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Autor: João Monteiro

17 de Abril, 2024 João Monteiro

Dinossauros cristãos

Nota: Texto da autoria de Daniel Ramalho.

Em 1890, na sua obra Princípios da Psicologia, o psicólogo Americano William James escreveu: ‘A melhor maneira de entender a natureza humana é estudá-la nas suas expressões mais extremas.’ Doze anos mais tarde, na compilação de 20 palestras dadas na Universidade de Edimburgo intitulada Variedades da Experiência Religiosa, viria a reafirmar esse princípio fundamental do seu pensamento relativamente à nossa compreensão da espiritualidade nas suas várias formas. Nessa obra, William James explorou as expressões mais extremas da experiência religiosa (incluindo o êxtase, a santidade, a conversão, e a culpa perante Deus) como forma de compreender o que é a vivência normal do comum religioso.

Sendo um princípio manifestamente tão útil e fértil, dei por mim a aplicá-lo espontaneamente no meu estudo do extremo representado pela tribo Pirahã, que existe em quase total reclusão no Amazonas. É uma tribo actualmente com pouco menos de 500 indivíduos e que teria permanecido em total obscuridade não fosse o facto de a sua língua ser a única restante no mundo da família a que pertence, e de causar em igual medida fascínio e dores de cabeça a filósofos e linguistas desde os anos 70, período em começou a ser estudada. Alguns aspectos da sua língua são simplesmente alienígenas para nós, como por exemplo o facto de terem uma consoante apenas usada por homens, e não terem termos fixos para números nem cores, mas apenas expressões aproximadas para ambos (i.e. não têm “um” e “dois,” mas “pouco” e muito,” e não têm terminologia cromática abstracta para além de “claro” e “escuro,” ou apontar para uma cor presente diante dos interlocutores).

Outras das suas peculiariedades são-nos sintacticamente incompreensíveis, como não terem recursividade (i.e. há um limite para o tamanho das frases que podem ser gramaticalmente formadas), nem terem cláusulas subordinadas (i.e. em lugar de dizerem “gostava de comer aquilo que estás a comer,” dizem “estás a comer, quero comer também.” Outros aspectos da sua cultura ligados à língua são considerados talvez primitivos por nós. Por exemplo, a língua dos Pirahã tem partículas gramaticais que ligam cada nome comum ao presente imediato, pelo que não têm história para além daquela que pode ter atestada por pessoas vivas. Por esse motivo, não têm contos de fadas para contar às suas crianças, não têm mitos de criação e, mais relevante para este fórum, não têm qualquer crença num Criador omnipotente. Acreditam em entidades sobrenaturais, mas apenas aquelas que conseguem ver nas diversas encarnações da Natureza, seja nas sombras e ilusões ópticas que esta cria.

 Faço referência a esta cultura tão extrema relativamente à nossa no mesmo sentido de William James pelo modo como permite iluminar a nossa própria normalidade, que à luz dessa comparação não será, como pretendo demonstrar, menos extrema do que a normalidade Pirahã.

Os Pirahã não têm palavras para graus de parentesco mais remotos do que dos avós. Isto acontece porque dada a longevidade média dos seus membros, não têm em geral experiência imediata de bisavós, e como vimos, nada fora da sua experiência imediata tem existência para eles. Isto parece a nativos da nossa civilização a epítome da miopia histórica. Contudo, todo este intróito teve como objectivo demonstrar que as limitações impostas à percepção temporal dos Pirahã não são diferentes em certo sentido às que foram impostas pelo Cristianismo à civilização Ocidental.

O debate contínuo entre cristãos e ateus baseia-se em grande medida na distância cronológica que nos separa de Jesus, por ser demasiado extensa para que possa garantir qualquer certeza relativa aos seus supostos feitos. O dia-a-dia de ambos é medido nessa mesma escala, e pensamos em 2024 anos como uma quantidade de tempo enorme por usarmos a mesma referência temporal, quer sejamos crentes quer não. Esta referência é tão universalmente aceite como “a medida do homem” que mesmo os ateus usam como argumento comum relativamente às afirmações cristãs as semelhanças entre as afirmações de fé do Cristianismo e as daquelas muito mais “remotas,” quanto as de Platão 350 anos antes, de Buda 550 anos antes, ou dos Egípcios mil anos antes. Estas medidas de tempo são consideradas gigantescas. Poderíamos dizer que assim é pelo tempo médio da vida humana ser tão curto, mas se assim fosse seria arbitrário dizer 2000 anos, ou 3000, ou 7000, ou 10.000, por excederem esse tempo de forma tão extrema. O tempo bíblico em geral e o início do Cristianismo em particular parece ser de facto para todos nós, crentes e ateus, um ponto de referência fundamental, que determina a medida do tempo que os Pirahã diriam na sua linguagem anumérica ser “pequeno” ou “grande.”

Talvez em nenhum outro campo isto seja mais evidente do que na arte. Pensemos em qualquer dos grandes artistas universais, mesmo anteriores ao Cristianismo. Qual deles dedicou o seu génio a representar algo anterior ao tempo bíblico, ou na Antiguidade a deuses ou demiurgos que não fossem antropomórficos de algum modo, ou a qualquer forma de eternidade que não seja em certa medida sobrenatural? Quem procurou extirpar da sua criação artística toda a linguagem religiosa para procurar representar o tempo na sua inimaginável magnitude e sublime magnificência de formas e beleza que engendrou? É certo que isto seria difícil de concretizar antes de Darwin, mas não teria um Darwin surgido séculos antes se o tempo “A.D” “D.C.” não fosse “normal”? Não teria o mundo natural sido dignificado como merece na produção pictórica e escultórica? Todos conhecemos o famoso fresco da Capela Sistina intitulado a Criação de Adão. Muitos dirão que sem religião, a Humanidade teria perdido esta imortal obra de arte e nada teria preenchido o seu vazio. Mas que teria Michelangelo ou um génio do seu calibre produzido se tivesse tido acesso à total dimensão da pré-História? Na imagem acima deste texto vemos um fóssil de um Psitacossauro a ser atacado por um Repenomamus, um pequeno mamífero do Cretáceo. Que metáfora melhor poderia haver para o erguer dos mamíferos do que esta imagem – real, não imaginária –, de um humilde mamífero, nosso “Adão,” a atacar e a devorar um representante da espécie dominante do planeta da altura, um dinossauro? Seria uma escultura destas inferior à de David antes de enfrentar Golias, menos rica na sua simbologia? Não. Apenas estamos limitados pelo facto de considerarmos 2000 anos uma quantidade de tempo extrema, além da qual nada pode ser de alguma forma ligado a nós enquanto humanos feitos à imagem de Deus. Não podemos nesse enquadramento considerar algo emoldurado em cinza vulcânica há 125 milhões de anos com metáfora de nós, ou algo digno de reflexão quiçá espiritual. Mesmo esquivando milhões de anos desde esse tempo, fomos incapazes de pensar em termos artísticos nos vários encontros que terão acontecido entre as várias espécies humanas que existiram muito antes de termos sido a única que sobrou. Ou na honra que deveria ter sido feita aos primeiros artistas que se dedicaram a pintar paredes de pedra num momento em que, ao contrário de qualquer artista conhecido depois deles, não estavam no topo da cadeia alimentar e no entanto decidiram dedicaram tempo da sua curtíssima vida a imortalizar uma imagem das suas vidas apenas por ser bela.

Que Capelas Sistinas do Paleozóico poderíamos ter tido sem o grilhão da temporalidade cristã? Que Capitólios do Triássico? Que frescos do apocalipse da grande extinção Permo-Triássica? Que Pietàs dos grandes líderes do planeta, os dinossauros, no dia do impacto desse asteróide que foi, enquanto mamíferos, o nosso verdadeiro Salvador? Que histórias a enfatizar que vivemos na Terra uns meros 0.09% do tempo que os grandes répteis reinaram? Onde estão os grandes murais a representar as nebulosas que originaram a nossa galáxia? Quem esculpiu o momento da morte do último Neaderthal? Quem honrou o enorme sacrifício dos nossos antepassados, anatomicamente e intelectualmente nossos pares, que sofreram de forma inimaginável para morrerem aos 20 anos, mas que procriaram a tempo de serem antepassados de todos nós? Quem escreveu o épico dos mamíferos do Paleoceno, a ode aos triápsidos, a epopeia dos Ardipithecus, o soneto ao primeiro anfíbio? Ninguém, porque tudo o que se passou antes de nós aconteceu há demasiado tempo, há mais de 2000 anos. É compreensível: essa escala de tempo não é só facilmente envolta para pelas nossas mentes espartilhadas, mas ajuda-nos a lembrar de que tudo antes dessa época, todos os milhares de milhões de anos e quintiliões de formas de vida que viveram e morreram nesse longo entretanto, foram apenas prolegómenos ao tempo abraâmico. E até para ateus isto parece natural.

Em 1978, o psicoanalista francês Dominique Laporte escreveu uma breve mas genial obra intitulada sem pudores História da Merda. No centro de gravidade entre a seriedade e a sátira, Laporte afirma peremptoriamente que o momento crucial da história da Humanidade foi nada menos que a invenção da sanita. Isto porque todas as outras espécies do planeta convivem com as suas próprias excreções corporais, urina e fezes, e estas humilhantes provas da sua fisicalidade e mortalidade fazem parte do seu mundo. Apenas para os humanos há a possibilidade de carregarem no botão do autoclismo e verem num instante estas lembranças de que a nutrição não é apenas um prazer desaparecerem da sua vista para sempre, como se se transportassem para um plano etéreo. Diz Laporte que a partir desta gloriosa invenção, o humano pôde considerar-se verdadeiramente um ente divino, acima de qualquer outra criatura, porque na verdade já não excreta senão durante breves segundos. Apenas se alimenta, e num piscar de olhos todo o sub-produto da sua digestão e função renal desaparece como que por milagre. O Cristianismo, de certa forma, fez o mesmo relativamente a todo o tempo pretérito a si próprio. Puxou o autoclismo da pré-História e assim criou o mito de que apenas o homem pós-Bíblia existe – mesmo para aqueles que se dedicam a criticar a Bíblia. Tudo o resto, aquilo que foi animal e repugnante, como peixes, anfíbios, répteis, mamíferos, e hominídeos, desapareceu debaixo do turbilhão sugador das águas da Bíblia sobre as quais pudemos então todos andar como Jesus andou.

Numa prateleira da minha biblioteca pessoal mantenho um fóssil de uma trilobite. Este singelo artrópode que agora ali existe ladeado de autores clássicos morreu talvez há 300 milhões de anos. Mantenho-o lá para me lembrar constantemente que toda a sabedoria dos autores que venero e cuja sabedoria me alimenta diariamente não passa de um grão de pó num enorme edifício cujas forma e dimensão somos incapazes de imaginar. Para que não me encontre um dia a rodopiar no puxar do autoclismo que foi talvez o maior sucesso da história do Cristianismo. Para me lembrar de que os “primitivos” Pirahã, que não têm palavra para “bisavós,” não são tão diferentes de nós quando consideramos que só temos a palavra “antepassado” para nomear toda a enorme variedade de humanos – melhor dizendo, pessoas – de outras espécies, que nos deixaram em legado quem somos hoje. Para que esses homens e mulheres extintos não seja nunca, jamais, aos meus olhos, dinossauros cristãos.

31 de Janeiro, 2024 João Monteiro

Pedir perdão

Em 2016 o presidente dos EUA, Barack Obama, visitou Hiroshima. Foi a primeira visita de um presidente norte-americano ao Japão depois da Segunda Grande Guerra (durante a qual, em 6 de Agosto de 1945, os EUA lançaram uma bomba atómica sobre Hiroshima destruindo a cidade e matando, instantâneamente, mais de 70.000 pessoas. Destruição atómica que se repetiu dias depois, em Nagasaki, causando mais de 60.000 mortos).

Estranhou-se que Obama não pedisse desculpa pelo facto de os EUA terem enlutado o Japão. Perguntado pelos jornalistas se pedia perdão ao Japão, Barack Obama respondeu que o objectivo daquela sua visita era “honrar todos os que morreram na Segunda Grande Guerra Mundial”.

Era aqui que eu queria chegar para dizer que pedir perdão por actos cometidos no percurso da História, se pode parecer um acto de contrição com alguma positividade pelo arrependimento demonstrado, já não me parece ter cabimento quando não passa de “uma acção puramente teatral”… e, no caso, também sem ressarcir o Japão pelos actos cometidos há mais de 70 anos… o que seria mais do que “teatro”… seria “fita”!

Também seria um pedido hipócrita, já que os actos bélicos dos EUA continuaram a ser praticados provocando sofrimento nas populações, como a História regista!

Os pedidos de perdão não eliminam os males provocados. O que é preciso é que aprendamos com a História e tenhamos inteligência e sensibilidade suficientes para não repetirmos tantos erros através do percurso que fazemos pelo mundo, escrevendo uma História da Humanidade nada dignificante.

Também a Igreja Católica, no seu Jubileu do ano 2000, pela voz do Papa João Paulo II, dirigiu dezenas de pedidos de perdão (a Deus!… Não à memória dos ofendidos!) dos quais destacarei uns poucos, respigados da imprensa da época: “pelos males provocados pela Igreja aos Judeus por parte do Papa Pio XII; pelo anti-semitismo no tempo de Mussolini; por todos os crimes cometidos pela Inquisição; por todas as vítimas abandonadas pela Igreja; pelos actos praticados pelo Vaticano contra os cientistas; por queimar vivos Giordano Bruno e João Hus; pelas divisões no seio das várias sensibilidades cristãs; pelas repressões aos Protestantes e Ortodoxos; pelos pecados cometidos contra o amor, a paz e os direitos dos povos, e pelos pecados cometidos com as mulheres, os pobres e os marginalizados; e, até, pela inoperância da Igreja perante o Ateísmo” (!). 

A Igreja Espanhola pediu perdão pela atitude nada evangélica demonstrada perante os elementos da ETA, e a Igreja da Argentina pediu perdão pelos pecados por ela cometidos durante a ditadura do general Videla. (Curiosamente a Igreja Católica Portuguesa não pediu perdão algum!… Nem, sequer, pelo mal que fez ao poeta Bocage).

Desde o início de 2000 até Junho de 2001, contabilizei 94 pedidos de perdão. E numa cerimónia litúrgica celebrada no Vaticano, o Papa pediu perdão pela soma de todos os pecados.

Pedidos de perdão que me parecem patéticos!

A Igreja, que se considera modelo moral, não devia tê-los cometido… mas cometeu-os! São factos históricos que o perdão panfletário não elimina. 

O importante é termos consciência do mal cometido e emendarmos procedimentos para que não tornemos a cometê-los.

Se assim se fizer, jamais haverá necessidade de se pedir perdão, vivendo-se em paz e de consciência tranquila.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

30 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O DEUS ANÓNIMO

De Jesus a Shakespeare

O seguinte texto é da autoria de Daniel Ramalho

Mesmo sem saber quem está neste momento a ler estas linhas, arrisco afirmar que é nelas que lerá pela primeira vez o nome de Constantin François de Chassebœuf, conde de Volney. Digo-o com quase absoluta certeza porque o seu anonimato chega ao ponto de o dia do seu aniversário, 3 de Fevereiro, ser conhecido como “Nobody’s Day” – o dia em que por algum inexplicável desígnio do destino alegadamente nenhuma personagem histórica de relevo nasceu.

Que é uma injustiça relegar de Volney à vala comum da História é facilmente justificável. Os seus contributos como arabista, filósofo e político (nomeadamente pelo seu envolvimento na Revolução Francesa) são demasiados em número e interesse para que procure aqui resumi-los. Direi apenas que não será tempo perdido pesquisá-los. Contudo, refiro-o aqui em particular à sua magistral obra As Ruínas, ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios (1817), por ter sido a primeira a popularizar muitos dos argumentos mais comuns no arsenal argumentativo daqueles que defendem a teoria do “Mito de Cristo.”  Apesar de então ter inaugurado a dúvida sobre a existência do Jesus histórico, de Volney foi sem dúvida o mais importante dos seus divulgadores entre a intelligentsia iluminista, em particular após o referido livro ter sido traduzido para Inglês por Thomas Jefferson, seu amigo próximo. Poucos sabem que de Volney existiu, mas o problema histórico e teológico que nos deixou em legado é hoje, em grande medida graças a si, lugar-comum.

A teoria do mito de Cristo foi amplamente discutida nos últimos dois séculos e não é minha intenção abordá-la aqui, mesmo porque a posição de que o Jesus histórico existiu é quase consensual entre historiadores. Mais do que a questão em si, interessa-me como é possível que tenha surgido – ou por outras palavras, como pode ser que não saibamos com absoluta certeza se a personagem mais importante da História é ou não fictícia. A forma mais simples de um cristão responder a estas objecções consiste em apontar para o facto de se tratar de alguém que viveu há 2000 anos, numa sociedade predominantemente analfabeta e antes de haver imprensa, e que este abismo cronológico faz com que seja fácil para os cépticos questionar se estas figuras tão distantes no tempo chegaram a nascer (como acontece, por exemplo, com o ainda mais remoto Sócrates).

Será então que a distância temporal justifica duvidar da existência de Jesus, e que se estivéssemos apenas mais perto do tempo e espaço em que ele viveu teríamos dados suficientes (orais e escritos) para saber sem sombra de dúvidas que ele de facto existiu e que fez milagres? Será por miopia histórica que não vemos o que é evidente para todo o cristão?

Não, e sabemos que assim é pelo exemplo de uma outra figura central da história ocidental historicamente muito mais próxima de nós. Refiro-me ao caso de William Shakespeare.

O culto de Shakespeare atingiu ao longo dos séculos proporções tão desmesuradas que George Bernard Shaw sentiu necessidade de criar uma designação para quem padece dessa condição clínica: “bardólatra” – da qual me confesso paciente crónico. Quase dois milénios passaram até que alguém pusesse em causa a existência do Jesus histórico. Com Shakespeare, apesar de ter vivido na Inglaterra isabelina que era obcecada com registos de toda a espécie, foi preciso apenas um século. O espraiar da bardolatria pela Europa foi acompanhado por uma crescente desconfiança sobre quem seria realmente o mítico “Bardo.” Ninguém questiona que alguém chamado Shakespeare existiu entre 1654 e 1616.  Poucas certezas há sobre o homem – alguns até questionam que tenha sido um homem –, mas entre elas estão a de que era actor, filho de um luveiro (provavelmente analfabeto), que não deixou indicação de ter viajado para lá de Londres, que saiu da escola aos 15 anos, e que nunca frequentou uma universidade. Destas certezas uma outra foi extraída por vários ao longo da História: a de que este retrato simplesmente não pode ser o do autor do corpo literário 100.000 palavras mais longo que a Bíblia do King James, e que Harold Bloom designou de “bíblia secular.” Além disso, de todas essas incontáveis palavras que escreveu – muitas das quais cunhadas por si, entre as quais a palavra “incontável” – apenas seis nos chegaram escritas à mão: todas elas assinaturas, de autenticidade duvidosa, e todas escritas de forma diferente (nenhuma delas “Shakespeare” como escrevemos hoje).

Os que não acreditam que o Shakespeare de Stratford-upon-Avon foi o autor da obra que lhe é atribuída consideram que está provado de forma decisiva que o autor foi outro, muito provavelmente Edward de Vre, Conde de Oxford – de onde deriva a designação de “Oxfordianos” atribuída a quem defende esta hipótese. Foram várias as celebridades ao longo do tempo que se incluíram no número dos Oxfordianos, como Sigmund Freud, Henry James, Walt Whitman, William James, Ralph Waldo Emerson, Mark Twain, Orson Wells, Charlie Chaplin, e muitos outros. Diana Price, uma das mais famosas Oxfordianas da actualidade, afirma que “se escrever peças fosse crime, não haveria provas suficientes para condenar Shakespeare em tribunal.” Alexander Waugh, outro anti-Stratfordiano contemporâneo, está convicto de que uma enorme conspiração foi engendrada para proteger a identidade de Edward de Vere, verdadeiro autor da obra “Shakespereana,” com pistas espalhadas aqui e ali que uma vez identificadas provam sem margem para dúvidas que o Shakespeare histórico não foi mais do que um actor e astuto homem de negócios que provavelmente nunca escreveu uma linha na vida por nunca ter aprendido sequer a escrever. Há aqui um interessante paralelismo com o conde de Volney, que propôs a hipótese de ter havido uma obscura figura histórica correspondente a Jesus transubstanciada em Cristo pela religião até pouco ou nada restar da pessoa que realmente existiu.

Mas o paralelo vai mais longe do que isso. Tal como especialistas em crítica textual procuram extrair dados sobre o Jesus histórico dos Evangelhos, também os bardólatras fazem o mesmo com a obra de Shakespeare. A cena do festival da tosquia na peça As You Like It leva os Stratfordianos a crer que o Shakespeare de origens humildes e poucos estudos foi de facto o autor, pois um aristocrata nunca saberia tanto sobre um festival de camponeses. Um outro bardólatra foi a todos os locais de Itália referidos por Shakespeare nas suas peças e concluiu que as descrições feitas dos mesmos só poderiam ter sido escritas por quem tenha lá estado, o que reforça a posição Oxfordiana porque Shakespeare, que se saiba, nunca saiu das fronteiras britânicas.

E há ainda dilemas textuais, como acontece com a Bíblia. Por exemplo, no final da peça King Lear encontram-se em diálogo Edgar e Albany, dois candidatos à coroa, nenhum dos quais a quer. Tradicionalmente, no teatro isabelino e jacobino, as palavras que concluem a peça são proferidas por quem fica no poder. Nos últimos versos do King Lear, um destes dois acaba por ter de aceitar ser rei, mas numa edição (1623) quem o faz é Edgar, e noutra (1632) é Albany. Ora, Albany é o legítimo sucessor, pelo que a mensagem de Shakespeare é diferente consoante quem ascende ao poder no final. E apesar dos rios de tinta que correram sobre a questão, a verdade é que não se sabe. Stephen Greenblatt, um famoso estudioso de Shakespeare da actualidade, diz sobre esta questão que provavelmente nem Shakespeare sabia qual das personagens devia ascender ao trono no final, e que a indeterminação em que nos vemos hoje a esse respeito é tão nossa quanto foi dele.

Ou seja, tanto no caso de Jesus quanto no de Shakespeare, temos uma personalidade histórica que sabemos ter existido mas que é identificada pela tradição com uma personagem rodeada de uma aura de divindade de tal modo ofuscante que não conseguimos perceber se são ou não a mesma pessoa. E este é o ponto para o qual pretendo chamar a atenção. Estando nós na posse quando um milhão de palavras na “voz” de um autor, atribuídas a uma personalidade que sabemos sem sombra de dúvida ter existido, separada de nós por uns meros 400 anos, ainda assim não nos livramos de uma “dúvida razoável” relativamente à sua identidade igual à da do Jesus Cristo dos Evangelhos. Em ambos os casos a dúvida é suscitada pelo carácter “sobrenatural” dos textos que nos chegaram dessas figuras, com a diferença de que no caso de Shakespeare o texto na origem da discussão não lhe atribui milagres mas é em si o milagre que lhe é atribuído.

A hipótese Oxfordiana mais popular aponta, como referido, para uma conspiração que alegadamente visou escudar a real identidade do autor dos textos “Shakespereanos.” Autores como Bart Ehrman defendem algo semelhante em relação a Jesus, i.e. que foi um profeta apocalíptico falhado, cuja mensagem os discípulos desiludidos alteraram para justificar o facto inesperado e traumático de verem crucificado aquele que esperavam vir a ser seu rei terreno, tornando o seu reino sobrenatural. É verdade que houve uma “conspiração” nos casos de Shakespeare e de Jesus? Não sabemos. Apenas sabemos que qualquer medida de tempo tem solo fértil que chegue para a teoria da conspiração germinar.

Então, se a dúvida relativa à identidade de uma figura considerada sobre-humana pode surgir com a mesma pertinência em relação a alguém nascido há 2000 anos e há 400 anos, poderia surgir relativamente a alguém que morreu ontem? Estamos convictos de que os registos audiovisuais que conseguimos captar hoje protegem a identidade histórica dos nossos génios, mas se Shakespeare tivesse morrido ontem, após receber o Nobel da Literatura e três ou quatro Óscares, e com infindáveis entrevistas gravadas ao vivo em programas televisivos e podcasts, seria impensável que a questão da autoria das suas peças se tornasse tópico de debate no ano 2424? Seria impossível que uma franja de intelectuais desconfiados atribuísse a sua fama literária à inteligência artificial, ou a uma conspiração de autores, ou a outra coisa qualquer, de forma plausível?

Caso a resposta seja “não,” o mesmo pensamento é aplicável com igual propriedade a Jesus. Estaríamos em melhor posição para julgar a veracidade dos eventos relatados nos Evangelhos se Jesus tivesse morrido há 400 anos? Ou em Inglaterra no século XVII? Ou ontem? Talvez. Afinal, temos câmaras e microfones. Mas poderia essa certeza manter-se incólume historicamente? O caso de Shakespeare indica que não. Mais século menos século, a dúvida razoável surgirá nas franjas académicas e a posição céptica deixaria de ser absurda. O tempo acumula-se nas figuras que endeusamos como um sarcófago, até que finalmente dos lábios dourados alguém ouve as famosas palavras de Iago: “I am not what I am.”

Se de facto assim for, se o milagre for sempre mais absurdo do que a conspiração independentemente do registo histórico, se a existência do Cristo bíblico não fosse mais certa hoje tivesse ele sido contemporâneo de William Shakespeare, é tarefa de todo o céptico responder à questão a que assim fica exposto perante o Cristianismo: “Ateu, que Evangelho, ainda que em formato audiovisual, te converteria?”

21 de Janeiro, 2024 João Monteiro

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo!

Neste texto, Daniel Ramalho explica as motivações que levaram a que diminuísse o tempo dedicado a escrever sobre ateísmo.

Escrevi sobre ateísmo com frequência e de forma disseminada durante mais de metade da minha vida, de tal modo que muitos dos meus conhecidos (em particular nas redes sociais) pouco mais conhecem de mim para além dessa faceta. Há relativamente pouco tempo, e quase de repente, parei, o que levou a que alguns desses conhecidos me perguntassem porquê. A esses, aqui deixo a minha resposta.

Não foi por ter passado a achar que é tempo perdido argumentar com fanáticos que me calei, nem por ter deixado de considerar o tema importante ou interessante, nem por me ter convertido. Apenas cheguei à conclusão de que o ateísmo está finalmente completo. Quero com isto dizer que chegámos a um ponto em que não já existe argumento teológico algum que não tenha um contra-argumento demolidor. Por não ser um sistema de crenças independente, o ateísmo precisa da vitalidade da religião para sobreviver, e há já muito tempo que não surge um argumento teológico com pretensão de originalidade que dê aos ateus alguma coisa que fazer. Houve tentativas como a do Plantinga, mas tão exangues e fáceis de rebater que podem ser consideradas nados-mortos. A religião chegou ao limite do que pode dizer em sua defesa, e já não pode haver dúvida razoável que faça pender o fiel da razão a seu favor.

O ateísmo chegou à sua última página. Nada do que possa ser dito daqui em diante em resposta aos velhos argumentos teológicos mesmo dos mais sofisticados católicos (que sempre gostaram de se considerar mais espertos do que a concorrência) poderá ser mais do que a repetição de um argumento também ele já vetusto ao qual nada de importante precisa de ser acrescentado para que seja fatal. Tanto do lado da física, cosmologia, biologia, geologia, etc., quanto da história, antropologia, filosofia moral e crítica textual, todos os “bolsos de ignorância” onde se poderia adivinhar a presença de um deus foram ou iluminados para se revelarem vazios, ou se verificou que enfiar lá deus apenas multiplicaria os problemas. Chegámos a um ponto em que os nossos melhores teólogos (e note-se que a completude do ateísmo implica o fim da teologia) não têm como discordar de grande parte da argumentação avassaladora com que agora se deparam. Resta-lhes refugiarem-se nos únicos dois redutos em que tal ainda é possível: ou na fé esvaziada de razão que se assume como tal, ou na deprimente afirmação de que o valor cultural e utilidade social da religião a justificariam ainda que fosse falsa – e é incrível o número de apologetas cristãos derrotados que segue esta última linha.

Por tudo isto não tenho muito mais a dizer acerca de ateísmo excepto que está lá para quem o quiser visitar, em exposição num mausoléu. Ser religioso neste momento é, como sempre será doravante, um imperativo psicológico dos doutrinados desde tenra idade, daqueles com demasiado investimento social/profissional na sua crença, seduzidos emocionalmente pela estética religiosa, ou que simplesmente não aguentam a ideia de que um dia deixarão de existir. Ironicamente, estes sempre existirão (de forma colectiva), mas é um facto que toda a argumentação de que tentem socorrer-se para defender a sua crença de forma discursiva já tem resposta suficiente escrita algures. Nada mais podem fazer do que desviar os olhos e acreditar porque sim.

O trabalho do ateu militante não terminou, claro. A religião continua e continuará a ter de ser empurrada diariamente e sem descanso para a esfera privada, a que pela sua natureza nunca se confinará de forma voluntária. No que diz respeito à questão da sua veracidade ou falsidade, o trabalho está feito. E por isso vou lendo, vendo e ouvindo sobre ateísmo como quem contempla uma estátua: em silêncio, deleitando-me com um prazer que é agora apenas estético.

O ateísmo morreu. Viva o ateísmo.

25 de Agosto, 2023 João Monteiro

Descrente

NOTA: Este texto é da autoria de João Nascimento.

Seria talvez, à primeira vista, desnecessário começar este artigo a afirmar que sou ateu.

Na verdade, receio estar a ser extremamente redundante, pois já declarei e afirmei a minha postura individual na vida, quando se trata da falta de crença numa divindade, em contos de fadas ou no sobrenatural, muitas e muitas vezes anteriormente. Além disso, embora Spinoza tenha de certa forma dado início à ideia de que Deus é tudo, mas não é nada ou ninguém em particular – alguns poderão contestar isto -, não sou alguém que goste de rótulos, e por essa razão, não concordo muito com a existência da palavra Ateu; não existe uma palavra especial para representar alguém que não acredite no Pai Natal, ou no Coelho da Páscoa, ou na Fada dos Dentes, por exemplo.

A palavra existe, contudo, e usá-la-ei também, mas não poderão dizer nada mais sobre a minha pessoa para além da óbvia descrença na dimensão do sobrenatural. Estou cansado de tudo o que se diz sobre o ateísmo por este mundo fora. A palavra é automaticamente correlacionada com o mal, cujo significado poderia ser debatido por séculos, filosoficamente falando. Assim como os crentes, os descrentes não podem ser generalizados. As pessoas são diferentes, evoluímos assim.

Nesta história, em vez de um ateu, vou referir-me a mim e a outros da mesma índole como Descrente(s). Esta é a minha definição de ateísmo – não acreditar -, então suponho que não seja um mau rótulo para mim, de todo.

Quando digo que sou um descrente, não quero dizer apenas que não sou Mórmon ou Metodista, ou mesmo que não sou Cristão ou Budista. Estas parecem-me ser divisões e subdivisões relativamente insignificantes da crença. Quero dizer, efectivamente, que não acredito em nenhum Deus que já tenha sido fabricado ou inventado, em qualquer doutrina que já tenha sido reivindicada como revelada, em qualquer esquema de imortalidade que já tenha sido postulado, em qualquer credo que já tenha sido inventado por uma mente humana.

Sejamos estupidamente honestos aqui. Sempre houve homens e mulheres sem o dom da fé. Eles não precisam dela, não a desejam, e provavelmente nem sequer saberiam o que fazer com ela se a possuíssem. Eles, os descrentes, aparentemente não são menos inteligentes do que os fiéis, e não são menos justos. Determinar o número exacto de tais indivíduos no mundo, apresenta-se como uma tarefa dolorosamente complexa. No entanto, é inegável que a sua presença se faz notar de forma mais acentuada em contextos sociais onde o esclarecimento intelectual parece ser mais proeminente. Como eles não têm organização nem credos, obviamente não podem ter um porta-voz oficial. No entanto, pode-se confiar em qualquer um deles para falar, de certa forma, por todos eles, por todos os descrentes. Como os espiritualistas, ou religiosos, os descrentes, onde quer que se encontrem, são de uma natureza e de uma linguagem. No entanto, não posso pretender representar mais do que uma única perspectiva de descrença. Não esquecer do principal princípio de um Descrente, contudo; não acreditar.

Não considero alguém que tenha fé que possua algum dom, ou que possua algo biologicamente especial. Considero a fé, antes, como um mecanismo de sobrevivência de uma fase anterior do pensamento; em resumo, como uma forma de superstição. Ela, e não aquilo que sou forçado a nomear como descrença, parece-me ser altamente negativa. Ela refuta a razão, e nega evidências, no sentido de insistir em introduzir elementos que não provêm de factos comprovados, mas da imaginação e desejos de homens e mulheres mortais.

A descrença não nega a razão, e obedece o mais fielmente possível às evidências baseadas em factos.

Em relação aos deuses, constatei que existiram inúmeros; contudo, os nomes da maioria encontram-se enterrados no vasto mosaico a que chamamos civilização. Não me parece haver uma boa razão para acreditar que alguns deles são falsos, e alguns deles, ou apenas um deles, são verdadeiros, ou é verdadeiro. Mais uma vez, cada um foi criado por imaginações e desejos de homens que não podiam explicar o comportamento do universo de qualquer outra maneira satisfatória. Todavia, nenhum deus satisfez os seus adoradores para sempre. Oh, não! Mais cedo ou mais tarde, eles perceberam que os atributos outrora atribuídos a ele, ou a eles, como egoísmo, luxúria ou vingança, são indignos das estruturas morais que os homens evoluíram entre si.

Considerando esta reflexão, sem a rotular como uma verdade absoluta, testemunhamos o lento declínio da divindade, independentemente da duração da fidelidade dos seus seguidores à sua veneração. Quando se trata do deus que ainda encontra lealdade entre os homens, mesmo após eras de escrutínio e análise, é notável que quase nada, exceto o seu nome, perdurou sem alterações. Os seus atributos foram modificados repetidamente, transformando-o numa entidade divina quase irreconhecível. O argumento de que apenas a concepção do deus foi alterada, mantendo intacta a sua essência, não invalida esta constatação. É pela sua concepção que ele é compreendido, enquanto a sua verdadeira essência permanece inalcançável para o discernimento humano. Poderia favorecer, de entre as diversas divindades, aquele Deus que me transparece ter sido mais rigorosamente depurado de traços que vejo como impuros.

Contudo, baseio essa preferência, evidentemente, em critérios moldados pela observação das atitudes humanas.

Se um deus foi criado à imagem de desejos sujos ou puros não importa muito. A diferença apenas prova que diferentes homens desejaram deuses, e forneceram-se os deuses que conseguiram conceber. Por trás de todas as suas invenções, ainda jaz o grande abismo da ignorância. Não há evidência confiável quanto à existência absoluta de um deus.

Ao considerar a natureza da revelação, fica claro que ela leva a evidência além dos limites do tangível. Todos os profetas juram que um deus fala através deles, e ainda assim preveem apenas contradições. Mais uma vez, os homens devem escolher de acordo com os seus próprios princípios, ou valores morais. Que uma revelação foi anunciada há muito tempo torna difícil examiná-la, claro, mas não atesta de outra forma a sua solidez moral de maneira nenhuma. Que alguma doutrina revelada tenha durado séculos, e respondido às necessidades de muitas gerações, prova que é o tipo de doutrina que sobrevive e satisfaz, mas, mais uma vez, não que seja divina de forma alguma.

Doutrinas seculares que se mostraram perfeitamente falsas também perduraram e satisfizeram alguém, em algum lugar. Se a crença num deus tem que partir da premissa de que ele existe, a crença em revelação primeiro tem que partir da presunção de que um deus existe, e depois ir mais longe na suposição de que ele comunica a sua vontade a certos e determinados homens apenas, especiais e únicos. Mas ambas são meras conjecturas. Nenhuma delas, no actual estado do conhecimento, é capaz de fornecer alguma evidência.

Ponderemos por um instante a hipótese de um deus efectivamente existir, de natureza masculina, e consideremos que ele de facto comunica o seu intento a algum dos seres por ele criados e moldados. Quem, dentre de essas criaturas, teria a capacidade de interpretar tal dialecto divino? Quem teria a habilidade de registar tal mensagem num bocado de papiro? E quem ostentaria a coragem de persuadir os seus pares de que fora o eleito, e que eles deveriam reconhecê-lo como legítimo? O máximo a que se poderiam comprometer seria confiar em duas suposições, e pôr à prova a mensagem revelada através da sua sintonia com os seus devaneios e expectativas. Tal conclusão não é atingida sem um mergulho da lógica no domínio da conjectura, novamente. O que se evidencia é a profunda semelhança dos seres humanos em todos os cantos do mundo. Todos partilham das mesmas estruturas, dos mesmos órgãos, das mesmas glândulas, mas em distintas escalas e formas. Com tantas semelhanças, tendem naturalmente a convergir em determinadas aspirações fundamentais.

Um desejo que constantemente inquieta a consciência humana é a aspiração por uma existência após a morte. A explicação não é intrincadamente complexa. Os homens vivem de forma tão efémera que os seus diminutos planos transcendem amplamente a sua capacidade de os concretizar, e estão cientes disso — eu estou consciente. Eles veem-se abruptamente interrompidos antes que a sua intrínseca vontade de viver se extinga. De forma bastante natural, almejam perdurar, e, na sua condição humana, creem nas probabilidades de sobrevivência. Todavia, as suas aspirações não oferecem qualquer evidência concreta. Um desejo não constitui prova de nada além do próprio desejo. Ainda que adoptado por milhões, continua a ser apenas uma aspiração. Mesmo se diversas culturas o expressarem, ele persiste como um simples anelo. Que seja defendido pelo mais sábio com tanta intensidade quanto pelo mais ingénuo, ele ainda se mantém como mero desejo.

Aquele que proclama deter o conhecimento de que a imortalidade é um facto concreto, na realidade, está simplesmente a alimentar a esperança de que tal o seja. E aquele que postula, como frequentemente os homens o fazem, que a vida seria desprovida de sentido sem a imortalidade, pois esta confere, de forma singular, significado ao destino humano, deve primeiramente argumentar — algo que homem algum fez de forma deveras convincente até então — que a vida possui um propósito inequívoco, e que é equitativa. Não estou persuadido por nenhum destes dois pontos. Embora esteja, creio eu, versado em todos os argumentos, não encontro nenhum que se destaque particularmente em relação aos demais. Tudo o que percepciono é que o anseio pela imortalidade é ubíquo, e que certas concepções de imortalidade geradas por este desejo têm sido mais amplamente aceites do que outras. Nas religiões que apresentam tais perspectivas, percebe-se uma compreensão mais profunda dos anseios humanos do que em outras. Entretanto, não lhes posso conceder um estatuto superior no que toca à veracidade das doutrinas. A verdade, em minha opinião, representa o alvo intelectual máximo ao qual todos deveriam visar.

Muitos crentes, segundo me contam, têm as mesmas dúvidas e, ainda assim, possuem a peculiar aptidão de relegar as suas incertezas para segundo plano, imergindo fervorosamente na comunhão dos fiéis. Não consigo verdadeiramente compreender este conceito. Tanto quanto percebo, tais crentes são movidos pelos seus desejos ao ponto de permitirem que estes governem, não apenas o seu comportamento, mas também os seus pensamentos, o que acaba por deturpar, ou envenenar, as relações humanas. Os desejos de um descrente têm, aparentemente, menos influência sobre a sua razão.

Talvez isto seja apenas outra forma de dizer que o seu desejo é ser o mais razoável possível.

Um descrente honesto não consegue forçar-se a crer contra o seu discernimento, tal como não pode escapar da força gravitacional que lhe permite andar na superfície do planeta terra. Não me sinto compelido a ter fé. Talvez, em determinado momento, tenha achado sensato calar-me, reconhecendo que os seres humanos, por mais ingénuos que possam ser, mostram-se inflexíveis nas suas convicções; contudo, actualmente, com a multiplicidade de crenças existentes, até um céptico se pode expressar com confiança sem temer julgamentos ou represálias mortais.

Assim, devo responder a algumas questões frequentemente colocadas aos descrentes. Por exemplo, não me persuade o facto de que muitos homens sábios reflectiram sobre questões sobrenaturais, e se converteram à crença? De todo, não. Com todo o respeito devido aos deuses, revelações e imortalidade, nenhum homem é significativamente mais sábio do que os seus semelhantes, ao ponto de ter o direito de insistir que eles o sigam para regiões sobre as quais todos os homens parecem igualmente ignorantes. A descrença, na minha perspectiva, não é ignorante nem desprovida de humanidade. Está simplesmente enraizada na coragem, e não no medo. A crença ainda é um predicado daquelas antigas sociedades que, na ausência de conhecimento, povoaram as florestas com sátiros e fadas, os mares com monstros fantásticos, e as extremidades da terra com canibais deformados. Assim, os mais derrotistas entre os crentes povoaram o vazio com bruxas e demónios, e os mais esperançosos entre eles preencheram-no com anjos e deuses. Existem mitos vivos, lendas reconfortantes, esperanças consoladoras. Mas elas têm, como o descrente as vê, autoridade que não ultrapassa a da poesia, mesmo a um nível literário épico. As crenças, tal como os gostos nesse sentido, podem e de facto diferem.

De entre os perigos da tendência aleatória da natureza, o descrente não procura segurança em qualquer providência vigilante. Embora saiba que o conhecimento, a ciência, é imperfeito, ele deposita a sua confiança nestes conceitos. Cada descoberta de uma nova verdade traz-lhe genuína alegria. Ele constrói-se, tanto quanto pode, com base na verdade, e fortalece-se com ela. Ao fazê-lo, nunca cai no domínio ignorante da superstição, mas, em vez disso, torna-se mais robusto e extasiado na sua coragem. Ele pode ainda ter muitos medos, mas não os multiplica na sua imaginação e, em seguida, combate-os com os seus desejos e orações, sendo este um atributo quase único dos crentes.

Entendo que muitos, tal como eu, que optam pelo cepticismo, se sintam algo perdidos na procura por um sentimento de pertença. No entanto, ser Ateu não é simplesmente seguir uma moda, ou aderir a uma tendência popular. O Ateísmo é uma postura intelectualmente robusta que foi, e em certos lugares ainda é, amplamente criticada e condenada. Valorize a capacidade de duvidar e, se como eu e tantos outros, tem um espírito naturalmente inquisitivo, continue a evoluir na sua compreensão. Não acredito, sou Ateu.

João Nascimento

30 de Julho, 2023 João Monteiro

Vamos entreter deus?

Texto de Arnaldo Martins:

Não se deixe o leitor enganar pelo titulo deste artigo uma vez que um ser tão poderoso certamente conseguirá entreter-se a sí mesmo.

Vou pedir emprestado ao Vasco Santana a sua famosa frase cinéfila e clamarei que: “Deus, há muitos! Seu p….”

Isto a propósito da crença de um sem número de pessoas que há um ser com características igualzinhas às dos humanos – ciumento, invejoso, vingativo, bélico, irado, etc – que acresce as próprias de um ser desta natureza – omnipotente, omnipresente, omniconsciente, pináculo da moralidade e por aí adiante.

Entreter a ideia que um ser desta índole exista é abrir o caminho para que mais seres possam ser caracterizados, proclamada a sua existência, introduzidos no quotidiano, atribuídas funções miraculosas e semeada na cabeça das pessoas que é impossível que eles não existam porque o ser humano não possui as capacidades cognitivas para provar ou negar a sua existência.

Por outras palavras, quem alega passa para o não crente o ónus da prova ou, só para parecer imparcial, afirma que não se consegue há data dizer que existe ou não existe, ou ainda por cima afirma que nem se sabe se algum dia poderemos comprovar ou não a sua existência.

Pois bem, questões filosóficas há muitas e de resposta difícil de encontrar. Se salvamos a vida a uma criança ou salvamos a vida a um médico, por exemplo. Só há uma dose de vacina para um vírus mortífero, neste caso tomo eu ou toma a minha mulher? Isto são tudo questões com uma carga moral forte cuja opção por uma ou por outra são válidas tendo em conta os argumentos apresentados e aceitação dos mesmos pelos próprios envolvidos ou pela comunidade em geral. Será função do filósofo alertar e identificar alternativas ou razões para tomada da decisão, mas a decisão final será sempre da responsabilidade dos interlocutores e o filósofo não tem de escolher nenhuma das opções a não ser o de esclarecer as hipóteses possíveis.

No caso de Deus, a questão é simples. Basta saber aquilo que tem acontecido ao longo da história para perceber que este é mais um igual aos milhares que já foram descartados pela humanidade.

Ninguém acredita em Zeus, Odin, Thor, Osiris, Horus, Shiva, etc. Quem acredita nestes deuses fá-lo com a mesma ignorância e falta de prova de quem acredita no Deus Jeová.

Entreter a ideia de que não se pode provar ou negar a existência de Deus é dar carta branca àqueles que fazem livros religiosos cheios de histórias alucinadas, de feitos mirabolantes, de práticas horrendas, de acontecimentos historicamente inexistentes, de explicação de fenómenos naturais com base em intervenções divinas, no fundo, criar um mundo ilusório desprovido de senso comum e desconforme com a realidade.

A negação da existência de Deus não é feita por nenhum ser humano (cujas faculdades podem ser mais ou menos afetadas no que toca ao raciocínio lógico), mas sim pela crueza e objetividade da realidade em que vivemos.

Colocar a questão da existência de Deus no patamar filosófico é atribuir valor às ideias patéticas e das quais nos devemos afastar em nome da racionalidade e da valorização da natureza e condições humanas.

Esperar que os problemas de vivência em comum seja dirigidos por um ser celestial é ignorar o valor intrínseco da nossa capacidade inata de empatia e de preocupação pelos que são nossos e pelos outros.

Albergar a ideia de Deus na nossa cabeça, apenas faz com que ele morra connosco quando chegar a nossa hora.

Imagem de Tumisu por Pixabay
19 de Julho, 2023 João Monteiro

Futebol e Fé

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Os meus amigos sabem da minha falta de interesse pelo Futebol, o qual, não me seduzindo como desporto, me preocupa enquanto fenómeno social de massas… tal como me preocupa a fé religiosa em demasia. Fé que também pode ser encontrada no Futebol, porque isto anda tudo ligado. 

Num dos últimos Campeonatos Europeus de Futebol, correu na imprensa uma foto de uma jovem, no meio da bancada de um estádio, com uma expressão de sofrimento e cara pintada de verde e rubro, agarrada a uma imagem da Senhora de Fátima envolta num cachecol da equipa de Portugal. Aquela jovem adepta de Futebol e de Fátima, não sabia o papel ridículo em que resultava aquela sua postura. 

Na verdade a jovem tentava interferir no resultado do jogo a seu contento, esperando que a imagem da santinha da sua perdição conseguisse, de Deus, o golo da vitória para o seu clube… prejudicando o outro com quem a equipa de Portugal disputava aquele campeonato!… 

É a velha história do “eu quero o melhor resultado para mim… o outro que se dane” … mas com ajuda divina! 

Este egoísmo é a característica forte de qualquer religião quando o interesse do crente é conseguir a entrada no céu depois de se finar. Para isso tem que comprar o ingresso celestial em vida e a prestações, ouvindo missas, tomando hóstias e depositando moedas nas ranhuras das caixas de esmola dos santinhos nos altares das igrejas, ou nas mãos dos gurus das seitas (mas estes não querem moedas… preferem notas, em forma de dízimo). 

Quanto ao respeito devido ao outro… isso é ficção!… A realidade do crente é a existência de Deus que pede o seu sacrifício personalizado na assistência de missas e no número de hóstias tomadas… o outro não existe!… Haverá excepções como em todas as regras… mas o que o crente típico quer é ter os seus interesses em recato! 

O católico (refiro o Catolicismo por ser a religião maioritária em Portugal e fazer parte da minha cultura. Não tenho nada contra a Religião Católica, até porque sendo ela a pedra basilar da sociedade que me formatou… ela sou eu… e eu sou ela… embora não alinhe na fé em Deus porque em criança me recusei a beber da taça religiosa até ao fim, e tive um pai republicano e anti-clerical que, secundado pela minha mãe, me soube transmitir valores reais em substituição de fantasias religiosas). 

Dizia eu que o católico tem, em Jesus Cristo, o expoente máximo dos ícones religiosos igualando-o a Maria. E esta pode, a todo o momento, tomar importância superior a Jesus, porque no contexto católico é importante adorar uma mulher sofredora e consensual. Maria não se meteu em lutas políticas, ao contrário do seu filho, o “Homem-Deus”, que militava num agrupamento de Esquerda… e se vivesse hoje até podia ser comunista!… 

Aliás, por aquilo que pode ser percebido nos registos cristãos, acredito que, se em vez de Palestino, Jesus Cristo fosse Sul-Americano e vivesse na década de 1960, tinha sido camarada de Fidel Castro e de Che Guevara, e seria assassinado a tiro numa selva da Bolívia em emboscada organizada pelos EUA… que o adora!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

17 de Julho, 2023 João Monteiro

O humor como alvo de terroristas

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Há dias cumpriram-se sete anos sobre o maior acto terrorista cometido em território francês desde há 50 anos. 

Em Paris, no dia 7 de Janeiro de 2015, pelas 11:20h, dois terroristas islâmicos fortemente armados com metralhadoras kalashnikov entraram na redacção do semanário satírico Charlie Hebdo depois de matarem o porteiro. Durante dois minutos dispararam a sangue frio contra os jornalistas-cartunistas que ali estavam reunidos na preparação do próximo número do jornal. Logo a seguir abandonaram as instalações deixando 12 vítimas mortais e cinco feridos. Na fuga ainda mataram um polícia e atropelaram um peão. 

Neste acto de terrorismo gratuito morreram os jornalistas cartunistas: Charb, Cabu, Tignous, Serge Wolinski e Philippe Honoré. Com eles também foram assassinados o revisor Mustafá Ourrad, os colunistas Elsa Cayat, Bernard Maris e o editor convidado Michel Renaud, mais um guarda-costas do desenhador Charb. 

A existência do guarda-costas justificava-se por, quatro anos antes, o mesmo jornal ter as instalações atacadas e incendiadas, tendo os atacantes feito uma ameaça de morte ao desenhador Charb (director do Charlie Hebdo), alegadamente pelo apoio dado ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten (que publicou cartunes satirizando Maomé) publicando uma caricatura na capa do Charlie representando Maomé tapando os olhos de vergonha, dizendo: “É duro ser amado por idiotas”.

Esses idiotas continuam a sê-lo. Há idiotas em todos os meios sociais… e alguns até são assassinos! 

Na proximidade do aniversário do atentado terrorista ao semanário satírico francês, o jornal espanhol El Mundo, no suplemento cultural La Lectura do último dia 6 de Janeiro, entrevistou o director do Charlie Hebdo, Riss, que foi um dos feridos no ataque de há sete anos, sobrevivendo a um tiro que lhe perfurou um ombro. Riss confessou sentir-se ultrajado pelos advogados de defesa dos terroristas islâmicos que são presos e levados a tribunal, por defenderem a inocência dos terroristas, alegadamente por também eles serem “vítimas das injustiças da sociedade”… colocando os assassinos ao mesmo nível dos assassinados! 

Já Charb (o director morto há sete anos) quando do primeiro ataque extremista religioso de que o jornal foi alvo em 2011, disse não culpar os muçulmanos “por não rirem dos nossos desenhos, simplesmente porque eu vivo sob a lei francesa, não da lei corânica”. 

Nos últimos oito anos as acções terroristas islâmicas mataram 264 pessoas só em França, incluindo neste número 131 espectadores na sala de concertos Bataclan em 2015. 

Na entrevista ao El Mundo, Riss mostra-se pessimista com o evoluir dos acontecimentos naturais e sociais no mundo. As suas preocupações centram-se nos problemas específicos da nossa época, como a liberdade de expressão, as redes sociais, as mudanças climáticas, a insegurança, o desemprego e o bem-estar social. 

Entende que as novas gerações não consideram estes tão importantes parâmetros, nem sequer têm a noção de que pode ruir tudo quanto já foi conquistado nos últimos 50 anos. “Há jovens de 20 anos que pensam como gente de extrema-direita de há 30 anos, e o curioso é que essa juventude se reivindica de Esquerdas, não dando conta de que praticam um moralismo ultra-reaccionário!” 

É com esta juventude que vivemos, e se os responsáveis políticos não fazem nada para que as noções de liberdade e de opressão sejam perfeitamente entendidas… o nosso futuro poderá ser bastante negro. E quando é um humorista a alertar para este desfecho trágico… o alerta deve ser tomado bastante a sério!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

14 de Julho, 2023 João Monteiro

AMOR DE DEUS ?!…

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Os furacões e as secas são cada vez mais frequentes e com resultados mais trágicos.
As últimas notícias dando conta de tais calamidades, remeteram-me a memória para o ano de 1998, quando a América Central foi palco de uma desgraça que mobilizou o mundo numa onda solidária perante a destruição que o furacão “Mitch” operou na Nicarágua provocando 20.000 mortos, 11.000 feridos e três milhões de desalojados.

A hipotética solidariedade de um sacerdote católico de nome Santiago Martin, manifestou-se num texto que publicou no semanário madrileno ABC.

Sob o título “Deus é amor”, escreveu: “Aqui, nestas três palavras, nesta breve frase, se encerra e condensa o essencial da nossa fé. Deus existe e é amor. Deus existe e quere-te, a ti, pequeno ser humano, vítima de tantas precariedades e de tanta dor. Deus não te abandona nunca, ainda que os teus mais próximos o façam. E a prova principal dessa felicidade e desse amor divino é a encarnação do filho de Deus, sua morte na cruz e a ressurreição gloriosa”.

Que dizer deste naco de prosa?
Este discurso, proferido por um louco na paisagem desoladora da Nicarágua após a passagem do furacão, não passaria disso mesmo: o discurso de um louco!… Onde estava Deus com o seu carregamento de amor e de bondade, no momento em que o furacão varreu a Nicarágua?

Aos crentes foi ensinado que Deus comanda as forças da Natureza (e também por cá, no Alentejo, um dia se fez uma procissão com padre e tudo, e se rezou, para que chovesse!), e a própria Igreja o reafirmou pela boca do arcebispo de Caracas, Ignacio Velasco, quando trágicas inundações enlutaram a Venezuela em Dezembro de 1999, causando 15.000 mortos.

O arcebispo afirmou que “a tragédia que assola e enluta a Venezuela e os seus habitantes, é devida à ira de Deus que quer castigar a soberba do presidente Chávez”. (El País, 20/12/1999).

Religião, loucura e ódio misturam-se nestes discursos que, ao que me parece, são habituais na América Latina, onde a esmagadora maioria do povo é fanaticamente religiosa e a Igreja Católica colhe grande número de crentes.

Quando a Igreja diz que Deus é amor, talvez conviesse especificar que raio de amor ela refere. Deus surge a distribuir o seu amor do mesmo modo como os bombeiros o fazem, sempre depois de ocorrida a desgraça? Deus é um enfermeiro que coloca pensos nos espíritos feridos? Convenhamos que é pouco para esse deus que as religiões pintam com cores tão psicadélicas e anestesiantes.

Deus dá-me amor e quere-me?!… Quere-me como? Quere-me bem, segundo o humano conceito do que é estar-se bem, fruindo de uma vida consideravelmente feliz… ou quere-me morto, segundo o conceito católico da “bem-aventurança-além-túmulo”?

Como é que se pode explicar às vítimas do furacão Mitch (e às de qualquer outro cataclismo, como os recentes entre nós) que tudo aquilo aconteceu por um acto de amor de Deus que tanto nos quer, e que naquele dia, ao que parece, acordou com vontade de ser um mãos-largas!…

As religiões são comandadas por loucos visionários?!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
OV

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12 de Julho, 2023 João Monteiro

Na morte de Ratzinger

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Morreu Joseph Ratzinger (1927-2022), bispo alemão que desempenhou o papel de Papa Bento XVI (B16) no elenco do Teatro Vaticano. No momento da sua morte tecem-se os elogios fúnebres habituais e usam-se abundantemente os adjectivos do costume enaltecendo as qualidades do defunto. Marcelo Rebelo de Sousa disse que B16 “foi filósofo, pensador e intelectual, e que procurava o diálogo entre a fé e a ciência”. Procurava?!… Se procurava, não encontrou!…

O livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, foi editado em 1851. Hoje a Teoria da Evolução continua a ser um engulho para muita gente de religião, desde a Igreja Católica até às Testemunhas de Jeová. Isso mesmo se pode ler no livro Criação e Evolução – uma jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Trata-se de uma obra com 190 páginas, editada em 2007 pela Universidade Católica. O livro resultou de um simpósio organizado por uma coisa que dá pelo nome “Círculo de Discípulos do Papa Bento XVI” e decorreu em Castel Gandolfo de 1 a 3 de Setembro de 2006.

Da leitura do livro “Criação e Evolução” concluí que a sapiência de B16 sai muito desfavorecida perante o saber de qualquer aluno do 5º ano de escolaridade, que sabe que o Homem teve de subir uma escada de progressos evolutivos desde que surgiu toscamente esboçado como Proconsul, até à forma de Homo, e depois sapiens, com especial destaque no período em que começou a ter consciência de si, enquanto Neandertalense

Curiosamente o sapientíssimo Ratzinger não sabia disso! Repare-se nesta sua falta de sapiência: no livro referido, ele quer encontrar uma “ética evolucionária” nos estudos de Darwin e diz que “o conceito se encontra inevitavelmente no modelo da selecção e, portanto, na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação bem sucedida, [o que] oferece muito pouco de consolador. Mesmo quando se quer embelezá-la de múltiplas maneiras, permanece afinal uma ética cruel. O esforço de destilar do irracional o racional, fracassa aqui com toda a evidência. Tudo isto tem pouca utilidade para conseguir a ética, que nos faz falta, de paz universal, da prática do amor ao próximo, e da necessária superação daquilo que é de cada um de nós […] a verdadeira razão é o amor, o amor é a verdadeira razão. Na sua unidade são o verdadeiro fundamento e a finalidade de todo o real”. 

Isto de misturar evolução natural com amor… não lembraria ao diabo!… Ratzinger quis passar a mensagem de que a selecção natural é algo de aniquilador e de racional! Algo que pertence, voluntária e conscientemente, à vontade dos homens e que se traduz numa “luta pela sobrevivência e na vitória sobre o mais fraco”, como se fosse uma guerra, como aquela que os Cristãos alimentaram contra os Sarracenos e Putin faz aos Ucranianos! Como se a selecção natural fosse um acto político pensado por uns homens contra outros homens! O que, evidentemente, não é verdadeiro. 

A selecção natural deu-se na espécie humana quando os Homo sapiens ocuparam o lugar dos Neandertais, e já tinha acontecido o mesmo quando estes sobreviveram aos Australopitecus. A ascensão do Homo sapiens sapiens fez-se por ser mais dotado para sobreviver no seu meio ambiente, porque detentor de meios racionais e inventivos, ferramentas que os seus ancestrais não possuíam na medida certa, e que surgiram naturalmente pelo sistema replicativo codificado no ADN, capaz de produzir mutações favoráveis às gerações futuras se fizerem uso delas. Isto é que é a selecção natural da espécie humana, e não constitui qualquer ética porque não tem nada a ver com a consciência e a vontade dos homens que, coitados, viveram tal selecção sem dela terem conhecimento. Nós hoje é que a conhecemos e estudamos… eles não a perceberam… e Ratzinger também não, o que é bem pior!… 

O amor ao próximo ou a falta de amor, o guerrear ou construir a paz, são peças de outras realidades alheias àquilo que se entendeu designar por selecção natural. Os actos políticos protagonizados pelos homens fazem as transformações sociais, mas nunca as selecções naturais como Ratzinger pretendeu afirmar. A ética não está presente numa manifestação natural. Não há ética no ribombar de um trovão nem na germinação de uma semente. Nem ética, nem amor. A ética é um objecto estético filosófico, e o amor é um sentimento. Ambos só podem ser produzidos e percebidos por cérebros inteligentes… e o senhor Ratzinger, possuindo um intelecto de gabarito (como dizem), devia saber disto… e parece que não sabia! No mesmo livro, o seu admirador cardeal Christoph Schönborn, que prefaciou a obra, atingiu um patamar optimizado quando desabafou: “Se a afirmação de que o mundo vem de um plano, de uma meta posta pelo Criador, se revelasse como cientificamente insustentável, então a fé num Deus criador e na sua providência seria também irracional […] seria uma fé que se edifica sobre um fundamento absurdo, não seria fé alguma, mas uma ilusão… ”. Exactamente, senhor cardeal!… Bravo!… (Aplausos). Só tenho um reparo a fazer a este desabafo cardinalício: o sentido religioso e o conceito de Deus, não pertencem ao irracional, porque o irracional nada entende e nada cria. O sentido da religiosidade e o próprio conceito de Deus, são produtos do raciocínio. Só pela inteligência e capacidade de raciocinar, de sentir e de se emocionar, é que foi possível ao Homem ser filósofo, artista, cientista, criador de deuses e ser religioso ou ateu. E o senhor Joseph Ratzinger pode ter sido muito boa pessoa (o que duvido porque perseguiu e destruiu a Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e outros, quando estava à frente do gabinete vaticano Congregação para a Doutrina da Fé) mas só foi religioso… e fundamentalista… porque não leu os livros que o podiam transformar no intectual de gabarito que dizem que foi!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

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