24 de Junho, 2025 Onofre Varela
Aborto ainda condena mulheres portuguesas
Leio no jornal Público de 17 de Junho último, que “entre 2007 e 2024 houve 159 crimes de aborto registados em Portugal e 33 condenações em 1ª Instância relacionadas com estes casos”. A notícia é, no mínimo, estranha e assombrosa… já que a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em Portugal está legalizada desde 2007 pela lei nº 16, de 17 de Abril, segundo fonte fidedigna da Direcção Geral da Saúde e da Sociedade Portuguesa da Contracepção. Quem agora veio revelar este assombroso número de “crimes” relacionados com a prática do aborto no país (que eu presumia legal) foi a Amnistia Internacional (AI) que regista tão elevado número no seu relatório sobre IVG em Portugal. Entre as recomendações que a AI deixa ao governo Português consta a retirada da prática abortiva do Código Penal… (eu nem imaginava que constava dele, depois da lei de 2007!).
A mesma notícia dá conta de que quem se governa muito bem com esta “titubeante legalização da IVG em Portugal” são as clínicas espanholas. Em seis anos (de 2019 até 2025), 3352 grávidas portuguesas recorreram a clínicas espanholas para interromperem a gravidez. Não é novidade: em Junho de 1999 (quando ainda era proibido abortar em Portugal) a imprensa noticiou que nos três anos anteriores cerca de nove mil mulheres portuguesas tinham recorrido a clínicas espanholas para abortarem. Há, por cá, um movimento de “famílias bem” apoiado pela Igreja (não sei se alguns elementos destas famílias têm interesses económicos nas clínicas espanholas) que quer um retrocesso na lei que regulamenta a prática do aborto em Portugal, inscrevendo-o na mesma lista onde colocaram a eutanásia que não querem ver legalizada.
É uma atitude que me parece muito estranha… porque aquilo que, de imediato, sobressai dela é a falta de respeito pela vontade do outro, o que mostra haver quem queira impor a sua própria vontade a todos os cidadãos do país! Para quem viveu, como eu vivi (em 1974 eu tinha 30 anos) a realidade do Portugal ditatorial sob o regime de Salazar e da Igreja Católica medieval (contra quem, e contra o que, eu estava) é que sente o bem que é ter a Liberdade de escolher que todos conquistamos em Abril!…
Aos meus leitores mais novos lembro que as leis de Salazar proibiam o aborto e o divórcio, obrigando a que cada homem desse o seu apelido de família aos filhos da sua esposa, mesmo quando os bebés eram, garantidamente, filhos de outro homem! Quanto ao aborto, a tragédia multiplicava-se. Sob o falso e dogmático manto da defesa da vida, a petrificada posição religiosa contribuía para situações que se saldavam em elevado número de mortes, que seriam evitáveis através de políticas realistas, livres de religiosas e nefastas vontades.

Em 1997, quando na Assembleia da República se discutia a lei da IVG, houve um caso noticiado pelo jornal Diário de Leiria como notícia local. Uma senhora tinha uma filha bebé de poucos meses e engravidou sem o querer. Por muito que ela quisesse dar um irmão ao primeiro filho, havia uma realidade económica e social que lhe dizia não ser possível fazê-lo naquele momento. Ela e o marido trabalhavam. As despesas da casa recém-adquirida levavam quase o vencimento do casal, deixando pouco para os restantes gastos familiares. Um outro filho naquela altura era impensável. Decidiu-se pelo aborto clandestino por ser o único modo que tinha de abortar naquele tempo. Mesmo assim, teve o bom senso de não confiar o seu corpo a uma habilidosa, e procurou uma profissional credenciada. Uma enfermeira que lhe foi recomendada por alguém. Teria de pagar 50 contos (parte para a enfermeira e outra parte para a pessoa que fez a mediação). Conseguido o dinheiro por empréstimo, a enfermeira provocou-lhe o aborto em sua própria casa. Dois dias depois a senhora não aguentava as dores e chamou a enfermeira que, vendo o caso de difícil solução, chamou uma ambulância e levou-a para o hospital. Foi-lhe diagnosticada uma “infecção generalizada”… e morreu no dia seguinte.
São estes desfechos, impensáveis numa sociedade moderna, que os contrários à IVG querem ver nos telejornais da desgraça dos seus encantos?!…