. É que dizer que a Igreja deve meter-se na política é fácil, difícil é quando se lhes pede para identificar um partido que esteja a ir contra a ideologia da Igreja Católica. E parece que para Américo Aguiar, a pergunta é tão difícil que o discurso ora anda em círculos ora anda a fugir. Para o cidadão consciente, a pergunta não é assim tão complicada. Pensando uns segundos, conseguimos todos identificar os partidos que defendem o que a Igreja diz defender, e os que defendem o que a Igreja não admite defender.

Ei-de rir sempre de um bispo de critica quem vota num dado partido sem nunca ler a sua proposta. É o melhor tipo de humor, aquele que se faz sem querer. A Igreja é a instituição que mais aceita e promove que os seus crentes não leiam o programa. É para isso que o sacerdote serve, para dizer o que diz na Bíblia. Ora agora, ler aquilo tudo, e com páginas tão fininhas. Nem o padre na missa lê tudo, escolhe sempre a dedo o que convém mostrar, vai agora o crente ler o programa todo. Ainda mudava de ideias.

Não discordo, contudo, que os programas são para ler, os objetivos de um partido são para conhecer e a posição da Igreja ou bem que é clara ou bem que se deve calar. E de preferência deve calar. Num país laico, tem de calar. O Bispo de Setúbal lá foi forçado a criticar os partidos que são a favor do aborto ou da eutanásia. Que choque! No entanto, antes tinha falado da dignidade humana, pelo que fiquei sem saber o que quer, afinal, o sacerdote.

Ao menos posso encontrar outro ponto de concordância com o Cardeal, que é o de aceitar e receber bem os imigrantes que cá chegam, tal como gostaríamos que os nossos tivessem sido aceites lá fora. Concordo, sim. Também concordo que há ameaças à democracia em Portugal, na Europa e no Mundo. Só não concordo que fuja à questão da ascensão da extrema-direita em Portugal preferindo referir-se às políticas europeias e criticar Putin, Trump e a guerra na Ucrânia apenas para mais uma vez, evitar falar do elefante na sala. Só não evita sublinhar que tem amigos em todos os partidos. Acredito que tem.

Chega-se ao fim e Américo Aguiar fala como cidadão e não como sacerdote. Pouco fala sobre a Igreja naquilo que são as decisões políticas e sociais do país. Mas pega nisso como mote para defender que a Igreja se deve meter na política. Não deve não. O cidadão, independentemente de ser ou não crente seja no que for, deve votar. Não é preciso vir um Cardeal dizer isso, mas dá jeito.

Estava eu já a entrar numa certa simpatia pelo Cardeal e eis que surge o tema das JMJ. Afinal, esperem lá, já não quero beber um copo com o Dom Aguiar. Começa por agradecer a Portugal e aos Portugueses. É bom que agradeça, porque ao que tudo indica, a coisa não ficou nada barata e teve momentos verdadeiramente vergonhosos. Diz o Cardeal que as JMJ deram lucro. Ultrapassa os 20 milhões, diz orgulhosamente. Falou muito, mas não disse de onde tirou 20 milhões em lucros. A organização lucrou 20 milhões? Ah bom! Isso acredito. E quanto gastou o Estado para proporcionar as condições para que a organização das JMJ lucrasse 20 milhões?

Cito: “O senhor patriarca acha que a Fundação deve continuar, para concretizar agora a materialização do que se venha a fazer com o lucro”. Faz-me lembrar as frases que se dizem em reuniões com empresas de atividade corporativa que levam a cabo projetos empresariais. Ou seja, coiso. E daí não melhorou a sua competência em explicar exatamente para onde vão os 20 milhões que tantos mais milhões custaram aos bolsos dos contribuintes. A meu ver, as contas que antecedem esse lucro é que devem ser revistas. Ou seja, quanto pagou afinal o Estado, a fundo perdido, para que o evento se realizasse?

Outra questão que não vi abordada e que me parece uma falha indesculpável, é a questão dos outdoors que foram retirados da via pública, que chamavam a atenção para as mais de 4800 crianças cujo abuso no seio da Igreja Católica é conhecido. Aliás fica aqui, que é para o Dom Aguiar não se esquecer, já que fala da dignidade humana com tanto afinco:

Outdoor “+49800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal” censurado durante as JMJ.

Dos problemas sociais que aponta, abusos sexuais dentro da Igreja Católica não foi tema. Para mim, foi o único tema que valia a pena discutir na farsa das JMJ. Surpreendeu-me que o entrevistador tenha decidido tocar nesse tema. E que suavemente até tenha tentado que o Bispo se focasse na realidade ao invés do que ele deseja que a realidade fosse. Doeu-me ouvir que ele quisesse corrigir os números. Não foram 4800 casos, foram 500 e tal denúncias que permitiram essa extrapolação. E isso em 70 anos, nem foram 70 dias. Ah! Bom! Então muito melhor. Afinal nem é nada de assim tão grave.  E o Cardeal está muito contente porque a transparência e a tolerância zero começa a ser normal.

Sou só eu que acho que dizer isto é absurdo? Está contente? Eu não estou e duvido que alguma das vítimas esteja. Já os padres que foram denunciados e que continuaram com as suas vidinhas, devem partilhar dessa felicidade. Resta-me questionar onde está mesmo a tolerância zero, ou a transparência. E já agora, perguntar se numa instituição que insiste representar um deus omnisciente, omnipotente e bom, há espaço para que estas coisas sejam ditas sem uma gargalhada de desespero como som de fundo.

Por fim, aborda-se o tema do momento: abençoar os casais em situação irregular. Só a frase arrepia. Existem casais em situação irregular? E isso da bênção, é esmola? Casar não, mas olha, ide lá com a graça do senhor. Mas é piada? É a isto que se bate palmas? A meu ver não há que abençoar casais, nem há que os unir em sacramento. É uma não-questão para mim porque sou ateia. Mas permite-me ver a hipocrisia desta instituição.

Vem agora o Cardeal falar em opções. Abençoa as duas pessoas (homossexuais) e não as suas opções. Alguém de Setúbal que esclareça o Bispo da sua terra que ninguém escolhe ser quem é. Nasce-se heterossexual, como se nasce homossexual ou qualquer outra variação naquilo que sabemos ser um espectro. Portanto, dado que esta pessoa acredita que deus nos fez à sua imagem e dado que ser homossexual não é escolha, foi deus que criou a pessoa com aquela orientação sexual. Alto, que isso já é muito inclusivo para a Igreja. Todos, todos, todos, mas vontade não é à vontadinha. Este discurso cheira à velha máxima cristã “odeia o pecado não o pecador”. Bafiento.

Em momento algum o Bispo de Setúbal diz que se presta a abençoar a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Apenas a abençoá-las individualmente. No entanto, quer que todos se sintam acolhidos. Não são acolhidos porque a Igreja Católica é o que toda a organização religiosa é: opressiva, restritora das liberdades pessoais e com um complexo de superioridade moral que não aplica quando encontra atrocidades no seu seio.

A minha conclusão é simples. O mote desta entrevista era que a Igreja se deve meter na política. Afinal foi um político que se foi meter na Igreja. Em todas as instâncias em que o Cardeal fala, refere sempre a religião em último lugar. Por pouco que não se esquecia de agradecer a deus o “sucesso” das JMJ. O Cardeal é certamente um homem da religião, só não me parece muito religioso, e por esse motivo quem sabe se não nos sentaríamos à mesa, como ele diz, a beber um copo, amigos como d’antes.

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

13 de Setembro, 2023 Onofre Varela

O Pirilau do Cutileiro

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Ultimamente temos assistido a actos censórios exercidos sobre obras de arte, desde caricaturas e cartunes até instalações, passando por romances e banda desenhada. Uma “onda de pureza” parece estar a varrer as mentes perversas dos censores, travestidas de pudicas.

Quem censura obras artísticas e literárias, não sabe… mas devia saber… que os censores são, antes de mais, umas bestas. Só quando se atinge o estatuto de besta, se pode ser censor!

Lembro que em Janeiro de 2016 as autoridades políticas italianas decidiram tapar uma série de estátuas de nus, naquele que é considerado o complexo museológico mais antigo – os Museus Capitolinos, em Roma – por ocasião da visita do presidente do Irão Hassan Rouhani, para que os púdicos olhos do ditador desrespeitador das liberdades individuais e das mulheres do seu país, não fossem magoados perante a beleza de um nu artístico produzido na Época Clássica!

Se calhar as estatuetas de deusas-mãe pré-históricas (como a Vénus de Willendorf, do Paleolítico Superior) também não podem ser vistas por tal gente que nasceu com um defeito genético: os intestinos no crânio!

Esta decisão não foi mais do que um desavergonhado acto de ajoelhar da cultura ocidental, perante a cultura islâmica na figura de um miserável ditador, originando uma série de críticas ao governo italiano acusado de “excesso de zelo” (termo bonito para designar “besteira”) perante a distinta cultura do Irão. Obras como: “Arco” (de Lísipo, século IV a.C) e uma “Leda e o Cisne” (360 a.C.) foram revestidas com painéis para encobrir a nudez das figuras. Outras obras foram removidas do local onde se encontravam.

Quase tanto esteve para suceder à estátua equestre do imperador Marco Aurélio, neste caso devido à genitália do equídeo (parece que no Islão os cavalos nascem capados. A tomatada só a têm homens muito machos e desrespeitadores das mulheres). A estátua está colocada na denominada Sala Esedra, onde decorreu uma sessão com a presença de Hassan Rouhani e de Matteo Renzi, o primeiro-ministro italiano. E se mais obras não tiveram de ser tapadas, foi porque o dirigente iraniano só teve de percorrer um pequeno sector do museu até chegar à sala onde exibiria a sua ridícula figura a merecer um tapume.

O melhor seria terem fornecido umas palas de cavalo ao ilustre merdoso islâmico, para ele colocar na focinheira e não ver as obras de Arte que, desde a velha Grécia, são símbolo da liberdade de criação artística do ocidente, cuja liberdade ele desrespeita e despreza.

Passando para os dias de hoje, e na minha terra, parece-me que palas idênticas merecem usar os responsáveis daquela coisa religiosa tomada por coisa muito séria e que dá pelo nome “Jornadas Mundiais da Juventude” (a Festa do Avante da Igreja Católica) que até vai merecer visita papal. Um dos altares das cerimónias litúrgicas a terem lugar na capital do reino, situa-se no alto do Parque Eduardo VII em frente da escultura de João Cutileiro que ali foi instalada em 1997; um monumento fálico que simboliza a coragem dos capitães de Abril para derrubarem a ditadura.

A escultura vai ser retirada (afinal… a ditadura não foi totalmente derrubada!…) para não conspurcar as vistinhas dos assistentes das missinhas ali celebradas, tendo, em pano de fundo, um pirête a fazer concorrência à cruz.

O presidente da Câmara, Carlos Moedas, afirmou que a retirada do monumento nada tem de censório (admirava-me se dissesse que tinha!…) e que acontece só para se proceder à restauração da obra, que será recolocada no mesmo lugar logo que os olhos pudicos dos religiosos se ausentem de Lisboa após as jornadas.

Bem sei que há quem não goste daquele monumento fálico… mas ele não está ali para ser degustado!… Quem não gosta que não o chupe!…

Esta conversa do autarca lisboeta cheira-me a desculpa esfarrapada como a que foi usada perante as sensibilidades melindrosas de um monarca sem vergonha, e agora de uma classe clerical que, em nome de Jesus, se afirma detentora de uma pureza e de uma moralidade imaculadas, mas que no seu seio alberga pedófilos.

Perante estes casos eu fico furioso e atónito!… Ou o mundo está a ficar maluco com todos estes sintomas de mau funcionamento da mioleira destes (ir)responsáveis políticos e culturais… ou então o maluco serei eu por considerar Hassan Rouhani um personagem asqueroso quando há quem lhe dê ouvidos e o aceite como gente decente… e ao deparar-me, agora, com idêntico figurino censório cá na minha parvónia!…

Os desmiolados sensores actuais ainda serão capazes de fazer o mesmo que fez Salazar e censurar “Os Lusíadas”… porque a “Ilha dos Amores” pode ser pornográfica! E em consequência provavelmente ditarão a condenação à morte do Cupido por ter sido o instrumento da “pouca vergonhice”.

No extremo, o Vaticano terá de reescrever a Bíblia… já que umas filhas que embebedam o pai para se deitarem com ele e engravidarem (Génesis: 19; 30-38)… provavelmente não será uma atitude muito católica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Por Francisco Santos (User:xuaxo) – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2009534
30 de Junho, 2023 João Monteiro

REPÚBLICA LAICA

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Fomos, durante séculos, um país dolorosamente católico vivendo os horrores da Inquisição e o atraso no ensino científico. A subserviência do Povo aos clérigos habituados a dominarem a população crente e temente, agrilhoou o pensamento popular aos interesses do culto. 

Mais de um século volvido após a separação Estado/Igreja em 1911 (com um interregno no Estado Novo de Salazar, sendo a separação reatada após a Revolução de 25 de Abril de 1974 com a promulgação da Constituição da República em 2 de Abril de 1976), uma grande parte do nosso bom Povo ainda não conseguiu libertar-se do jugo da Religião, nem a Igreja quer desalojar da sua cabeça o poder temporal que sempre exerceu desde quando coroava reis a seu contento, e era, de facto, a dona da Europa. 

A América Latina, colonizada pelo espírito católico-ibérico desde os séculos XV e XVI, é paradigmática em termos do poder opressor da Religião sobre os povos (mas também da vingança letal de interesses da extrema-Direita que mata sacerdotes defensores dos pobres e oprimidos como aconteceu ao padre Romero, de El Salvador, em 24 de Março de 1980). 

No Chile, quando o ditador Pinochet, em Setembro de 1973, derrubou, com muito sangue, o socialista Salvador Allende (que fora eleito democraticamente) estabeleceu uma sangrenta ditadura, dizendo: “Estou aqui por ordem divina”. 

Fora da latinidade, Osama bin Laden apoiava actos terroristas em nome do mesmo Deus a quem orava Pinochet e a quem reza Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres, Cavaco Silva, Santana Lopes, Passos Coelho, Paulo Portas e José Sócrates… mas também Bush, Trump e Joe Biden, que não são católicos nem muçulmanos. 

Em Portugal, este nosso apego à religiosidade que preenche a cabeça da maioria de nós, pode explicar o facto de termos a presidir à República Portuguesa que (consta) é Laica… um empedernido católico que escolheu para sua primeira viagem oficial a visita ao Vaticano, e se vergou perante o Papa beijando-lhe a mão!… Barack Obama também visitou o Papa. Cumprimentou-o com um aperto de mão e de cabeça erguida, numa atitude de dignidade e igualdade entre chefes de Estado, que é isso mesmo que o Papa é: Chefe do Estado do Vaticano. 

Já tivemos a governar o país gente que foi mostrada demasiadas vezes a assistir a missas. Cavaco Silva e Santana Lopes usavam nos seus discursos frases como “se Deus quiser” e “graças a Deus” também demasiadas vezes, à boa maneira muçulmana. António Guterres, enquanto primeiro-ministro, numa entrevista que deu ao jornal espanhol El País (5/7/1998), disse esta pérola de sacristia: “Cada um será julgado por Deus de acordo com a capacidade de pôr os seus valores em benefício dos outros”. E o primeiro-ministro José Sócrates, em Setembro de 2007, assistiu à inauguração de uma escola pública em S. Martinho de Mouros (Resende) e benzeu-se na missa do acto medieval de benzedura daquele equipamento laico!

Temos hospitais públicos com nomes como: Santo António, São João, S. Marcos, S. José e Santa Maria. Eu sou assistido (e bem) no posto médico da Segurança Social de Rio Tinto, com o nome de: S. Bento. E no ensino particular encontrei o “Colégio das Escravas do Sagrado Coração de Maria”!… Que tipo de pai matricula ali a sua filha?! 

Vivemos, de facto, numa República Laica muito “sui generis”… e pelos exemplos citados da América Latina, só podemos concluir que a extrema crença em Deus pode tornar-se muito perigosa!

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

30 de Abril, 2023 João Monteiro

Afinal para que serve a arte?

Texto em resposta à censura da obra de Onofre Varela.

Onofre Varela é um homem da cultura. Conhecido intelectualmente pelos seus livros, assim como pelos textos publicados sobre ateísmo na imprensa escrita, é também reconhecido profissionalmente pelas suas
ilustrações e pelos seus cartoons que já estiveram em destaque em várias exposições e galerias.

Foi o caso deste mês, abril, em que os seus cartoons estiveram expostos na Bienal Internacional de Arte de Gaia. Porém, o que poderia ser um momento de celebração tornou-se numa situação de polémica diplomático-cultural com projeção mediática a nível nacional. O motivo foi um dos seus cartoons ter
sido retirado após o autor, a organização e os autarcas terem sido alvo de pressão por parte de membros da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) que, alegadamente, se terão sentido incomodados e ofendidos pelo desenho. Segundo o comunicado da própria CIL enviado ao presidente da Câmara Municipal de Gaia, citado pelo jornal Público, “[o cartoon] banaliza o Holocausto cometido pelo regime nazi e
diaboliza os judeus na sua relação com a Palestina”, acrescentando que a “estrela de David sobreposta no coração de uma imagem desenhada de Hitler é uma ofensa grave e indecorosa”.

Embora a decisão de retirada do cartoon tenha partido do autor, a verdade é que essa mesma decisão decorreu das pressões exteriores, conferindo ao caso um carácter de censura.

Para compreendermos o que está em causa, o cartoon visado é o que abaixo se apresenta:

Uma vez que o autor do cartoon, Onofre Varela, é não só associado da AAP como até é o seu vice-presidente, cabe-me, na qualidade de dirigente, emitir umas palavras sobre o tema.

Em primeiro lugar, quero expressar-me contra qualquer forma de negação ou menorização do que foi o Holocausto, um episódio negro e vergonhoso do século XX cujas raízes do preconceito remontam, infelizmente, a épocas anteriores. Em segundo lugar, afirmar-me contra a perseguição do povo hebreu, do mesmo modo que sou contra a perseguição de outros povos minoritários, pois revejo-me nos
valores Humanistas que defendem a segurança e paz para todas as pessoas e populações. Apresentado o meu posicionamento geral, passemos ao caso concreto.

Em causa está um cartoon de tipo caricatural, ou seja, um desenho que pelo exagero pretende passar uma mensagem. A imagem ilustra uma figura masculina representada por uma mescla de uma personagem judia e nazi em simultâneo. Ora, isto é deliberadamente um contrassenso, por representar na mesma figura o opressor e o oprimido, ou o tirano e a vítima. Se isto não fosse suficiente para nos fazer parar e questionar sobre qual o tipo de mensagem, o autor fez acompanhar a figura pela frase “Israel trata os palestinos com o mesmo desrespeito com que Hitler tratava os judeus”. Ou seja, o autor pretendeu lançar um alerta, ou criar uma forma de questionamento, sobre a perseguição política
e social, de quase genocídio, que Israel tem vindo a fazer em território palestiniano (interpretação minha). As obras para serem devidamente entendidas devem ser analisadas no seu contexto histórico, e este cartoon foi desenhado precisamente numa altura em que abundavam notícias nos meios de comunicação social sobre os atentados do governo de Israel contra os palestinianos. Perante as evidências,
o autor enquanto artista limitou-se a representar a realidade na forma a que está habituado: através do desenho. O facto de a forma escolhida ter sido um cartoon caricatural remete para a sátira e a crítica de costumes, portanto para a reflexão crítica de um evento sociopolítico.  

Terá a CIL motivos para se sentir incomodada ou ofendida? Devido à alusão ao nazismo na figura, por motivos históricos, até poderia concordar. Porém, a representação num todo (texto e imagem) vai além disso. Mais do que uma crítica, é uma denúncia, um alerta, uma chamada de atenção para o que acontece lá ao longe (mas não assim tão longe). Não se trata de antissemitismo. Isto são factos: o governo israelita expandiu o seu território unilateralmente, usurpando, ocupando e colonizando território palestiniano; tem atacado, perseguido e assassinado palestinianos que defendem o seu território; entre os membros da
população morta ao longo dos anos, já se perdeu a conta ao número de crianças que viram a sua vida ceifada nesta guerra por terra e fronteiras, que mais não é do que uma guerra por poder. Contra estes factos é que a CIL deveria sentir-se incomodada, e não com um desenho.

Isto leva-nos à questão do título: afinal, para que serve a arte? Esta pergunta tem um conjunto alargado de possíveis respostas. Podemos dizer que a arte serve como forma de comunicação e de expressão; reflexão e crítica; inspiração e estímulo criativo; entretenimento e deleite estético; preservação de património cultural e histórico; transformação e ativismo social, apenas para dar alguns exemplos. A boa arte consegue mexer connosco, suscitar sentimentos e emoções do âmago da nossa pessoa. Olhando para o cartoon de Onofre Varela e para as reações por ele geradas, podemos então dizer que a arte
e o artista cumpriram o seu propósito.

Termino com um abraço de solidariedade ao nosso estimado Onofre Varela.

Este caso nas notícias:

https://www.publico.pt/2023/04/18/culturaipsilon/noticia/cartoon-retirado-bienal-gaia-apos-criticas-comunidade-israelita-2046595

https://www.publico.pt/2023/04/21/culturaipsilon/noticia/presidente-associacao-jornalistas-considera-lamentavel-censura-cartoon-onofre-varela-2046925

https://cnnportugal.iol.pt/videos/uma-ofensa-grave-que-menoriza-o-horror-e-a-tragedia-do-holocausto-cartoonista-onofre-varela-retira-cartoon-apos-polemica-com-comunidade-israelita/643ffb6e0cf2dce741b55724

https://observador.pt/2023/04/20/bienal-de-gaia-cartoonista-onofre-varela-refuta-acusacoes-da-comunidade-israelita-de-lisboa-e-ataca-israel/

https://portocanal.sapo.pt/noticia/325186

https://www.jn.pt/artes/cartunista-explica-que-retirou-obra-de-exposicao-para-nao-provocar-guerras-16205765.html/

23 de Junho, 2022 João Monteiro

Debate: Religião no Século XXI

João Monteiro, presidente da Associação Ateísta Portuguesa, participou num debate com Luísa Jacinto, que representou o Movimento Católico de Estudantes. A moderação esteve a cargo de João Mendes, da Escola Superior de Comunicação Social, onde teve lugar o debate. A conversa pode ser ouvida aqui.

17 de Março, 2022 João Monteiro

Vereador de Lisboa: estando em funções, vai em procissões

Ângelo Pereira, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, abandonou o seu exercício de funções para acompanhar a Procissão do Senhor dos Passos da Graça. O próprio fez questão de o mencionar com alarde no twitter (ver fotos abaixo). Estes tweets merecem duas críticas: uma de carácter institucional e outra de carácter religioso.

A nível institucional, e tendo nós um Estado Laico, há que relembrar o dever de separação da crença individual do exercício de funções públicas, o que exige uma neutralidade confessional. Assim, Ângelo Pereira poderia estar na procissão na qualidade de cidadão enquadrado na sua crença, mas não se poderia identificar como Vereador em exercício de funções públicas como fez no tweet. Além do mais, o carácter político na procissão fica reforçado se atendermos que o mesmo contou com a presença da Embaixadora da Ucrânia e – surpresa, surpresa – do nosso Presidente da República.

A nível religioso há a apontar a oração pela paz e fim da guerra. Qual o resultado prático desta oração? Nenhum. Não são as orações que terminam as guerras – aliás, não fazem nada. O que termina as guerras são as conversações, as negociações e as intervenções políticas. Mas, uma vez mais, orações religiosas e intervenções políticas deveriam ser como água e azeite: não se misturam.

Sejamos construtivos: então qual o procedimento correto que o vereador deveria ter tido?

a) presença na procissão a título pessoal, enquanto cidadão, ou não ir de todo;

b) no final do ato religioso, convidaria a Embaixadora e o Presidente da República para um encontro de carácter político em ambiente profano.

É simples. Fica a dica para próximas ações.