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Etiqueta: Espiritismo

7 de Novembro, 2025 Eva Monteiro

Segunda Carta a Um Crente

A primeira Carta a Um Crente está aqui. Poderá dar maior contexto à troca que se segue.

E não é que obtive resposta? Contra todas as minhas expectativas, o kardecista que anteriormente me abordou e que após insistência minha disse que eventualmente responderia… respondeu mesmo. Não é costume, pelo que lhe reconheço muito valor pelo respeito e esforço. Decidi partilhar aqui porque poderá ter interesse para os que apreciaram a primeira troca.

Segue a resposta do crente:

Boa noite Eva. Por mais que queira, não está a ser fácil dar-te a devida atenção e por isso peço desculpa pela resposta tardia.

Agradeço-te o cuidado e a profundidade da tua mensagem. É raro encontrar um diálogo que não se limite a slogans e que procura ir à raiz das ideias. É nesse espírito de respeito e reflexão que te respondo.

Quando digo “eu sei que existe”, não me refiro a um saber de laboratório, mas a uma certeza construída pela experiência íntima, pelo raciocínio e pela observação dos efeitos espirituais ao longo do tempo. No Espiritismo, essa certeza não é cega nem dogmática, é resultado de estudo, comparação e repetição de fenómenos mediúnicos que, analisados em conjunto, apontam para a sobrevivência da consciência após a morte.

Kardec nunca afirmou possuir provas absolutas, mas propôs algo que considero de uma lucidez rara para o seu tempo:

“Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.”
(O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIX)

Ou seja, no Espiritismo, crer não é o oposto de pensar. É crer porque se pensa.

É verdade que Kardec não aplicou o método científico no sentido estrito moderno, mas também é verdade que a ciência do século XIX ainda não tinha instrumentos para abordar a consciência como hoje começa a tentar fazê-lo. O que ele fez foi usar o método da observação comparada e recolher milhares de comunicações, eliminar as incoerentes, comparar mensagens de origens diferentes e sistematizar princípios. Não é ciência de laboratório, mas é um método de verificação empírica dentro dos limites possíveis quando o objeto de estudo é o espírito e não a matéria.

Quanto à ideia de que as experiências mediúnicas são meras ilusões neurológicas: o Espiritismo não as exclui. Kardec alertou inúmeras vezes para o autoengano, a influência do subconsciente e dos espíritos inferiores. A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação. A diferença é que, depois de filtradas e repetidas, muitas experiências deixam de poder ser explicadas apenas pela imaginação e é nesse ponto que nasce a convicção pessoal, fruto de observação e de coerência interior.

O teu apelo ao questionamento é algo que também defendo. A diferença é que, para mim, o verdadeiro questionamento inclui não excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limite ao cérebro. A postura espírita não é de negação da ciência, mas de complementaridade, a ciência explica o mundo físico e o Espiritismo tenta compreender o mundo moral e espiritual que o completa.

Não vejo no Espiritismo uma instituição que pretenda impor autoridade sobre o pensamento humano, vejo, antes, uma doutrina que liberta da autoridade ao incentivar o estudo, o livre-arbítrio e a responsabilidade individual. O anticlericalismo, nesse sentido, não é uma ameaça ao Espiritismo, porque este não tem clero, dogma, nem intermediários entre o homem e Deus.

Por fim, não te escrevo por evangelização, nem para arrancar ninguém de lado algum. Escrevo porque acredito que o diálogo sereno entre a razão e a espiritualidade é a via mais digna de evolução que podemos trilhar.
Como bem disseste:

“Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.”
Nisso, estamos de pleno acordo. 🙏

Ora, como é evidente, eu respondi:

Boa noite,

Antes de mais, quero agradecer-te por teres dedicado o teu tempo a responderes-me.

Acho que quando falas em saber que algo existe por convicção pessoal, estás a cair na falácia da ambiguidade. Dizes que “sabes que Deus existe”, mas que não te referes a um saber de laboratório, e sim a uma certeza interior construída pela experiência. É nisto que precisamos de rigor: o verbo “saber” não muda de significado conforme a conveniência de quem o usa. O conhecimento, em qualquer domínio, requer justificação e correspondência com a realidade. Se falta a justificação verificável, não é saber, é crença. A sinceridade da crença não é um selo de verdade. Pelo contrário: faz-se hoje em dia uma apologia da crença como se fosse uma coisa boa e desejável, como se fosse um marco de integridade e bondade, quando no fundo, só significa ter grande convicção na ausência de provas. Um muçulmano, um hindu ou um cristão místico podem todos afirmar “eu sei que o meu deus existe”, e no entanto as certezas deles são mutuamente exclusivas. Para o teu deus existir, o deus dos outros tem de ser falso. Todas as crenças podem ser (e não duvido que sejam) sentidas como verdadeiras, mas não podem sê-lo simultaneamente. A emoção, por mais intensa que seja, não é critério de realidade. Só deste um palavreado mais intelectual à expressão “mas eu acredito”.

Referes que o Espiritismo chega a essa certeza pela repetição de fenómenos mediúnicos e pela observação comparada. Contudo, a repetição de experiências subjetivas, sem controlo e sem exclusão de hipóteses alternativas, não é ciência, é circularidade na melhor das hipóteses. A tua descrição do método kardecista não passa de um processo de confirmação seletiva. Ou seja, eliminam-se as comunicações incoerentes, sistematizam-se as que parecem convergir e conclui-se que há coerência. No entanto, isso só pode acontecer precisamente porque as incoerências foram descartadas. Não é o método científico a ser aplicado. Esse pode ser aplicado por qualquer pessoa, pelo que se o Espiritismo estivesse em posição de ser confirmado pela ciência, já não pertenceria ao campo da crença. É, aliás, um caso clássico de viés de confirmação. Se um cientista aplicasse este procedimento a um fenómeno físico, seria descredibilizado à primeira revisão por pares. Por falar nisso, onde está a revisão por pares do Kardecismo? Ou os pares têm de ser kardecistas? A grande diferença aqui é que a ciência não elimina as anomalias: investiga-as. No Espiritismo, pelo contrário, as anomalias são descartadas para que a hipótese original se mantenha intacta. Ou seja, o que o kardecista faz é o mesmo tipo de “cherry picking” de todas as outras religiões, tradições místicas, ocultismos e afins, mas com uma roupagem científica. Lembra-te que também os Cientologistas o fazem, e com o mesmo resultado: uma mão cheia de coisa alguma (e a outra cheia de dinheiro).

A frase “Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade” não diz rigorosamente nada. É um chavão conceptualmente autofágico. Se a fé espírita tem de encarar a razão, então também tem de se submeter ao critério racional. Ora isto significa que deve poder ser provada, testada e, se falhar, abandonada. Mas o Espiritismo não permite esse exame. Nenhuma das suas afirmações centrais (existência de espíritos, reencarnação, mediunidade, ação dos “fluidos”) resiste ao método científico. Portanto, a própria citação, se levada a sério, aniquila a doutrina que pretende enobrecer. É o mesmo que um astrólogo dizer: “A astrologia é válida apenas se passar pelos testes da astronomia”. Pois claro, só que não passa. E o Espiritismo muito menos. Aceito a ideia de que o Espiritismo possa ser “crer porque se pensa”. Contudo, quando as pessoas pensam mal, acabam a acreditar em falsidades. Daí a necessidade do método científico que, não sendo infalível, é a melhor ferramenta de que dispomos para evitar pensar muito e chegar na mesma a conclusões falsas. A fé que encara a razão não é fé: é hipótese. Se resiste à razão, não precisa de se proteger com metáforas. Se depende da intuição interior, não é conhecimento, não é ciência, não é nada senão aquilo que acontece em todas as religiões do mundo: crença infundada e infundável.

O argumento de que “a ciência do século XIX não tinha instrumentos para estudar a consciência” é um equívoco histórico. O método científico não depende de tecnologia, depende da lógica e do controlo experimental. Em 1859, Darwin publicou “A Origem das Espécies” com base em observação e dedução. Não tinha, nessa altura, um único microscópio eletrónico ou um décimo da tecnologia de que hoje dispomos. O que faltou a Kardec não foram instrumentos, foi precisamente o método. E, mais grave que isso, o que ele propôs não se tornou mais plausível com os instrumentos que a ciência desenvolveu desde então. Se estivesse correto e apenas não tivesse na altura a tecnologia para o provar, o que está a impedir os kardecistas hoje? Não há confirmação da hipótese espírita da sobrevivência da consciência em nenhuma investigação em neurociência, psicologia ou física moderna. Nem sequer há indícios de que a mente exista fora do cérebro, de todo, em nenhum estudo que tenha sido levado ao escrutínio de pares.

Fonte: Britannica

Afirmas que, depois de filtradas e repetidas, certas experiências deixam de poder ser explicadas “apenas pela imaginação”. Essa frase é um exemplo típico da falácia do apelo à ignorância. O facto de não sabermos explicar algo não significa que a explicação espírita esteja correta. Só porque ainda não explicámos algo, não significa que seja inexplicável, é apenas para já inexplicado. E só porque a ciência ainda não explicou determinado fenómeno (sublinho que esse fenómeno deve pertencer ao campo da realidade e não da imaginação), não significa que possas apontar uma explicação sobrenatural só porque te apetece. Se fosse assim, cada lacuna da ciência seria prova do sobrenatural. Essa é precisamente a armadilha do “deus das falhas”, que podemos até apelidar, neste caso, de “espíritos das falhas”: sempre que a explicação natural ainda não está disponível, o sobrenatural preenche o vazio. O problema é que, à medida que o conhecimento avança, as lacunas encolhem e o espiritual recua. A história da ciência é, em grande parte, a história do recuo dos deuses, dos espíritos, das fadas, dos unicórnios, das sereias e restantes criaturas do plano da fantasia. O grande problema está onde dizes “A verdadeira investigação espírita começa justamente pela dúvida e pela necessidade de confirmação”. O método científico não procura confirmação, procura refutação. Quem procura confirmação é o crente, que precisa muito de acreditar e vai em busca de padrões que justifiquem a crença. Parte da resposta, não parte da pergunta. Não é racional, é emocional, é fé.

Dizes também que o verdadeiro questionamento não deve excluir à partida a hipótese de que a consciência não se limita ao cérebro. Concordo, não se deve excluir nenhuma hipótese a priori. Mas uma hipótese que não apresenta qualquer evidência positiva é, por definição, descartável a posteriori. Nas palavras de Christopher Hitchens: “O que pode ser afirmado sem evidências pode ser rejeitado sem evidências”. É esta a navalha que corta, a posteriori, as afirmações de Allan Kardec que, por melhores intenções que tivesse, falhou redondamente a missão. Não é uma questão de recusar à partida uma hipótese, é não me ser dado a encontrar nenhum mérito racional na hipótese colocada. O ceticismo não é o dogma da negação: é a recusa em aceitar como verdadeiro o que não foi demonstrado. A diferença pode ser subtil, mas é mesmo essencial. A dúvida é uma virtude precisamente porque nos protege da tentação de confundir desejo com realidade. O tal “wishful thinking” de que tanto falam os americanos.

Quanto à “complementaridade” entre ciência e espiritismo, o termo é sedutor mas intelectualmente falso e muito enganador. Ciência e fé não se complementam, porque operam em planos distintos e com métodos incompatíveis. Aliás, sempre que se tentam misturar, acaba a fé a querer encurtar a ciência. A ciência, por sua vez, não se preocupa com a fé, deixa-a à porta do laboratório porque não cabe lá dentro. A ciência exige prova e refutabilidade. Já o Espiritismo aceita convicção e intuição, como se o valor fosse o mesmo quando definitivamente não é. A complementaridade só é possível se uma abdicar da sua natureza. Historicamente, é sempre a fé que acaba por abdicar (entre birras e pontapés), ajustando-se a contragosto à medida que a ciência avança. Quando o Espiritismo se afirma “em harmonia com a ciência”, é porque se adapta retroativamente aos seus resultados, nunca porque os antecipa ou os demonstra. Caso contrário não se chamava Espiritismo, chamava-se Neurofísica Post-Mortem ou coisa que o valha.

Dizes ainda que o Espiritismo liberta da autoridade. Mas toda a doutrina que parte de postulados inquestionáveis, como a existência de espíritos, a reencarnação, a evolução moral das almas, entre outros, é uma estrutura de autoridade dogmática, ainda que possa não depender de um clero. A ausência de sotainas e chapéus esquisitos não é sinónimo de liberdade intelectual. Um sistema de crenças que não admite a possibilidade de estar errado é, por definição, autoritário. Mesmo que o autoritarismo se disfarce de serenidade. Ora, se o Espiritismo estivesse disposto a reconhecer efetivamente as suas falhas, já não teria adeptos, já teria concluído que não há razão para manter estas crenças, porque não passam no escrutínio do método científico. Eu sou de facto anticlerical. No entanto, só porque um determinado corpo de crenças não é clerical não me faz ter por ele mais consideração intelectual. O que ganha a minha aceitação são os factos, não o que alguém escreveu num livro, ou em muitos, com roupagens pseudocientificas.

Por fim, afirmas que o diálogo entre razão e espiritualidade é a via mais digna de evolução. Eu diria antes que o diálogo entre razão e espiritualidade só é fértil quando a espiritualidade aceita o crivo da razão e se deixa expirar como o iogurte estragado que é. A espiritualidade que resiste à verificação é apenas uma forma de poesia existencial. Pode ser muito bonita, muito afável ao ego, mas revela-se impotente perante a realidade. A verdade não se mede pela paz interior que nos oferece, mas pela correspondência com os factos. Daí que a utilidade da fé para efeitos de conforto emocional não justifique nada.

Fico contente por concordares que evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo. Mas a verdade exige disciplina intelectual: a disposição constante de dizer “posso estar enganado”. Essa é precisamente a diferença entre o método científico e qualquer doutrina espiritual: uma pode falhar e corrigir-se, a outra precisa de permanecer certa para continuar a consolar. E entre a necessidade de consolo e o dever de lucidez, hei-de escolher sempre a lucidez.

5 de Outubro, 2025 Eva Monteiro

Carta a um Crente

(Quase) todas as quartas-feiras sou anfitriã de um debate online em que convido crentes a discutirem temas que me parecem relevantes à luz das suas crenças. Faço-o através da plataforma TikTok e vou lá deixando também, em formato de vídeo, algum conteúdo. Foi com alguma surpresa que encontrei na minha caixa de entrada desta plataforma uma mensagem mais educada e razoável que as do costume (normalmente são insultos). Sou detalhada nas minhas respostas, pelo que no fim, achei que o texto poderia ser útil e decidi publicá-lo aqui. O que se segue é a mensagem inicial desta pessoa:

Ponderei bastante antes de enviar mensagem. Era bem mais fácil não dizer nada e pronto, vida que segue. Mas não consigo concordar contigo em relação às religiões. As religiões têm um papel fundamental na sociedade e esta é somente a minha opinião. E esta é a minha verdade. Tu tens a tua e outra pessoa qualquer poderá ter a dela e está tudo certo. Sem julgamentos, até porque a meu ver cada um tem o seu caminho e trajeto a seguir. Que me digas que houve e há uma instrumentalização por parte dos homens em relação a essas mesmas religiões, sem dúvida alguma, 100% de acordo. No entanto, as religiões na sua essência são apenas e só uma maneira de mostrar valores e distinguir o certo do errado. Percebo que me digas que isso faz parte da educação de cada ser, mas na minha opinião não é a mesma coisa. Pois uma coisa é o pai, ou a mãe, ou mesmo a professora, outra é supostamente uma entidade superior a demonstrar o bem ou o mal.

Atenção que à medida que crescemos todos nós optamos por diversos caminhos e começamos a questionar esses mesmos ensinamentos. O que é normal pois são apenas histórias que passaram de pessoas para pessoas e que quem as passa age como se fossem verdades absolutas.

Como é lógico, devemos questionar sempre e não acreditarmos em algo só porque sim. Devemos tirar as nossas próprias conclusões, pelas nossas próprias experiências e também pelas nossas pesquisas se assim o desejarmos e quisermos saber mais. Por exemplo, se me perguntares se eu acredito em Deus, eu vou responder o que respondo sempre. Eu não acredito, eu sei que Existe.

Não me identifico com nenhuma religião. Fui educado sim na igreja católica cristã (é cultural) e tive passagens pelo budismo. No entanto, desde os meus 5 anos de idade que tenho contato com outros planos, que não aquele que estamos no momento presente. Estudo o espiritismo segundo Allan Kardec, sempre baseado no método científico.

Como eu costumo dizer, o espiritismo não é uma religião, é um modo de vida. É apenas a maneira como vemos o mundo e que não há certos nem errados, há apenas experiências e modos de fazer e ver as coisas de maneira diferente. Lá porque dizes que algo é assim e eu digo que é assado é tudo uma questão de perspectivas. Estamos sempre a aprender e a evoluir.

Peço desculpa pela intromissão e pelo testamento. Bom fim de semana.

A minha resposta:

É a tua vez de me perdoares a extensão da resposta. Quando acabei de a escrever dei conta que talvez tenha sido detalhada demais. Ainda assim, acho que devo escrever o que tenho a dizer e tu decidirás se tens o tempo e a paciência de fazeres a leitura e até, se eu tiver alguma sorte, responderes aos pontos em que discordo contigo.

Prometi que te respondia mal pudesse dar atenção completa à tua mensagem e tive algum tempo para ponderar. É sempre um sinal de integridade intelectual quando alguém que me manda mensagem privada numa rede social se dispõe a refletir, questionar e dialogar, mesmo quando o tema é sensível; e poucas coisas o são mais do que as crenças religiosas. Por isso, antes de mais, quero agradecer-te novamente pela mensagem.

O facto de não concordares comigo quanto às religiões é válido, temos direito a portar diferentes opiniões e a defendermos diferentes posições. Contudo, eu acredito em fundamentar as minhas posições e a questionar o fundamento das posições contrárias à minha. Desta forma, posso entender se a minha posição está afinal, errada. Hoje não foi o dia. Parece-me que confundes, antes de mais, opinião com verdade. Esta ideia de que dada coisa é “a minha verdade” é completamente descabida. É a tua opinião, faz parte da tua mundividência, é o que tu achas. A verdade é outra coisa. Não depende da opinião nem da perspectiva de quem afirma que algo é verdadeiro, mas da coerência entre a afirmação e a realidade. Isto é, uma afirmação é verdadeira se corresponder aos factos ou ao estado de coisas que a pessoa afirma.

Quanto a opiniões, cada um tem a sua, é verdade. Por outro lado, não devo aceitar tudo o que me dizem só porque as pessoas têm direito a terem opiniões. Podemos certamente concordar que nem todas as opiniões fazem sentido. Há quem acredite que a terra é plana. Têm direito a acreditar numa coisa falsa, mas eu não tenho que aceitar que a terra é plana só porque essa é a opinião de uma pessoa que está muito claramente errada mas que decidiu ser essa “a sua verdade”. Há opiniões sobre tudo e para todos os gostos. Algumas opiniões são inócuas, outras têm consequências. Quando a consequência só atinge o próprio, está tudo bem. Quanto a consequência atinge outros ou a sociedade em geral, creio que opor-me é imperativo.

Do ponto de vista histórico, é verdade que as religiões moldaram civilizações, inspiraram arte, música e literatura, e serviram de estrutura moral e social durante séculos. Mas a questão crucial é: a que custo e com que fundamentos. A religião, de uma forma geral, foi a primeira explicação que a humanidade conseguiu dar a grandes questões, mas não foi a última nem foi a melhor. Pelo contrário, é a mais imperfeita das explicações do mundo e a que provocou piores danos. Contudo, ainda que não tivesse provocado danos e não fosse hoje uma visão obsoleta, o facto de em tempos ter tido utilidade não significa que seja verdade. São dois conceitos diferentes. Um vidente pode ser útil a um cliente que lá vai desabafar, mas não deixa de ser charlatanice. Naturalmente, não concordo contigo que as religiões ainda têm esse papel social, pelo menos no ocidente secularizado em que as leis, feitas por pessoas para pessoas, moldam a nossa vida diária. Por outro lado, a religião mantém esse poder em países onde a teocracia é a regra. Acho que basta olhar para os países que não fazem a separação entre o estado e as organizações religiosas para vermos o quanto a religião corrompe e destrói sociedades inteiras.

Quando alguém me diz que as pessoas é que instrumentalizam a religião, sinto que estamos a cair numa tautologia. A religião não é petróleo. Não é uma coisa que a humanidade descobriu e que não soube usar corretamente. A religião é uma construção humana cujo objetivo é o controlo. Parece-me por isso evidente que um instrumento seja… instrumentalizado. Basta olharmos para as sociedades para entendermos que tipo de deuses é que as pessoas criam. Uma sociedade de pequenas tribos, onde toda a gente se conhece e em que a violência e o crime são situações pontuais e aberrantes tende a ser animista. Já uma sociedade que desenvolve grandes cidades tende a criar deuses que vigiam, que estão em todo o lado, que castigam pecados. A religião é o que as pessoas criam antes de desenvolverem sistemas legais e modos mais seculares de regulação social.

Na sua essência, as religiões não te dão um sistema de valores. Pelo contrário, és tu que imprimes moralidade à religião que professas. Por isso é que tantos cristãos não são racistas, misóginos e violentos, apesar de o seu livro sagrado estabelecer um sistema de “valores” absurdo e impensável. Se decidisses agora seguir à letra o sistema de valores que o cristianismo, o judaísmo ou o islamismo oferecem nos seus escritos sagrados, só não ias parar à cadeia se te rebentasses juntamente com uma bomba, ou te suicidasses após desatares a matar infiéis, pecadores, bruxas, ateus e outros. Se seguisses à letra esse sistema de “valores”, não distinguirias o certo do errado. É porque consegues distinguir o certo do errado que tens a capacidade de ignorar as partes imorais de uma religião e selecionar ou reinterpretar as partes que se coadunam com o teu sistema moral.

Para mim, distinguir o que é bom e o que é mau também não faz inteiramente parte da educação de cada pessoa. Faz também parte do processo de seleção e da sobrevivência da espécie. Somos uma espécie cooperativa e se não tivéssemos a capacidade de coexistir, de saber que não se faz mal aos outros, que devemos ser bons uns para os outros, não sobreviveríamos enquanto espécie. Com todos os defeitos que temos, temos tendência a não sermos violentos, a não sermos destruidores da nossa própria espécie. É coisa comum a muitas espécies, especialmente entre os mamíferos e especificamente entre os primatas que nos são, do ponto de vista da evolução, mais próximos. A mãe e o pai, ou a mãe e a mãe, ou o pai e o pai, ou a avó, o avô, o tio, a tia, ou seja quem for que educa uma criança tem um papel essencial na sua vida através da educação e isso eu não nego. Uma criança bem educada terá um futuro mais feliz e útil, para si e para os outros. Contudo, falas de uma entidade superior que demonstra o bem e o mal. Suponho no entanto que o teu deus, seja ele qual for, nunca te respondeu às preces de forma audível e verificável. Não temos quaisquer provas de que uma entidade sobrenatural alguma vez tenha falado ou aparecido a alguém. Temos é padres, pastores, bispos, apóstolos, profetas, gurus e restantes líderes espirituais que dizem saber o que está certo e o que está errado, e que afirmam o que é ou deixa de ser a vontade do respetivo deus. Ora, cada líder religioso tem a sua opinião sobre o que está certo ou errado, pelo que não existe nessa suposta comunicação divina objetividade suficiente, nem nos dias de hoje nem ao longo da História, para suportar a tua afirmação. Eu creio que entendes isto, pela forma como escreves, mas não me parece que entendas que o que dizes num parágrafo contradiz o que dizes no parágrafo anterior.

Concordo que devemos questionar, tirar as nossas próprias conclusões, como dizes. Mas então em que momento desse processo é que entra deus?

Dizes uma frase que já ouvi centenas se não milhares de vezes em debates, especialmente com cristãos e muçulmanos: “Eu não acredito, eu sei que Existe.” Na verdade é o oposto, tu não sabes, tu acreditas. É matéria de fé e não de facto. Se soubesses efetivamente que o teu deus existe, terias como prová-lo. Se fosse esse o caso, não estaríamos a debater via mensagem no TikTok, terias mostrado esse facto à humanidade, não existiriam ateus e terias ganho meia dúzia de prémios Nobel e pelo menos uma beatificação. É apenas, e lamento ter que to dizer de forma tão direta, uma frase feita daquelas que os padres e os pastores gostam de atirar ao ar mas que carecem de qualquer tipo de sentido. É aquela jogada de dizer “eu sei no meu coração que deus existe” – se sabes no teu coração, não sabes na tua cabeça. Estou interessada naquilo que é verificável, não em “verdades pessoais” que é uma forma de dizer crenças infundadas.

Quando alguém me diz que não se identifica com nenhuma religião chego sempre à conclusão que é porque não se querem comprometer à partida com determinados dogmas, com os quais podem não concordar ou não saber como sustentar. No entanto, quando faço perguntas a quem diz que não se identifica com nenhuma religião, chego sempre à conclusão que o deus em que acreditam é aquele que lhes foi imposto na infância e que as suas crenças religiosas vão de encontro às crenças da instituição religiosa correspondente, ainda que não na sua totalidade. Resumindo, posso dizer que apesar de tu não te identificares com nenhuma religião, bastariam 10 minutos de conversa honesta para eu fazer essa identificação por ti. Aliás, esse diálogo, a ser feito internamente e de forma honesta, provavelmente também faria com que te identificasses com alguma religião. Vou apostar, sem muita base, porque essa conversa não aconteceu, que acreditas no deus da Igreja Católica (omnisciente, omnipotente, omnipresente e bom), mas que gostas de práticas mais místicas pelo que em vez de ires à missa preferes meditar e que não te identificas com a Igreja Católica porque o Kardecismo te conferiu a crença de que o mundo dos espíritos está ao teu alcance, quando a Igreja o nega. Isto é, descaradamente, um pré-conceito da minha parte. Não o nego e até peço desculpas se estiver errada. No entanto, apostaria uns euros nesta opinião se fosse forçada a isso.

Quanto ao espiritismo e à ideia de contacto com outros planos, o que posso dizer é que a sinceridade da experiência não garante a veracidade da interpretação. As experiências subjetivas (visões, intuições, sentimentos de presença) são universais e explicáveis em termos neurológicos e psicológicos. A mente humana é extraordinariamente criativa, e o cérebro é capaz de gerar experiências intensamente reais que, no entanto, não têm correspondência objetiva. O método científico serve precisamente para proteger-nos dessas ilusões, inclusive das mais agradáveis.

Embora Allan Kardec afirmasse seguir o “método científico” na elaboração da doutrina espírita, na realidade ele nunca aplicou qualquer procedimento científico reconhecível. Não houve observação controlada, hipóteses testáveis, experimentação reproduzível nem revisão por pares. O que Kardec fez foi recolher relatos mediúnicos e interpretá-los à luz das suas próprias convicções, apresentando-os como factos. Esse processo pode ter sido feito com sinceridade, mas não é ciência, é especulação metafísica. A ciência baseia-se em evidências verificáveis e na possibilidade de refutação. Já o espiritismo baseia-se em testemunhos subjetivos e fenómenos não demonstráveis. Portanto, apesar de Kardec desejar dar ao espiritismo uma aparência racional, os seus escritos pertencem ao domínio da crença, não ao da investigação científica. Que seja esse o teu modo de vida é uma escolha pessoal que não tenho que questionar. Contudo, é só isso, uma escolha de vida que em nada demonstra a veracidade dos ensinamentos que escolheste seguir e que em nada se baseia no método científico.

Concordo inteiramente contigo num ponto essencial: devemos sempre questionar e continuar a aprender. O problema é que o verdadeiro questionamento exige que também coloquemos em dúvida as nossas certezas mais íntimas, inclusive as espirituais. E é aqui que a postura ateísta não é uma negação da espiritualidade humana, mas uma exigência de honestidade intelectual. Por fim, suspeito que o que te incomoda no meu conteúdo é sobretudo o anticlericalismo. Deixa-me só referir que o anticlericalismo não é ódio à religião, mas defesa da liberdade de consciência contra qualquer instituição que pretenda ter autoridade sobre o pensamento humano. É uma oposição ao poder clerical. As igrejas e demais instituições religiosas e espirituais, todas elas, devem ser submetidas ao mesmo escrutínio que qualquer outra forma de poder. Isso não é intolerância; é maturidade intelectual.

Ao ler e reler a tua mensagem fico na dúvida: seria uma forma de evangelização? Tens como objetivo arrancar-me do ateísmo herege e pecaminoso? Tiveste necessidade de partilhar as tuas crenças porque sentes que o meu conteúdo as invalida de alguma forma? Ou só quiseste iniciar um debate? Não sei, mas agradeço na mesma a tua mensagem. O diálogo é o que nos permite evoluir.

Evoluímos melhor quando a verdade, e não o conforto, é o nosso objetivo.