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Eva Monteiro

7 de Novembro, 2025 Eva Monteiro

Segunda Carta a Um Crente

A primeira Carta a Um Crente está aqui. Poderá dar maior contexto à troca que se segue.

E não é que obtive resposta? Contra todas as minhas expectativas, o kardecista que anteriormente me abordou e que após insistência minha disse que eventualmente responderia… respondeu mesmo. Não é costume, pelo que lhe reconheço muito valor pelo respeito e esforço. Decidi partilhar aqui porque poderá ter interesse para os que apreciaram a primeira troca.

Segue a resposta do crente:

Boa noite Eva. Por mais que queira, não está a ser fácil dar-te a devida atenção e por isso peço desculpa pela resposta tardia.

Agradeço-te o cuidado e a profundidade da tua mensagem. É raro encontrar um diálogo que não se limite a slogans e que procura ir à raiz das ideias. É nesse espírito de respeito e reflexão que te respondo.

Quando digo “eu sei que existe”, não me refiro a um saber de laboratório, mas a uma certeza construída pela experiência íntima, pelo raciocínio e pela observação dos efeitos espirituais ao longo do tempo. No Espiritismo, essa certeza não é cega nem dogmática, é resultado de estudo, comparação e repetição de fenómenos mediúnicos que, analisados em conjunto, apontam para a sobrevivência da consciência após a morte.

Kardec nunca afirmou possuir provas absolutas, mas propôs algo que considero de uma lucidez rara para o seu tempo:

“Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.”
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX)

Ou seja, no Espiritismo, crer não é o oposto de pensar. É crer porque se pensa.

É verdade que Kardec não aplicou o método científico no sentido estrito moderno, mas também é verdade que a ciência do século XIX ainda não tinha instrumentos para abordar a consciência como hoje começa a tentar fazê-lo. O que ele fez foi usar o método da observação comparada e recolher milhares de comunicações, eliminar as incoerentes, comparar mensagens de origens diferentes e sistematizar princípios. Não é ciência de laboratório, mas é um método de verificação empírica dentro dos limites possíveis quando o objeto de estudo é o espírito e não a matéria.

Quanto à ideia de que as experiências mediúnicas são meras ilusões neurológicas: o Espiritismo não as exclui. Kardec alertou inúmeras vezes para o autoengano, a influência do subconsciente e dos espíritos inferiores. A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação. A diferença é que, depois de filtradas e repetidas, muitas experiências deixam de poder ser explicadas apenas pela imaginação e é nesse ponto que nasce a convicção pessoal, fruto de observação e de coerência interior.

O teu apelo ao questionamento é algo que também defendo. A diferença é que, para mim, o verdadeiro questionamento inclui não excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limite ao cérebro. A postura espírita não é de negação da ciência, mas de complementaridade, a ciência explica o mundo físico e o Espiritismo tenta compreender o mundo moral e espiritual que o completa.

Não vejo no Espiritismo uma instituição que pretenda impor autoridade sobre o pensamento humano, vejo, antes, uma doutrina que liberta da autoridade ao incentivar o estudo, o livre-arbítrio e a responsabilidade individual. O anticlericalismo, nesse sentido, não é uma ameaça ao Espiritismo, porque este não tem clero, dogma, nem intermediários entre o homem e Deus.

Por fim, não te escrevo por evangelização, nem para arrancar ninguém de lado algum. Escrevo porque acredito que o diálogo sereno entre a razão e a espiritualidade é a via mais digna de evolução que podemos trilhar.
Como bem disseste:

“Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.”
Nisso, estamos de pleno acordo. 🙏

Ora, como é evidente, eu respondi:

Boa noite,

Antes de mais, quero agradecer-te por teres dedicado o teu tempo a responderes-me.

Acho que quando falas em saber que algo existe por convicção pessoal, estás a cair na falácia da ambiguidade. Dizes que “sabes que Deus existe”, mas que não te referes a um saber de laboratório, e sim a uma certeza interior construída pela experiência. É nisto que precisamos de rigor: o verbo “saber” não muda de significado conforme a conveniência de quem o usa. O conhecimento, em qualquer domínio, requer justificação e correspondência com a realidade. Se falta a justificação verificável, não é saber, é crença. A sinceridade da crença não é um selo de verdade. Pelo contrário: faz-se hoje em dia uma apologia da crença como se fosse uma coisa boa e desejável, como se fosse um marco de integridade e bondade, quando no fundo, só significa ter grande convicção na ausência de provas. Um muçulmano, um hindu ou um cristão místico podem todos afirmar “eu sei que o meu deus existe”, e no entanto as certezas deles são mutuamente exclusivas. Para o teu deus existir, o deus dos outros tem de ser falso. Todas as crenças podem ser (e não duvido que sejam) sentidas como verdadeiras, mas não podem sê-lo simultaneamente. A emoção, por mais intensa que seja, não é critério de realidade. Só deste um palavreado mais intelectual à expressão “mas eu acredito”.

Referes que o Espiritismo chega a essa certeza pela repetição de fenómenos mediúnicos e pela observação comparada. Contudo, a repetição de experiências subjetivas, sem controlo e sem exclusão de hipóteses alternativas, não é ciência, é circularidade na melhor das hipóteses. A tua descrição do método kardecista não passa de um processo de confirmação seletiva. Ou seja, eliminam-se as comunicações incoerentes, sistematizam-se as que parecem convergir e conclui-se que há coerência. No entanto, isso só pode acontecer precisamente porque as incoerências foram descartadas. Não é o método científico a ser aplicado. Esse pode ser aplicado por qualquer pessoa, pelo que se o Espiritismo estivesse em posição de ser confirmado pela ciência, já não pertenceria ao campo da crença. É, aliás, um caso clássico de viés de confirmação. Se um cientista aplicasse este procedimento a um fenómeno físico, seria descredibilizado à primeira revisão por pares. Por falar nisso, onde está a revisão por pares do Kardecismo? Ou os pares têm de ser kardecistas? A grande diferença aqui é que a ciência não elimina as anomalias: investiga-as. No Espiritismo, pelo contrário, as anomalias são descartadas para que a hipótese original se mantenha intacta. Ou seja, o que o kardecista faz é o mesmo tipo de “cherry picking” de todas as outras religiões, tradições místicas, ocultismos e afins, mas com uma roupagem científica. Lembra-te que também os Cientologistas o fazem, e com o mesmo resultado: uma mão cheia de coisa alguma (e a outra cheia de dinheiro).

A frase “Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade” não diz rigorosamente nada. É um chavão conceptualmente autofágico. Se a fé espírita tem de encarar a razão, então também tem de se submeter ao critério racional. Ora isto significa que deve poder ser provada, testada e, se falhar, abandonada. Mas o Espiritismo não permite esse exame. Nenhuma das suas afirmações centrais (existência de espíritos, reencarnação, mediunidade, ação dos “fluidos”) resiste ao método científico. Portanto, a própria citação, se levada a sério, aniquila a doutrina que pretende enobrecer. É o mesmo que um astrólogo dizer: “A astrologia é válida apenas se passar pelos testes da astronomia”. Pois claro, só que não passa. E o Espiritismo muito menos. Aceito a ideia de que o Espiritismo possa ser “crer porque se pensa”. Contudo, quando as pessoas pensam mal, acabam a acreditar em falsidades. Daí a necessidade do método científico que, não sendo infalível, é a melhor ferramenta de que dispomos para evitar pensar muito e chegar na mesma a conclusões falsas. A fé que encara a razão não é fé: é hipótese. Se resiste à razão, não precisa de se proteger com metáforas. Se depende da intuição interior, não é conhecimento, não é ciência, não é nada senão aquilo que acontece em todas as religiões do mundo: crença infundada e infundável.

O argumento de que “a ciência do século XIX não tinha instrumentos para estudar a consciência” é um equívoco histórico. O método científico não depende de tecnologia, depende da lógica e do controlo experimental. Em 1859, Darwin publicou “A Origem das Espécies” com base em observação e dedução. Não tinha, nessa altura, um único microscópio eletrónico ou um décimo da tecnologia de que hoje dispomos. O que faltou a Kardec não foram instrumentos, foi precisamente o método. E, mais grave que isso, o que ele propôs não se tornou mais plausível com os instrumentos que a ciência desenvolveu desde então. Se estivesse correto e apenas não tivesse na altura a tecnologia para o provar, o que está a impedir os kardecistas hoje? Não há confirmação da hipótese espírita da sobrevivência da consciência em nenhuma investigação em neurociência, psicologia ou física moderna. Nem sequer há indícios de que a mente exista fora do cérebro, de todo, em nenhum estudo que tenha sido levado ao escrutínio de pares.

Fonte: Britannica

Afirmas que, depois de filtradas e repetidas, certas experiências deixam de poder ser explicadas “apenas pela imaginação”. Essa frase é um exemplo típico da falácia do apelo à ignorância. O facto de não sabermos explicar algo não significa que a explicação espírita esteja correta. Só porque ainda não explicámos algo, não significa que seja inexplicável, é apenas para já inexplicado. E só porque a ciência ainda não explicou determinado fenómeno (sublinho que esse fenómeno deve pertencer ao campo da realidade e não da imaginação), não significa que possas apontar uma explicação sobrenatural só porque te apetece. Se fosse assim, cada lacuna da ciência seria prova do sobrenatural. Essa é precisamente a armadilha do “deus das falhas”, que podemos até apelidar, neste caso, de “espíritos das falhas”: sempre que a explicação natural ainda não está disponível, o sobrenatural preenche o vazio. O problema é que, à medida que o conhecimento avança, as lacunas encolhem e o espiritual recua. A história da ciência é, em grande parte, a história do recuo dos deuses, dos espíritos, das fadas, dos unicórnios, das sereias e restantes criaturas do plano da fantasia. O grande problema está onde dizes “A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação”. O método científico não procura confirmação, procura refutação. Quem procura confirmação é o crente, que precisa muito de acreditar e vai em busca de padrões que justifiquem a crença. Parte da resposta, não parte da pergunta. Não é racional, é emocional, é fé.

Dizes também que o verdadeiro questionamento não deve excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limita ao cérebro. Concordo, não se deve excluir nenhuma hipótese a priori. Mas uma hipótese que não apresenta qualquer evidência positiva é, por definição, descartável a posteriori. Nas palavras de Christopher Hitchens: “O que pode ser afirmado sem evidências pode ser rejeitado sem evidências”. É esta a navalha que corta, a posteriori, as afirmações de Allan Kardec que, por melhores intenções que tivesse, falhou redondamente a missão. Não é uma questão de recusar à partida uma hipótese, é não me ser dado a encontrar nenhum mérito racional na hipótese colocada. O ceticismo não é o dogma da negação: é a recusa em aceitar como verdadeiro o que não foi demonstrado. A diferença pode ser subtil, mas é mesmo essencial. A dúvida é uma virtude precisamente porque nos protege da tentação de confundir desejo com realidade. O tal “wishful thinking” de que tanto falam os americanos.

Quanto à “complementaridade” entre ciência e espiritismo, o termo é sedutor mas intelectualmente falso e muito enganador. Ciência e fé não se complementam, porque operam em planos distintos e com métodos incompatíveis. Aliás, sempre que se tentam misturar, acaba a fé a querer encurtar a ciência. A ciência, por sua vez, não se preocupa com a fé, deixa-a à porta do laboratório porque não cabe lá dentro. A ciência exige prova e refutabilidade. Já o Espiritismo aceita convicção e intuição, como se o valor fosse o mesmo quando definitivamente não é. A complementaridade só é possível se uma abdicar da sua natureza. Historicamente, é sempre a fé que acaba por abdicar (entre birras e pontapés), ajustando-se a contragosto à medida que a ciência avança. Quando o Espiritismo se afirma “em harmonia com a ciência”, é porque se adapta retroativamente aos seus resultados, nunca porque os antecipa ou os demonstra. Caso contrário não se chamava Espiritismo, chamava-se Neurofísica Post-Mortem ou coisa que o valha.

Dizes ainda que o Espiritismo liberta da autoridade. Mas toda a doutrina que parte de postulados inquestionáveis, como a existência de espíritos, a reencarnação, a evolução moral das almas, entre outros, é uma estrutura de autoridade dogmática, ainda que possa não depender de um clero. A ausência de sotainas e chapéus esquisitos não é sinónimo de liberdade intelectual. Um sistema de crenças que não admite a possibilidade de estar errado é, por definição, autoritário. Mesmo que o autoritarismo se disfarce de serenidade. Ora, se o Espiritismo estivesse disposto a reconhecer efetivamente as suas falhas, já não teria adeptos, já teria concluído que não há razão para manter estas crenças, porque não passam no escrutínio do método científico. Eu sou de facto anticlerical. No entanto, só porque um determinado corpo de crenças não é clerical não me faz ter por ele mais consideração intelectual. O que ganha a minha aceitação são os factos, não o que alguém escreveu num livro, ou em muitos, com roupagens pseudocientificas.

Por fim, afirmas que o diálogo entre razão e espiritualidade é a via mais digna de evolução. Eu diria antes que o diálogo entre razão e espiritualidade só é fértil quando a espiritualidade aceita o crivo da razão e se deixa expirar como o iogurte estragado que é. A espiritualidade que resiste à verificação é apenas uma forma de poesia existencial. Pode ser muito bonita, muito afável ao ego, mas revela-se impotente perante a realidade. A verdade não se mede pela paz interior que nos oferece, mas pela correspondência com os factos. Daí que a utilidade da fé para efeitos de conforto emocional não justifique nada.

Fico contente por concordares que evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo. Mas a verdade exige disciplina intelectual: a disposição constante de dizer “posso estar enganado”. Essa é precisamente a diferença entre o método científico e qualquer doutrina espiritual: uma pode falhar e corrigir-se, a outra precisa de permanecer certa para continuar a consolar. E entre a necessidade de consolo e o dever de lucidez, hei-de escolher sempre a lucidez.

5 de Outubro, 2025 Eva Monteiro

Carta a um Crente

(Quase) todas as quartas-feiras sou anfitriã de um debate online em que convido crentes a discutirem temas que me parecem relevantes à luz das suas crenças. Faço-o através da plataforma TikTok e vou lá deixando também, em formato de vídeo, algum conteúdo. Foi com alguma surpresa que encontrei na minha caixa de entrada desta plataforma uma mensagem mais educada e razoável que as do costume (normalmente são insultos). Sou detalhada nas minhas respostas, pelo que no fim, achei que o texto poderia ser útil e decidi publicá-lo aqui. O que se segue é a mensagem inicial desta pessoa:

Ponderei bastante antes de enviar mensagem. Era bem mais fácil não dizer nada e pronto, vida que segue. Mas não consigo concordar contigo em relação às religiões. As religiões têm um papel fundamental na sociedade e esta é somente a minha opinião. E esta é a minha verdade. Tu tens a tua e outra pessoa qualquer poderá ter a dela e está tudo certo. Sem julgamentos, até porque a meu ver cada um tem o seu caminho e trajeto a seguir. Que me digas que houve e há uma instrumentalização por parte dos homens em relação a essas mesmas religiões, sem dúvida alguma, 100% de acordo. No entanto, as religiões na sua essência são apenas e só uma maneira de mostrar valores e distinguir o certo do errado. Percebo que me digas que isso faz parte da educação de cada ser, mas na minha opinião não é a mesma coisa. Pois uma coisa é o pai, ou a mãe, ou mesmo a professora, outra é supostamente uma entidade superior a demonstrar o bem ou o mal.

Atenção que à medida que crescemos todos nós optamos por diversos caminhos e começamos a questionar esses mesmos ensinamentos. O que é normal pois são apenas histórias que passaram de pessoas para pessoas e que quem as passa age como se fossem verdades absolutas.

Como é lógico, devemos questionar sempre e não acreditarmos em algo só porque sim. Devemos tirar as nossas próprias conclusões, pelas nossas próprias experiências e também pelas nossas pesquisas se assim o desejarmos e quisermos saber mais. Por exemplo, se me perguntares se eu acredito em Deus, eu vou responder o que respondo sempre. Eu não acredito, eu sei que Existe.

Não me identifico com nenhuma religião. Fui educado sim na igreja católica cristã (é cultural) e tive passagens pelo budismo. No entanto, desde os meus 5 anos de idade que tenho contato com outros planos, que não aquele que estamos no momento presente. Estudo o espiritismo segundo Allan Kardec, sempre baseado no método científico.

Como eu costumo dizer, o espiritismo não é uma religião, é um modo de vida. É apenas a maneira como vemos o mundo e que não há certos nem errados, há apenas experiências e modos de fazer e ver as coisas de maneira diferente. Lá porque dizes que algo é assim e eu digo que é assado é tudo uma questão de perspectivas. Estamos sempre a aprender e a evoluir.

Peço desculpa pela intromissão e pelo testamento. Bom fim de semana.

A minha resposta:

É a tua vez de me perdoares a extensão da resposta. Quando acabei de a escrever dei conta que talvez tenha sido detalhada demais. Ainda assim, acho que devo escrever o que tenho a dizer e tu decidirás se tens o tempo e a paciência de fazeres a leitura e até, se eu tiver alguma sorte, responderes aos pontos em que discordo contigo.

Prometi que te respondia mal pudesse dar atenção completa à tua mensagem e tive algum tempo para ponderar. É sempre um sinal de integridade intelectual quando alguém que me manda mensagem privada numa rede social se dispõe a refletir, questionar e dialogar, mesmo quando o tema é sensível; e poucas coisas o são mais do que as crenças religiosas. Por isso, antes de mais, quero agradecer-te novamente pela mensagem.

O facto de não concordares comigo quanto às religiões é válido, temos direito a portar diferentes opiniões e a defendermos diferentes posições. Contudo, eu acredito em fundamentar as minhas posições e a questionar o fundamento das posições contrárias à minha. Desta forma, posso entender se a minha posição está afinal, errada. Hoje não foi o dia. Parece-me que confundes, antes de mais, opinião com verdade. Esta ideia de que dada coisa é “a minha verdade” é completamente descabida. É a tua opinião, faz parte da tua mundividência, é o que tu achas. A verdade é outra coisa. Não depende da opinião nem da perspectiva de quem afirma que algo é verdadeiro, mas da coerência entre a afirmação e a realidade. Isto é, uma afirmação é verdadeira se corresponder aos factos ou ao estado de coisas que a pessoa afirma.

Quanto a opiniões, cada um tem a sua, é verdade. Por outro lado, não devo aceitar tudo o que me dizem só porque as pessoas têm direito a terem opiniões. Podemos certamente concordar que nem todas as opiniões fazem sentido. Há quem acredite que a terra é plana. Têm direito a acreditar numa coisa falsa, mas eu não tenho que aceitar que a terra é plana só porque essa é a opinião de uma pessoa que está muito claramente errada mas que decidiu ser essa “a sua verdade”. Há opiniões sobre tudo e para todos os gostos. Algumas opiniões são inócuas, outras têm consequências. Quando a consequência só atinge o próprio, está tudo bem. Quanto a consequência atinge outros ou a sociedade em geral, creio que opor-me é imperativo.

Do ponto de vista histórico, é verdade que as religiões moldaram civilizações, inspiraram arte, música e literatura, e serviram de estrutura moral e social durante séculos. Mas a questão crucial é: a que custo e com que fundamentos. A religião, de uma forma geral, foi a primeira explicação que a humanidade conseguiu dar a grandes questões, mas não foi a última nem foi a melhor. Pelo contrário, é a mais imperfeita das explicações do mundo e a que provocou piores danos. Contudo, ainda que não tivesse provocado danos e não fosse hoje uma visão obsoleta, o facto de em tempos ter tido utilidade não significa que seja verdade. São dois conceitos diferentes. Um vidente pode ser útil a um cliente que lá vai desabafar, mas não deixa de ser charlatanice. Naturalmente, não concordo contigo que as religiões ainda têm esse papel social, pelo menos no ocidente secularizado em que as leis, feitas por pessoas para pessoas, moldam a nossa vida diária. Por outro lado, a religião mantém esse poder em países onde a teocracia é a regra. Acho que basta olhar para os países que não fazem a separação entre o estado e as organizações religiosas para vermos o quanto a religião corrompe e destrói sociedades inteiras.

Quando alguém me diz que as pessoas é que instrumentalizam a religião, sinto que estamos a cair numa tautologia. A religião não é petróleo. Não é uma coisa que a humanidade descobriu e que não soube usar corretamente. A religião é uma construção humana cujo objetivo é o controlo. Parece-me por isso evidente que um instrumento seja… instrumentalizado. Basta olharmos para as sociedades para entendermos que tipo de deuses é que as pessoas criam. Uma sociedade de pequenas tribos, onde toda a gente se conhece e em que a violência e o crime são situações pontuais e aberrantes tende a ser animista. Já uma sociedade que desenvolve grandes cidades tende a criar deuses que vigiam, que estão em todo o lado, que castigam pecados. A religião é o que as pessoas criam antes de desenvolverem sistemas legais e modos mais seculares de regulação social.

Na sua essência, as religiões não te dão um sistema de valores. Pelo contrário, és tu que imprimes moralidade à religião que professas. Por isso é que tantos cristãos não são racistas, misóginos e violentos, apesar de o seu livro sagrado estabelecer um sistema de “valores” absurdo e impensável. Se decidisses agora seguir à letra o sistema de valores que o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo oferecem nos seus escritos sagrados, só não ias parar à cadeia se te rebentasses juntamente com uma bomba, ou te suicidasses após desatares a matar infiéis, pecadores, bruxas, ateus e outros. Se seguisses à letra esse sistema de “valores”, não distinguirias o certo do errado. É porque consegues distinguir o certo do errado que tens a capacidade de ignorar as partes imorais de uma religião e selecionar ou reinterpretar as partes que se coadunam com o teu sistema moral.

Para mim, distinguir o que é bom e o que é mau também não faz inteiramente parte da educação de cada pessoa. Faz também parte do processo de seleção e da sobrevivência da espécie. Somos uma espécie cooperativa e se não tivéssemos a capacidade de coexistir, de saber que não se faz mal aos outros, que devemos ser bons uns para os outros, não sobreviveríamos enquanto espécie. Com todos os defeitos que temos, temos tendência a não sermos violentos, a não sermos destruidores da nossa própria espécie. É coisa comum a muitas espécies, especialmente entre os mamíferos e especificamente entre os primatas que nos são, do ponto de vista da evolução, mais próximos. A mãe e o pai, ou a mãe e a mãe, ou o pai e o pai, ou a avó, o avô, o tio, a tia, ou seja quem for que educa uma criança tem um papel essencial na sua vida através da educação e isso eu não nego. Uma criança bem educada terá um futuro mais feliz e útil, para si e para os outros. Contudo, falas de uma entidade superior que demonstra o bem e o mal. Suponho no entanto que o teu deus, seja ele qual for, nunca te respondeu às preces de forma audível e verificável. Não temos quaisquer provas de que uma entidade sobrenatural alguma vez tenha falado ou aparecido a alguém. Temos é padres, pastores, bispos, apóstolos, profetas, gurus e restantes líderes espirituais que dizem saber o que está certo e o que está errado, e que afirmam o que é ou deixa de ser a vontade do respetivo deus. Ora, cada líder religioso tem a sua opinião sobre o que está certo ou errado, pelo que não existe nessa suposta comunicação divina objetividade suficiente, nem nos dias de hoje nem ao longo da História, para suportar a tua afirmação. Eu creio que entendes isto, pela forma como escreves, mas não me parece que entendas que o que dizes num parágrafo contradiz o que dizes no parágrafo anterior.

Concordo que devemos questionar, tirar as nossas próprias conclusões, como dizes. Mas então em que momento desse processo é que entra deus?

Dizes uma frase que já ouvi centenas se não milhares de vezes em debates, especialmente com cristãos e muçulmanos: “Eu não acredito, eu sei que Existe.” Na verdade é o oposto, tu não sabes, tu acreditas. É matéria de fé e não de facto. Se soubesses efetivamente que o teu deus existe, terias como prová-lo. Se fosse esse o caso, não estaríamos a debater via mensagem no TikTok, terias mostrado esse facto à humanidade, não existiriam ateus e terias ganho meia dúzia de prémios Nobel e pelo menos uma beatificação. É apenas, e lamento ter que to dizer de forma tão direta, uma frase feita daquelas que os padres e os pastores gostam de atirar ao ar mas que carecem de qualquer tipo de sentido. É aquela jogada de dizer “eu sei no meu coração que deus existe” – se sabes no teu coração, não sabes na tua cabeça. Estou interessada naquilo que é verificável, não em “verdades pessoais” que é uma forma de dizer crenças infundadas.

Quando alguém me diz que não se identifica com nenhuma religião chego sempre à conclusão que é porque não se querem comprometer à partida com determinados dogmas, com os quais podem não concordar ou não saber como sustentar. No entanto, quando faço perguntas a quem diz que não se identifica com nenhuma religião, chego sempre à conclusão que o deus em que acreditam é aquele que lhes foi imposto na infância e que as suas crenças religiosas vão de encontro às crenças da instituição religiosa correspondente, ainda que não na sua totalidade. Resumindo, posso dizer que apesar de tu não te identificares com nenhuma religião, bastariam 10 minutos de conversa honesta para eu fazer essa identificação por ti. Aliás, esse diálogo, a ser feito internamente e de forma honesta, provavelmente também faria com que te identificasses com alguma religião. Vou apostar, sem muita base, porque essa conversa não aconteceu, que acreditas no deus da Igreja Católica (omnisciente, omnipotente, omnipresente e bom), mas que gostas de práticas mais místicas pelo que em vez de ires à missa preferes meditar e que não te identificas com a Igreja Católica porque o Kardecismo te conferiu a crença de que o mundo dos espíritos está ao teu alcance, quando a Igreja o nega. Isto é, descaradamente, um pré-conceito da minha parte. Não o nego e até peço desculpas se estiver errada. No entanto, apostaria uns euros nesta opinião se fosse forçada a isso.

Quanto ao espiritismo e à ideia de contacto com outros planos, o que posso dizer é que a sinceridade da experiência não garante a veracidade da interpretação. As experiências subjetivas (visões, intuições, sentimentos de presença) são universais e explicáveis em termos neurológicos e psicológicos. A mente humana é extraordinariamente criativa, e o cérebro é capaz de gerar experiências intensamente reais que, no entanto, não têm correspondência objetiva. O método científico serve precisamente para proteger-nos dessas ilusões, inclusive das mais agradáveis.

Embora Allan Kardec afirmasse seguir o “método científico” na elaboração da doutrina espírita, na realidade ele nunca aplicou qualquer procedimento científico reconhecível. Não houve observação controlada, hipóteses testáveis, experimentação reproduzível nem revisão por pares. O que Kardec fez foi recolher relatos mediúnicos e interpretá-los à luz das suas próprias convicções, apresentando-os como factos. Esse processo pode ter sido feito com sinceridade, mas não é ciência, é especulação metafísica. A ciência baseia-se em evidências verificáveis e na possibilidade de refutação. Já o espiritismo baseia-se em testemunhos subjetivos e fenómenos não demonstráveis. Portanto, apesar de Kardec desejar dar ao espiritismo uma aparência racional, os seus escritos pertencem ao domínio da crença, não ao da investigação científica. Que seja esse o teu modo de vida é uma escolha pessoal que não tenho que questionar. Contudo, é só isso, uma escolha de vida que em nada demonstra a veracidade dos ensinamentos que escolheste seguir e que em nada se baseia no método científico.

Concordo inteiramente contigo num ponto essencial: devemos sempre questionar e continuar a aprender. O problema é que o verdadeiro questionamento exige que também coloquemos em dúvida as nossas certezas mais íntimas, inclusive as espirituais. E é aqui que a postura ateísta não é uma negação da espiritualidade humana, mas uma exigência de honestidade intelectual. Por fim, suspeito que o que te incomoda no meu conteúdo é sobretudo o anticlericalismo. Deixa-me só referir que o anticlericalismo não é ódio à religião, mas defesa da liberdade de consciência contra qualquer instituição que pretenda ter autoridade sobre o pensamento humano. É uma oposição ao poder clerical. As igrejas e demais instituições religiosas e espirituais, todas elas, devem ser submetidas ao mesmo escrutínio que qualquer outra forma de poder. Isso não é intolerância; é maturidade intelectual.

Ao ler e reler a tua mensagem fico na dúvida: seria uma forma de evangelização? Tens como objetivo arrancar-me do ateísmo herege e pecaminoso? Tiveste necessidade de partilhar as tuas crenças porque sentes que o meu conteúdo as invalida de alguma forma? Ou só quiseste iniciar um debate? Não sei, mas agradeço na mesma a tua mensagem. O diálogo é o que nos permite evoluir.

Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.

29 de Janeiro, 2025 Eva Monteiro

Nem só de religião vive o ateu

O ateísmo, por si só e nos tempos que correm, não é nada de excitante. A ausência de alguma coisa não significa que haja um vazio a preencher. Ser-se ateu é apenas uma recusa em acreditar em deuses. Ora, posto isto a discussão acaba aqui. Não há uma mundividência ateia, um sistema ético ateu ou um modo de vida ateu. Este último no sentido em que o ateísmo não acrescenta, apenas retira. Não significa que o modo de vida de um ateu não seja rico e preenchido – por outros meios. Em suma, o ateísmo não é uma religião e não pretende oferecer nada além dessa ausência.

Para que eu seja ateia é necessário que exista religião e que ela seja prevalente. O ateísmo existe apenas como reação ao mundo infetado em que vivemos, tomado conta por um vírus existencial que recusa emancipar-se de um pai ultrapassado e senil que há muito devia ter deixado de ditar as regras lá em casa. Neste sentido, o ateísmo vive da religião porque na sua ausência seríamos apenas normais.

Não obstante esta luta entre acreditar e não acreditar numa ideia sobrenatural que pertence à infância da humanidade, nem só de religião vive esta ateia e, creio, outros ateus. Necessito de uma mundividência, de estabelecer valores éticos e um modo de vida. É o Humanismo Secular que preenche esse lugar onde recuso deixar entrar o dogma religioso e os sistemas arbitrários de falsa moralidade que as religiões oferecem. Se abraço assim a razão humana, a ética, a justiça social e o naturalismo, esta ateia vive também de política. Aliás, como ativista ateia, haverá pouco do que faço e vivo que não esteja imbuído desta coisa que se refere à vida em sociedade e a relação com o poder.

Neste sentido, é como humanista secular que hoje escrevo, além de enquanto ateia. Li ontem um artigo do Vatican News em que se dá conta de uma nota dos Dicastérios para a Doutrina da Fé (anteriormente chamados de Inquisição – sim essa) e para a Cultura e Educação em que “são destacadas as potencialidades e os desafios nos campos da educação, economia, trabalho, saúde, relações humanas e internacionais, bem como em contextos de guerra.”. À primeira vista não posso deixar de concordar que existem desafios. No entanto, basta continuar a ler para entender que o Sr. Jorge Mário tem umas ideias pouco originais sobre a IA, fruto de uma longa tradição católica de combater tudo o que é novo e que retire protagonismo ao seu modo de vida dogmático e redutor.

Nem tudo o que se diz na “Antiqua et Nova” é de deitar fora. Nem tudo, mas muito. Refiro-me à pressa em advertir os crentes que não endeusem a IA. Não que eu a queira endeusar, mas eu, pelo menos, não invento deuses para controlar grupos de pessoas. O Papa, vulgo Sr. Jorge Mário, tem receio do “Poder nas mãos de poucos”. A piada faz-se sozinha, claro.  Preocupa-o (além da guerra que também me preocupa), a “antropomorfização da IA” gerando relações fraudulentas. Mais uma oportunidade perdida de um gracejo pouco simpático. No seu costumeiro ímpeto de controlar a sexualidade humana, o documento avança que “usar a IA para enganar em outros contextos – como na educação ou nas relações humanas, incluindo a esfera da sexualidade – é profundamente imoral e exige vigilância rigorosa”. Mas quem vigia a igreja que há séculos o faz?

O texto fala de preconceito e discriminação, de perdas no desenvolvimento do pensamento crítico, de fake news e deep fakes, de manipulação, informações falsas, enganos, de alimentar o ódio e a intolerância, da desvalorização da beleza e intimidade da sexualidade humana e da exploração dos fracos e indefesos. O Sr. Jorge Mário vai mais longe e critica o controlo da consciência humana pela IA, a vigilância do cidadão comum para proveito de outros, a exploração de recursos naturais para alimentar a IA, mas acima de tudo, alerta que a “presunção de substituir Deus por uma obra de suas próprias mãos é idolatria”.

Em suma, depois de listar tudo aquilo que tem feito nos últimos 2000 anos e que sente ser apanágio da ICAR, o Sr. Jorge Mário identifica o busílis da questão: a Igreja sente-se gradualmente substituída por uma imaginada IA maldosa (quiçá competitiva também neste campo com as atrocidades que a ICAR cometeu ao longo de séculos) e isso não dá jeito nenhum.

Por fim, um campo em que eu e o Sr. Jorge Mário concordamos:

Em particular, no âmbito do trabalho, destaca-se que, se por um lado a IA tem “potencial” para aumentar competências e produtividade ou criar novos empregos, por outro, pode “desqualificar os trabalhadores, submetê-los a uma vigilância automatizada e relegá-los a funções rígidas e repetitivas”, a ponto de “sufocar” toda capacidade inovadora. “Não se deve buscar substituir cada vez mais o trabalho humano pelo progresso tecnológico: ao fazê-lo, a humanidade prejudicaria a si mesma”.

Dizia eu há pouco que nem só de religião vive o ateu. Eu vivo deste Humanismo Secular que me auxilia a identificar-me como pessoa que luta pelo bem estar de todos, em sociedades dignas e dignificantes sem recurso a falsas promessas de castigo ou recompensa após a morte. Eu concordo com o Sr. Jorge Mário no que diz respeito à IA no campo do trabalho ainda que não corra o risco de a endeusar e a enfiar na ausência de religião a que o meu ateísmo obriga.

Ao contrário do Sr. Jorge Mário, a minha solução proposta não é a fuga para um passado medieval de bruxas, demónios e fogueiras. Sugiro que todas as empresas que utilizem inteligência artificial ou outras tecnologias para substituir o trabalho humano sejam obrigadas a pagar impostos proporcionais aos encargos fiscais que teriam caso essas tarefas, funções ou postos de trabalho fossem ocupados por pessoas. Os valores arrecadados com este imposto teriam de ser direcionados para a criação de um rendimento básico universal, garantindo que os trabalhadores, em vez de serem simplesmente descartados, pudessem beneficiar dos avanços tecnológicos. Dessa forma, a automação não serviria apenas para maximizar os lucros dos CEOs à custa do desemprego em massa, mas sim para promover uma distribuição mais equitativa da riqueza gerada pela inovação. Ou seja, mais tempo para viver, com os meios para aproveitar esse tempo. Talvez o Sr. Jorge Mário devesse estar menos preocupado com a manutenção da imagem de infalibilidade da ICAR e da perda crescente de crentes (por consequência, do dinheiro que geram), e mais preocupado em realmente encontrar soluções para a sociedade em que vivemos. Nem só de pão vive o homem – dizem eles. É verdade, pessoalmente gosto de um bom Alvarinho e um queijo a acompanhar. E preferia ter como os pagar.

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento

20 de Junho, 2024 Eva Monteiro

Daniel Dennett

Cientista e filósofo, o Professor Dennett escreveu extensamente sobre a consciência e foi um dos Quatro Cavaleiros do Novo Ateísmo. O homem era genial, morreu aos 82 anos de doença pulmonar intersticial em abril passado. Não fez notícia nos meios de comunicação social portugueses e mesmo eu só soube há uns dias.

Dos Quatro Cavaleiros do Novo Ateísmo, restam-nos agora dois. Hitchens morreu há mais de uma década com cancro do esófago e agora Dennett abandona-nos também. Espero que Harris e Dawkins nos presenteiem com muitos anos da sua presença mas a verdade é que esta geração de livres pensadores está a envelhecer e não vai andar cá sempre. Que a comunidade de céticos e ateus produza mais Cavaleiros e mantenha viva a obra destes grandes homens.

Daniel Dennett morreu, mas a sua obra perdura. Que mais pode um ateu querer?

29 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Mandar o Papa para o Céu

A publicação no X, acerca dos primeiros minutos da tertúlia, pode ser encontrada aqui.

Tempos houve em que mandar alguém para o inferno era mau. Agora, até mandar para o céu é insulto. Eu diria que é, porque a parte má está em morrer e não no que acontece depois, que é rigorosamente nada. E se isto não fosse claro e universal, não teria lido a notícia que li hoje no Observador – Programa Sacerdotal torna-se viral no YouTube depois de padres desejarem que Papa “possa ir para o céu o quanto antes”.

Não me chocou particularmente que estes padres desejassem a morte do Papa. Muitos não devem gostar dele, sejam católicos ou não. Se para um ateu a Igreja é uma coisa medievalista e retrógrada, para muitos dos seus membros, está a tornar-se um absurdo de modernidade. O contexto é simples: trata-se do episódio de dia 22 de fevereiro de uma terúlia sacerdotal – La Comunión en la mano: doctrina, mentira y desobediencia – La Sacristía de La Vendée: 22-02-2024 – que discute por sua vez um documentário (?) intitulado Comunhão na Mão, o Triunfo da Desobediência. O tema? Comungar na mão ou comungar na boca. Vamos pôr aqui um pin, que já cá voltamos.

Quando morre um Papa, o representante de deus na terra, outro é eleito, num conclave que reune o Colégio dos Cardeais no Vaticano. Não me vou alongar nos procedimentos através dos quais um Papa é eleito, porque já me bastou o tempo que dediquei aos vídeos acima, mas para quem realmente estiver interessado nos detalhes e rituais que compõem este momento da Sé Apostólica, pode ler mais aqui. Certo é que se entende, no mundo católico, que deus participa deste conclave inspirando o voto dos seus participantes. Assim, o cardeal eleito é escolhido por deus através do voto dos seus principais sacerdotes.

Seria de estranhar que sendo deus a escolher, ou a inspirar a escolha do seu representante na terra, do herdeiro do Apóstolo Pedro, a Igreja na sua representação humana, alguém então detestasse, odiasse, desejasse a morte deste ser tão santificado, especialmente no seio da própria organização sagrada que representa. Seria estranho se não soubéssemos que esta organização é inteiramente constituída por homens, sem intervenção divina, e que não representa na terra mais do que 2000 anos de patriarcado, crendice e atentados à inteligência humana. Vistas as coisas por esta perspetiva não me é assim tão estranho que sete padres católicos se juntem durante duas horas para cascar forte e feio no Papa que os rege.

É interessante que começam por rir de forma irónica quando um deles faz votos que o Papa vá depressa para o céu. Mas é mais interessante ainda que ir rapidamente para o céu seja negativo. Não é isso que se pretende? Quanto mais depressa se morre, mais depressa se acede à vida eterna de contemplação de deus. Aquele sorriso, no entanto, não engana. Ele que vá com os porcos, é o que leio ali. Que coisa tão… cristã de se dizer.

E tudo isto porque supostamente o Papa é muito progressista, é de esquerda. Sim, aparentemente o padre Charles Murr considera que se pode estar à esquerda, seja na política, seja na religião. E estes senhores, por essa ordem de ideias, estão mesmo à direita. Qualquer dia começam a celebrar a missa em latim, virados de costas para os crentes. Queixa-se de tudo, que há gente que não se confessa, mas vai comungar, que no funeral de uma pessoa trans, havia ateus e maçons e foram todos comungar. Isto é uma balbúrdia!

Então qual é a queixa central que lhes levou duas horas a discutir apesar de estarem todos à direita religiosa? Comungar com as mãos ou comungar com a boca, conforme aliás, é o tema do documentário supracitado. Esta vossa ateia muito riu com isto! Há fóruns onde fãs acérrimos de obras de ficção discutem teorias com este fervor, mas depois vão todos à livraria mais próxima comprar outros livros e tomar um café amigável. Isso eu entendo. Agora, se o crente leva a hóstia na mão ou se a toma na boca para mostrar reverência ao corpo de cristo, isso já me dá para a perplexidade.

Resumidamente, as pessoas começaram a pensar na porcalhice que é um padre enfiar os dedos nas bocas dos crentes todos. E passou a ser prática comum receber a hóstia na mão e levá-la à boca. Estes padres consideram que isso é desrespeitoso para com o corpo de cristo e acham que o Vaticano agora inventa liturgia. Caberia aqui dizer que tudo o resto que está para trás é igualmente inventado e que a hóstia é só um pedaço do alimento mais sem sabor que se conseguiu criar para o efeito. Foi como assistir a uma partida de Magic The Gathering, mas sem a emoção de saber quem vai ganhar. Só me ocorria que eram dezenas os participantes no chat do YouTube sem noção do quão ridícula é a questão.


Certo é que a piadola lhes correu mal e vieram depois desculpar-se num Tweet (Xweet?). Seriam mais corajosos se assumissem o que disseram. Alguém lhes explique que para alguém ir para o céu, tem que morrer antes. Basta ouvir o restante do conteúdo para entender que consideram que este pontificado é o pior de sempre, e que não gostam do chefe deles. Para um ateu, não seria problema. Faz-mequestionar se estes homens são mesmo crentes ou se são apenas adeptos dos jogos de poder, das fofoquices, do corta na casaca, enfim das cantigas de maldizer. Hei-de confessar-vos (mas não de joelhos), que gosto mais deles assim do que a pregar a palavrinha do senhor. Só não gosto é que ainda haja quem dê importância a isto e nos queira atirar para a Idade Média.

19 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

O Dom do Dom Aguiar, Que Afinal é Política

Não foi uma grande entrevista, mas foi uma entrevista grande. Digo isto porque me chateou quase do início ao fim, a Grande Entrevista (Temporada 17, Episódio 7, 14 de fevereiro de 24) com Américo Aguiar. Ponderei se devia fazer aqui um comentário ou não. Em boa verdade, que é isto se não o dia a dia de uma ateia? Desculpem-me os meus consócios que preferem uma postura mais neutra quanto à influência da Igreja Católica em Portugal e no mundo, mas eu calada fico com azia e diz que isto dá úlceras.

Vítor Gonçalves caracteriza-o como o “rosto da JMJ” e como tendo tido uma “ascensão fulgurante na Igreja portuguesa”. Tudo coisas que eu não escolheria para elogiar alguém, mas que não deixam de ser verdade. Depois refere que Américo Aguiar decidiu encontrar-se com os cabeças de lista de todos os partidos que concorrem no círculo eleitoral de Setúbal. Eh lá, foi aqui que comecei a pensar, “dá-lhe o Papa um dedinho, já o homem quer um braço e uma perna”. Mais me espanta que os ditos partidos lhe tenham feito a vontade, mas sabemos que a Igreja continua a movimentar esse tipo de influência.

A ideia que Américo Aguiar passa de que a Igreja não se pode afastar da política não é nova. Aliás, o seu maior problema é ser antiga. Desde que conseguiu deitar a mão, ou a cruz, a meia dúzia de pessoas influentes, que a Igreja se tem dedicado historicamente a influenciar a política das nações. No passado, fê-lo com tanto sucesso que um rei não era rei na Europa, sem beijar o anel ao Papa em Constantinopla. Mais recentemente, a Igreja Católica abraçou o Estado Novo em Portugal até se tornar evidente que estava do lado da História que teria de perder. No pós-25 de Abril, lá se agarrou ao poder que pôde manter, com a segunda Concordata (2004) que lhe garantiu muitos dos privilégios que Salazar lhe havia concedido em 1940. Antes fosse uma ideia nova. Mas a Igreja tem esta tendência de estender tentáculos para todo o lado.

Que conhecimentos tem o Cardeal de política para ser convidado a fazer este comentário na RTP? Ora, sabe que a raiz da palavra “política” vem do grego antigo, πολιτεία (politeía), que se refere à participação na vida coletiva de uma sociedade. A partir daí a coisa deixa de correr tão bem. Se calhar é porque já há muito que abandonou a política e já só lhe ficaram os chavões. Portanto, para Dom Aguiar, justifica-se que a Igreja meta o proverbial nariz na política porque tem de estar envolvida “naquilo que são as alegrias e as tristezas, os sorrisos e as lágrimas” do povo a que se dirige. E até é tão inclusivo que refere outras religiões, não que tenham muita importância no seu discurso. E até respeita muito os não-crentes. Só não o suficiente para não se meter onde não é chamado.

Ora, as decisões políticas referem-se (não só, mas também, e principalmente) à alocação de recursos. Vulgo, onde se gasta o dinheiro público obtido por meio de impostos. Portanto, o Cardeal quer ter uma palavra a dizer naquilo para o qual não contribui, dado que impostos não é coisa que lhe assiste. Pensando bem, é a postura tradicional da Igreja. Uma instituição de homens a quererem ter uma palavra a dizer sobre o que a mulher pode ou não fazer com o seu próprio corpo, uma instituição de supostos celibatários a querer ter uma palavra a dizer sobre o que constitui ou não uma forma de amor válido, uma forma válida de constituir família, até uma forma válida de morrer. Um conjunto de homens cujo objetivo é viver o menos possível a querer cortar as asas a quem só quer ser livre.

A influência que Américo Aguiar quer vai da freguesia ao mundo. Já não me devia chocar, mas a esta altura ainda vou nos dois primeiros minutos desta entrevista de quase uma hora, e já o coração me quer saltar da boca. Ah esperem! A igreja não se pode meter em questões partidárias. E qual é a diferença? – pergunta Vítor Gonçalves. E eu queria ter estado lá, para dizer “nenhuma!”. Falei para a TV, como os adeptos de futebol mais irascíveis. Mas o Cardeal não explica a diferença. Deixai-me dizer eu contudo, oh gentes da minha terra: o padre não precisa de dizer aos crentes em quem votar. Basta defender ativamente a mesma postura que o seu partido de eleição para que o crente entenda em quem deve votar. E essa manipulação sempre foi feita de uma maneira ou de outra. Não tivesse o Cardeal começado a sua enumeração de partidos candidatos ao círculo eleitoral de Setúbal com… a Aliança Democrática.

Valeu-me concordar com o Bispo de Setúbal numa coisa, não se justifica a abstenção. Já dizer que é pecado, foi um momento de humor que apreciaria, se quando se falasse em pecados se falasse sempre com esse tom jocoso. Mas o alívio é momentâneo. É que dizer que a Igreja deve meter-se na política é fácil, difícil é quando se lhes pede para identificar um partido que esteja a ir contra a ideologia da Igreja Católica. E parece que para Américo Aguiar, a pergunta é tão difícil que o discurso ora anda em círculos ora anda a fugir. Para o cidadão consciente, a pergunta não é assim tão complicada. Pensando uns segundos, conseguimos todos identificar os partidos que defendem o que a Igreja diz defender, e os que defendem o que a Igreja não admite defender.

Ei-de rir sempre de um bispo de critica quem vota num dado partido sem nunca ler a sua proposta. É o melhor tipo de humor, aquele que se faz sem querer. A Igreja é a instituição que mais aceita e promove que os seus crentes não leiam o programa. É para isso que o sacerdote serve, para dizer o que diz na Bíblia. Ora agora, ler aquilo tudo, e com páginas tão fininhas. Nem o padre na missa lê tudo, escolhe sempre a dedo o que convém mostrar, vai agora o crente ler o programa todo. Ainda mudava de ideias.

Não discordo, contudo, que os programas são para ler, os objetivos de um partido são para conhecer e a posição da Igreja ou bem que é clara ou bem que se deve calar. E de preferência deve calar. Num país laico, tem de calar. O Bispo de Setúbal lá foi forçado a criticar os partidos que são a favor do aborto ou da eutanásia. Que choque! No entanto, antes tinha falado da dignidade humana, pelo que fiquei sem saber o que quer, afinal, o sacerdote.

Ao menos posso encontrar outro ponto de concordância com o Cardeal, que é o de aceitar e receber bem os imigrantes que cá chegam, tal como gostaríamos que os nossos tivessem sido aceites lá fora. Concordo, sim. Também concordo que há ameaças à democracia em Portugal, na Europa e no Mundo. Só não concordo que fuja à questão da ascensão da extrema-direita em Portugal preferindo referir-se às políticas europeias e criticar Putin, Trump e a guerra na Ucrânia apenas para mais uma vez, evitar falar do elefante na sala. Só não evita sublinhar que tem amigos em todos os partidos. Acredito que tem.

Chega-se ao fim e Américo Aguiar fala como cidadão e não como sacerdote. Pouco fala sobre a Igreja naquilo que são as decisões políticas e sociais do país. Mas pega nisso como mote para defender que a Igreja se deve meter na política. Não deve não. O cidadão, independentemente de ser ou não crente seja no que for, deve votar. Não é preciso vir um Cardeal dizer isso, mas dá jeito.

Estava eu já a entrar numa certa simpatia pelo Cardeal e eis que surge o tema das JMJ. Afinal, esperem lá, já não quero beber um copo com o Dom Aguiar. Começa por agradecer a Portugal e aos Portugueses. É bom que agradeça, porque ao que tudo indica, a coisa não ficou nada barata e teve momentos verdadeiramente vergonhosos. Diz o Cardeal que as JMJ deram lucro. Ultrapassa os 20 milhões, diz orgulhosamente. Falou muito, mas não disse de onde tirou 20 milhões em lucros. A organização lucrou 20 milhões? Ah bom! Isso acredito. E quanto gastou o Estado para proporcionar as condições para que a organização das JMJ lucrasse 20 milhões?

Cito: “O senhor patriarca acha que a Fundação deve continuar, para concretizar agora a materialização do que se venha a fazer com o lucro”. Faz-me lembrar as frases que se dizem em reuniões com empresas de atividade corporativa que levam a cabo projetos empresariais. Ou seja, coiso. E daí não melhorou a sua competência em explicar exatamente para onde vão os 20 milhões que tantos mais milhões custaram aos bolsos dos contribuintes. A meu ver, as contas que antecedem esse lucro é que devem ser revistas. Ou seja, quanto pagou afinal o Estado, a fundo perdido, para que o evento se realizasse?

Outra questão que não vi abordada e que me parece uma falha indesculpável, é a questão dos outdoors que foram retirados da via pública, que chamavam a atenção para as mais de 4800 crianças cujo abuso no seio da Igreja Católica é conhecido. Aliás fica aqui, que é para o Dom Aguiar não se esquecer, já que fala da dignidade humana com tanto afinco:

Outdoor “+49800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal” censurado durante as JMJ.

Dos problemas sociais que aponta, abusos sexuais dentro da Igreja Católica não foi tema. Para mim, foi o único tema que valia a pena discutir na farsa das JMJ. Surpreendeu-me que o entrevistador tenha decidido tocar nesse tema. E que suavemente até tenha tentado que o Bispo se focasse na realidade ao invés do que ele deseja que a realidade fosse. Doeu-me ouvir que ele quisesse corrigir os números. Não foram 4800 casos, foram 500 e tal denúncias que permitiram essa extrapolação. E isso em 70 anos, nem foram 70 dias. Ah! Bom! Então muito melhor. Afinal nem é nada de assim tão grave.  E o Cardeal está muito contente porque a transparência e a tolerância zero começa a ser normal.

Sou só eu que acho que dizer isto é absurdo? Está contente? Eu não estou e duvido que alguma das vítimas esteja. Já os padres que foram denunciados e que continuaram com as suas vidinhas, devem partilhar dessa felicidade. Resta-me questionar onde está mesmo a tolerância zero, ou a transparência. E já agora, perguntar se numa instituição que insiste representar um deus omnisciente, omnipotente e bom, há espaço para que estas coisas sejam ditas sem uma gargalhada de desespero como som de fundo.

Por fim, aborda-se o tema do momento: abençoar os casais em situação irregular. Só a frase arrepia. Existem casais em situação irregular? E isso da bênção, é esmola? Casar não, mas olha, ide lá com a graça do senhor. Mas é piada? É a isto que se bate palmas? A meu ver não há que abençoar casais, nem há que os unir em sacramento. É uma não-questão para mim porque sou ateia. Mas permite-me ver a hipocrisia desta instituição.

Vem agora o Cardeal falar em opções. Abençoa as duas pessoas (homossexuais) e não as suas opções. Alguém de Setúbal que esclareça o Bispo da sua terra que ninguém escolhe ser quem é. Nasce-se heterossexual, como se nasce homossexual ou qualquer outra variação naquilo que sabemos ser um espectro. Portanto, dado que esta pessoa acredita que deus nos fez à sua imagem e dado que ser homossexual não é escolha, foi deus que criou a pessoa com aquela orientação sexual. Alto, que isso já é muito inclusivo para a Igreja. Todos, todos, todos, mas vontade não é à vontadinha. Este discurso cheira à velha máxima cristã “odeia o pecado não o pecador”. Bafiento.

Em momento algum o Bispo de Setúbal diz que se presta a abençoar a relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Apenas a abençoá-las individualmente. No entanto, quer que todos se sintam acolhidos. Não são acolhidos porque a Igreja Católica é o que toda a organização religiosa é: opressiva, restritora das liberdades pessoais e com um complexo de superioridade moral que não aplica quando encontra atrocidades no seu seio.

A minha conclusão é simples. O mote desta entrevista era que a Igreja se deve meter na política. Afinal foi um político que se foi meter na Igreja. Em todas as instâncias em que o Cardeal fala, refere sempre a religião em último lugar. Por pouco que não se esquecia de agradecer a deus o “sucesso” das JMJ. O Cardeal é certamente um homem da religião, só não me parece muito religioso, e por esse motivo quem sabe se não nos sentaríamos à mesa, como ele diz, a beber um copo, amigos como d’antes.

7 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Não Blafesmarás

Fiz dois anos de catequese nos anos 90, que culminaram na primeira comunhão. Desde já, não recomendo. Aliás, por princípio, considero uma violação dos direitos da criança, dado que não tem idade para escolher se quer ou não associar-se a uma fé, e está longe da idade da razão, em que poderia ter o discernimento para recusar ideias dogmáticas e medievais. Em todo o caso, mandaram-me para lá, e para lá fui.

Para quem não sabe, não me bastou nascer mulher, tive que nascer canhota. Outrora juntar-se-iam esses dois elementos a uma personalidade pouco obediente ao dogma e ter-se-ia uma bruxa prontinha a assar no espeto. Ironicamente, na minha juventude, dediquei-me ao neopaganismo e a todo o tipo de espiritualidade new age. Não, não adivinhei o número do Euromilhões. Devo também acrescentar que, durante o primeiro ano da escola primária, a criatura de deus que me deu aulas tentou forçar-me a escrever com a mão direita. Desengane-se quem acha que nos anos 90 já tínhamos ultrapassado este tipo de ideias.

É importante este contexto porque há um episódio que não me canso de contar porque ilustra exatamente o que a Igreja Católica e a religião no geral representam para mim. Lembro-me de pouco dos ensinamentos de Cristo, a não ser que a maioria me pareceram ou fantasiosos ou de simples senso comum. Estes últimos mais raros. Lembro-me de um livro fino com uma capa branca ilustrada com um Jesus muito eurocêntrico, rodeado de crianças. Lembro-me que gostava tanto da catequista que arranjava qualquer desculpa para não comparecer. E lembro-me em específico, de aprender a fazer o sinal da cruz. Há que ajoelhar ao entrar na Igreja, tocar com a mão direita na testa -“Em nome do pai” – tocar com a mão no peito – “do filho” – no ombro esquerdo – “e do espírito” – e no ombro direito – “santo” – juntando as mãos – “amém”. Razão para fazer isto à entrada da Igreja? Disseram-me que era porque estava a entrar na casa de deus. Eu aprendi para que as beatas não ficassem a olhar para mim.

Ora, como mencionei, sou canhota, verdadeiramente infernal na mão com que escrevo e conduzo todo o tipo de funções terrenas. E esta é uma característica que uma criança não controla – é a sua mão dominante. Assim sendo, eis que, às vésperas da primeira comunhão, uma pequena Eva se levanta a mando da catequista e faz orgulhosamente o sinal da cruz. Sentia que era um momento decisivo, estava perante outras crianças e perante uma autoridade, que me solicitava que mostrasse o que tinha aprendido. Devo dizer que teria sido um sinal da cruz irrepreensível, não tivesse sido feito com a mão esquerda. Aqui d’el rei que a criatura estava a chamar o diabo. O senhor padre que não visse uma coisa dessas, dizia ela. Deus castiga! E ela também, se bem que não me recordo do castigo recebido. Sei que eventualmente o excelso senhor padre foi lá passar vistoria e eu já sabia que se não fizesse o sinal da cruz com a mão direita, estava em grandes sarilhos, quiçá entregue aos demónios e à blasfémia, qual verdadeira Eva caída de uma macieira.

Fui pesquisar os Dez Mandamentos, porque apesar de os ter aprendido à força, fiz todos os possíveis por mantê-los fora da mente na minha vida adulta. Encontrei um resumo no site da Opus Dei, que os resume.

Eu sou o Senhor teu Deus:

  1. Amar a Deus sobre todas as coisas.
  2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
  3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
  4. Honrar pai e mãe
  5. Não matar
  6. Não cometer adultério
  7. Não roubar
  8. Não levantar falsos testemunhos
  9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
  10. Não cobiçar as coisas alheias
Versão catequética dos 10 Mandamentos

Não acreditei muito nesta versão porque sabia que um dos mandamentos é não cobiçar a mulher do próximo. Desse lembrava-me porque é dos que mais se presta ao humor. Por isso, fui a uma das muitas versões da bíblia que os cristãos juram a pés juntos ser a original mensagem de deus, a mais correta e fiel e encontrei esta versão menos… catequética.

  1. Não terás outros deuses além de mim.
  2. Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus, sou Deus zelo­so, que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com bondade até mil gerações aos que me amam e obedecem aos meus man­damentos.
  3. Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão.
  4. Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.
  5. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  6. Não matarás.
  7. Não adulterarás.
  8. Não furtarás.
  9. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença.
10 Mandamentos segundo a bibliaon.com

Cada um destes mandamentos merece um texto que lhe seja exclusivamente dedicado e hoje não será o dia. Mas queria focar-me no segundo mandamento. E prometo que, tendo dado todas as voltas às rotundas cristãs, tenho um ponto a fazer.

A Queda e Expulsão do Jardim do Éden,1509-10, MICHELANGELO Buonarroti
Capela Sistina, Vaticano

Hei-de dizer que, de todos os mandamentos da cristandade, não invocar o nome de deus em vão é o mais importante. Sim, sim, mesmo acima de não matar e não roubar e até acima de não ter outros deuses. Mais valia ter-lhe chamado “Não blafesmarás”. Suponho que não é muito fácil de pronunciar. É que vivemos hoje numa sociedade em que ser ateu não é problema, desde que não se fale nisso. Ser ateu não é problema, desde que se respeite as crenças supersticiosas dos outros. E que se quer dizer com respeitar? Não criticar.

Ora, eu considero que tenho sim, um dever de aceitar o direito das pessoas a terem crenças. Não as posso querer impedir de as terem ou de regerem as suas vidas de acordo com preceitos religiosos. Mas as crenças não são senão ideias. E como ideias, podem ser criticadas. Devem ser criticadas. Um cristão pode dizer-me que se não me converter vou sofrer a eternidade no inferno com o a tortura de satanás como companhia. Reparem na ameaça. Ou fazes isto, ou acontece-te aquilo. Mas eu, como ateia canhota caída da macieira, não posso dizer “as tuas crenças são um bocado parvas”.

Ao longo da minha longa caminhada de desconstrução e de libertação do pensamento mágico, fui entendendo que a blasfémia é um ato de catarse, de purga, até de exorcismo diria eu. Por quê dizer em voz alta, isto é falso, isto não existe? Por que é que os satanistas ritualizam a blasfémia? Porque a forma de remover o medo da criança que acredita que o bicho papão está escondido no armário é abrir a porta e dizer “anda cá que não tenho medo de ti”. E quando nada acontece, a criança entende que o bicho papão não existe.

Temos medo. Já abrimos o armário e o bicho papão não nos papou. Mas quando o colega de escola vem dormir lá a casa e se cobre até aos olhos com medo que venha por aí o homem do saco, nós não nos permitimos rir. Não dançamos libertos no meio do quarto, com os pés expostos ao que o outro imagina que está debaixo da cama. Não lhe dizemos que cresça. Não dizemos a verdade. Não lhe tiramos os braços de debaixo das cobertas para mostrar que ninguém está ali para lhe agarrar as mãos. Que acreditar no bicho papão é estúpido.

Ah Eva, sua canhota do demo, comedora de maçãs. Mas tu também recorres à metáfora para dizeres o que realmente queres dizer. Que atrevimento!

É que a lei protege a religião. E apesar de ter a liberdade de não acreditar, e até de criticar a religião, seja ela qual for, não me posso dirigir a uma pessoa a dizer-lhe que as suas crenças são absurdas e que o seu deus é uma besta cruel, criatura abominável que, se fosse real, eu me recusaria a reconhecer ou adorar, já a pessoa se pode ofender. Se eu for para a frente de uma Igreja durante a missinha de domingo com um cartaz a dizer “párem de endoutrinar crianças”, estou a perturbar o ato de culto. E ambos são puníveis por lei. Contudo, se a um domingo de manhã uma parelha de Testemunhas de Jeová decidir vir proletarizar para a minha porta, acordando-me do meu merecido e mui antecipado sono matinal, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante a páscoa não posso escapar ao odioso dling dlong da sineta que acompanha a entourage das amêndoas e do peditório, já os meus direitos não estão a ser violados. Se durante as festas religiosas instalam colunas de som por todo o lado e decidem que toda a gente há-de ouvir a missinha, seguida da pior música que por cá se faz, já os meus direitos não estão a ser violados.

Só peço igualdade. Se não posso ofender o religioso, o religioso não pode proletarizar. Não me pode forçar a ouvir a missa, os sinos das igrejas, as celebrações religiosas que são dele e só dele. Não me pode impingir os santinhos e as rezas. Não me pode vir cá dizer “vai com deus”, “deus te guarde”, “deus a tenha”. O religioso não devia, também, misturar crença com a res publica. O religioso que mantenha resguardadas as suas crenças e deixe de usar símbolos religiosos no exercício de funções públicas, que não recrute para a igreja, templo, clube superticioso. O religioso que páre de impingir a sua crenca arcaica a uma criança que não se pode defender.

Ah Eva, canhota invertidora de sinais da cruz, mas os paizinhos é que sabem como educar um filho!

Sim? Experimentem tirar uma criança da escola sem mais nem menos que vêem logo a CPCJ a bater à porta com mais força que uma parelha de Testemunhas de Jeová. Se podemos exigir aos pais que permitam aos filhos um certo nível de educação, que dura um mínimo de 12 anos, não devemos impedir que durante esses anos de formação uma criança seja endoutrinada? Se temos provas concretas que o mundo não foi criado por deus há 6 mil anos, não devemos ter a expectativa que a criança não seja enganada?

Acima de tudo, dá-se um respeito desproporcional à fé. Não blasfemarás. Tudo o resto? Desde que varrido para debaixo de um tapete, faz-se. Podes matar, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes trair, desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Podes [inserir acto horrendo], desde que te arrependas e peças perdão ao senhor padre. Falar contra a fé, alertar para as armadilhas mentais, para a subjugação da mente, a endoutrinação pelo medo, o condicionamento à criatividade e sentido inquisitivo das crianças, isso é que não. Isso, meus amigos, não se diz, é perseguição. E coitadinhos daqueles que, pertencendo inegavelmente ao status quo, são perseguidos pelos mauzões ateus. Deles será o reino dos céus.

Bom proveito.

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.