Loading

Mês: Dezembro 2021

29 de Dezembro, 2021 Carlos Esperança

A laicidade é a vacina contra as guerras religiosas – 1

Em França, o clero de várias religiões agita as vestes talares e envenena os media contra a laicidade.

Acusam o PR de radicalizar o laicismo, como se a neutralidade pudesse radicalizar-se. O laicismo radical é uma impossibilidade, espécie de abstenção violenta. A condescendência de Mácron é que é criticável, e tem sofrido ameaças islâmicas.

A laicidade desagrada às religiões que querem viver à sombra do Estado e interferir nas leis, e usam um artifício semântico para a contestarem. Dizem que aceitam a laicidade, mas são contra o laicismo, como se a primeira não fosse a mera aplicação da filosofia em que se baseia –, o laicismo.

A França, aliás, toda a Europa, está a ser fustigada pela evangelização de religiões que pretendem impor os seus credos e os seus modelos tradicionais, éticos, gastronómicos e jurídicos, das crenças que transportam. Exigem o comunitarismo para se defenderem do cosmopolitismo e combatem a laicidade para preservarem a identidade, tantas vezes as tradições que discriminam a mulher e impõem normas contra os Direitos Humanos.

Contrariamente às queixas do clero das várias religiões, a liberdade religiosa existe em França, sem discriminações. As provocações pias, com suspensão da circulação pública para as orações diárias, a exibição identitária, a misoginia comunitarista e o desacato às leis da República não merecem contemplação. Há ruas entupidas cinco vezes ao dia.

Continua a ser uma surpresa ver religiões que se odeiam unidas no combate à laicidade, na incapacidade de abdicarem do proselitismo e na determinação de imporem os seus dogmas e tradições à sociedade secular. Não suportam a indiferença do Estado.

Os crimes sectários com motivações religiosas são sempre atribuídos a minorias que se fanatizaram e nunca à obediência aos disparates do seu Deus. O combate pela laicidade é visto como doença, acusado de fobia, paradoxalmente mais por pessoas de esquerda do que de direita, estas intrinsecamente mais xenófobas.

E não se pense que a tara atinge apenas os monoteísmos, que os filhos de Abraão são os mais perversos nesta defesa assassina do seu Deus, criado para a explicação por defeito dos medos, ansiedade e ignorância do desconhecido.

A comunidade cristã da Índia sofreu este ano uma série de ataques durante o Natal, com estátuas de Jesus Cristo a serem destruídas, celebrações interrompidas e imagens do Pai Natal queimadas.
Os cristãos dizem não ser culpa do Governo, mas o Governo indiano mandou congelar contas das Missionárias da Caridade. Estranha coincidência, onde as castas permanecem, a desonra maior é o casamento de uma viúva e a violência contra os muçulmanos um hábito que recrudesceu com o nacionalismo hindu.

Os budistas, contemplativos, que se apiedam dos animais ínfimos, odeiam os Rohingya, minoria muçulmana apátrida de Mianmar, antiga Birmânia, alvos de genocídio, e levam a crueldade a limites impensáveis, através dos militares budistas que os monges apoiam.

George Sand, a notável escritora francesa que teve de se esconder sob um pseudónimo masculino, lançou um dia esta imprecação: «Há cinquenta anos que trago em mim uma maldição que hei de repetir até à hora derradeira, maldita, maldita, três vezes maldita seja a intromissão do padre na família». Cito de memória a frase, lida há sessenta anos, para a acompanhar na imprecação à ingerência das religiões nos aparelhos de Estado.

Só a laicidade nos pode salvar do proselitismo assassino das religiões. Não há liberdade religiosa sem democracia, nem democracias confessionais. A Europa só pode defender o seu ethos civilizacional da demência pia que a ameaça se for vigorosa na laicidade.

A violência religiosa crepita da Turquia ao Egito, do Iémen à Nigéria, do Afeganistão à Arábia Saudita, da Índia ao Uganda, por todo o mundo, enquanto os media dos países democráticos insistem que as religiões promovem a paz. Talvez nos cemitérios!

Lembremo-nos que somos todos infiéis em relação aos deuses dos outros. Os ateus só o são em relação a mais um, e eu não gosto de decapitações, chicotadas e lapidações, que extasiam os deuses dos selvagens devotos que as defendem e aplicam.

12 de Dezembro, 2021 Carlos Esperança

A Universidade de Coimbra e a missa da Imaculada

Por Carlos Esperança

A Universidade de Coimbra preza as tradições, e, à semelhança de novas universidades, é capaz de transformar em tradição um despautério do ano anterior. Sendo a escola onde os alunos se reveem, é natural que a queima das fitas se transforme, já no próximo ano, à semelhança do atual, na gloriosa tradição da transmissão Covid, como acontece com a divertida tradição do roubo e vandalização dos carros de compras dos supermercados.


Há, no entanto, uma tradição instituída pelos últimos reitores, Magníficos por profissão, que afronta o Estado laico, convidarem professores, alunos e funcionários para a missa. O reitor não é o almuadem romano cujas funções o transformem em sacristão, capaz de conduzir a caldeirinha e o hissope atrás do capelão.

O Magnífico Reitor pode, como crente, deliciar-se com a missa e a hóstia diariamente, mas nunca invocando as funções que exerce e que honrados docentes contestam. Aliás, o Professor Vital Moreira já sugeriu a criação da associação de professores católicos que, essa sim, teria legitimidade para convidar professores, alunos e funcionários para os atos pios que entendesse, da missa ao mês de Maria, das novenas ao terço diário.

O que o Magnífico Reitor não pode, nessa qualidade, cuja neutralidade religiosa é uma questão de decência, civismo e legalidade, é convidar quem quer que seja, para atos de culto de uma religião do foro íntimo de cada cidadão.

O Reitor entende que na [sua] Universidade, onde a tradição e os dinheiros públicos mantêm um capelão, deve ser ele e o capelão a convidarem os professores, alunos e funcionários, para a missa de homenagem à padroeira da Universidade – a Imaculada Conceição –, que terá lugar a 8 de dezembro, pelas 12H00, na capela de S. Miguel.

Que o capelão, no exercício das funções, convide os créus a assistir a uma cerimónia da sua religião, compreende-se. Permite, aliás, ver a magnífica capela, uma relíquia da arte sacra, e, no caso dos devotos, venerarem um dos numerosos avatares da mãe de Jesus que o Papa Pio IX, em 8 de dezembro de 1854, tornou dogmaticamente concebida sem Pecado Original, uma velha crença do século XVI, adotada pela UC em 1646.

É inaceitável que a mais alta entidade de uma Universidade se comporte como o diretor de uma escola confessional ou o mullah de uma madraça. Quem preside ao areópago da Ciência e das Humanidades não pode estimular as coisas pias, sobretudo num país laico onde a separação das Igrejas e do Estado é constitucionalmente obrigatória.

Foi esta mentalidade que levou uma beata professora, quando vice-reitora, a propor a recriação da Faculdade de Teologia, em Coimbra, o que não conseguiu porque o bom senso e a formação cívica do corpo docente a inviabilizaram.

Uma Faculdade de Teologia teria certamente licenciaturas em islamismo, cristianismo e judaísmo, bacharelatos em hinduísmo, xintoísmo e budismo, graduações em lançamento de búzios, mestrados em tarô e bruxaria, e doutoramentos em esoterismo.

O Reitor traiu a ética. A Universidade devia ser o último reduto na defesa da laicidade e não a vanguarda do convite à genuflexão pia, à prática litúrgica e à devoção.