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Autor: Palmira Silva

12 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Ateísmo nas escolas em Inglaterra?

Foi ontem publicada pelo Governo britânico uma análise estatística do censo de 2001 (complementada com informação mais recente) focada no tema religião.

Verifica-se que o cristianismo (nas suas múltiplas variantes) é dominante (71,8%) seguido dos que se declaram sem religião (15,1%) e dos que não indicam religião (7,8%). Todas as outras religiões em conjunto representam apenas 5,4% da população britânica.

Com uma população de ateístas tão representativa não se percebe porque ainda não se implementaram as recomendações do Institute for Public Policy Research, que sugere incluir o ateísmo nos programas escolares de educação religiosa e que a disciplina actual de Educação Religiosa deveria passar a ser designada por Educação Religiosa, Filosófica e Moral.

Um debate (já fechado) interessante sobre o tema pode ser encontrado no site da BBC online, Deverá o ateísmo ser ensinado nas escolas?

11 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Rocky Road to Dublin

Mais de 30 anos depois de rodado e no ano em que Cork é a capital europeia da cultura, o documentário de Peter Lennon, filmado por Raoul Coutard, o operador de câmara de Godard e Truffaut, The Rocky Road to Dublin passa finalmente esta semana no Cork Film Festival.

O que fazer com a revolução depois de a obter? é a pergunta a que Peter Lennon tenta responder com este documentário em que argumenta que se a revolução de 1916 acabou com o domínio inglês na Irlanda (possível com a preciosa ajuda do Papa Adriano IV a Henrique II da Inglaterra,) este foi substituído por um domínio religioso opressivo.

Numa entrevista ao jornal Britânico Guardian, Retrato de uma sociedade sujeita a lavagem cerebral, o autor conta como a Igreja Católica irlandesa censurou eficazmente o filme, um dos oito escolhidos para a semana da crítica no festival de Cannes de 1968 e o último filme visonado antes de Godard e Truffault cancelarem o festival, por solidariedade para com os estudantes.

No próximo sábado a múmia sai finalmente da tumba. E as perguntas incómodas postas por este documentário há três décadas continuam actuais: conseguiram os políticos irlandeses libertar-se do que é descrito no filme como «a terrível e fatal ligação entre Igreja e Estado»?

A julgar pelo acordo entre a Igreja e o estado irlandês que assumiu cerca de 75% das indemnizações devidas aos milhares de vítimas de abuso sexual e trabalho escravo nas instituições católicas irlandesas parece que não…

30 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Demissão na ICAR Austríaca

Notícias da demissão do Bispo Kurt Krenn envolvido no escândalo pornográfico que abalou a Áustria este Verão, foram hoje divulgadas. Em Julho passado uma revista austríaca publicou fotos de clérigos acariciando e beijando os alunos do seminário St Poelten, perto de Viena. A investigação foi despoletada por acusações ao director do seminário de abuso sexual de menores e na sequência desta investigação foram encontrados cerca de 40 000 fotos e vídeos, alguns de pornografia infantil, nos computadores do seminário.

De acordo com o próprio, que classificou como brincadeiras infantis as fotos e vídeos revelados e infundadas as acusações de abuso sexual, a decisão foi pessoal e não por pressão do Vaticano.

Em 1995 a ICAR austríaca passou por um episódio semelhante que culminou com a demissão do reconhecido pedófilo e Cardeal de Viena, Hans Hermann Groer.

Num país em que, oficialmente, noventa por cento da população é católica os escândalos sexuais sucessivos que abalaram a ICAR tiveram como consequência o abandono das igrejas e uma petição subscrita por centenas de milhares de austríacos a pedir a reforma da Igreja.

29 de Setembro, 2004 Palmira Silva

O Empenho Ecuménico da Igreja Católica

Longe vão os tempos em que a ICAR se revia na Nostra Aetate, que exortava «os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os sequazes doutras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio culturais que entre eles se encontram.» e na Dignitatis Humanae, que reconhecia o direito à liberdade de religião.

Não obstante o reconhecimento pelo actual Papa há escassos nove anos de que «Este sagrado Concílio (Vaticano II) exorta todos os fiéis a que, reconhecendo os sinais dos tempos, solicitamente participem do trabalho ecuménico» e a afirmação de que «Com o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica empenhou-se,de modo irreversível, a percorrer o caminho da busca ecuménica, colocando-se assim à escuta do Espírito do Senhor, que ensina a ler com atenção os “sinais dos tempos”», na praxis actual do Vaticano assiste-se a um crescendo da negação do concílio Vaticano II.

A tal ponto que hoje se pode ler no Público que o Vaticano descontente com gestão de Fátima ameaça controlar santuário. E que «a Conferência Epsicopal Portuguesa recebeu já indicações para aproveitar a reforma iminente do bispo de Leiria-Fátima, D. Serafim Ferreira e Silva, para alterar a gestão do santuário que honra o local onde, em 1917, a Igreja Católica indica que terão ocorrido as aparições de Fátima aos três pastorinhos.

A visita do Dalai Lama e do sacerdote hindu terá, segundo fontes citadas pelo diário, levado “longe demais” o “sentido ecuménico” do santuário.»

PS: Agradeço ao Nuno, mais um leftista na blogosfera nacional, a chamada de atenção para a notícia.

29 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Contrastes

No rescaldo do caso Borndiep e quando é prevísivel que o tema da Interrupção Voluntária da Gravidez volte a ser notícia de destaque com o julgamento de uma jovem de 21 anos dia 28 de Outubro, por ter recorrido à pílula abortiva quando tinha 17 anos- e denunciada por um enfermeiro do hospital onde foi atendida na sequência de uma IVG que deixou sequelas- a ICAR prepara o ambiente. Para além da realização das X Jornadas de Filosofia, Espiritualidade e Cultura Hospitaleira nos primeiros dias de Outubro próximo, subordinadas ao tema «Para uma Pastoral Evangelizadora», em que parte da evangelização se prende com «Pastoral e Bioética», na Agência Ecclesia é realçada a Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa: A Família, esperança da Igreja e do mundo.

Em que se pode ler «Também faz parte da missão essencial da família cristã na sociedade, defender e promover uma autêntica cultura da vida. Isso inclui a formação para a paternidade responsável, na fidelidade ao Magistério da Igreja. Inclui, também, a formação dos filhos na afectividade e na sexualidade, de modo que eles cheguem a alcançar uma recta consciência e possam agir de acordo, não com modas ou influências exteriores, mas com os valores aprendidos do Evangelho e dos ensinamentos da Igreja. Inclui, ainda, a defesa da vida em todas as circunstâncias, desde o nascimento até à morte.»

Para evitar que os adolescentes tenham acesso a uma educação sexual que previna o que aconteceu à jovem que vai agora a julgamento na dita pastoral é deixado um recado ao nosso governo, cada vez menos laico, especialmente se amanhã for ratificada a Concordata «Os pais, fiéis ao dever de acompanhar a formação integral dos filhos, devem procurar conhecer o tipo de educação sexual que a escola se propõe oferecer, bem como os objectivos que os programas de educação sexual pretendem atingir. Devem, também, ter o direito de recusar que a escola dê aos seus filhos uma educação sexual que vá contra os seus valores.»

De igual forma, considera a ICAR que a comunicação social deve estar sob os seus auspícios e que «Aos profissionais da comunicação social compete usar bem a responsabilidade que lhes é confiada e promover os valores que ajudem à consolidação da família como realidade indispensável ao bem da sociedade». Se tal não acontecer resta a censura porque é de facto censura o que se está subentendido no parágrafo que reza «Às autoridades públicas pede-se que, sem recorrer à censura, criem mecanismos de regulação para garantir que os meios de comunicação não ajam contra o bem da família.»

Esperando que nunca seja implementada a censura preconizada pela ICAR podemos entretanto apreciar artigos lúcidos sobre a IVG como o da historiadora Maria de Fátima Bonifácio, no Público de hoje, um artigo que vale a pena ler na íntegra e que termina:

«Acho muito bem que os católicos obedeçam à Igreja e adoptem “os métodos naturais”, e até acharia ainda mais coerente que ligassem o sexo exclusivamente à procriação. Nada nem ninguém os impede. Mas já me parece intolerável que num estado laico e numa sociedade democrática pretendam estabelecer preceitos de vida para quem não partilha da sua fé, recorrendo ainda por cima a um terrorismo ideológico que não apenas inibe qualquer debate racional e sereno sobre o assunto, como cria artificial e insidiosamente um ambiente social desfavorável ao alargamento do planeamento familiar e à educação sexual. Assimilar o aborto a um infanticídio equivale a bloquear toda a discussão e conduz à negação hipócrita de uma realidade a que toda a gente, no entanto, chama uma “chaga social”. Essa chaga suportam-na as mulheres, e dentro destas sofrem sobretudo, de longe, as mais pobres. Mas aqui parece que já não chega a consciência católica dos movimentos pró-vida.»

Artigo com que estou plenamente de acordo!

18 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Sexo e ciência

Nos últimos tempos temos sido agraciados com uma série de notícias em que o tema recorrente é o recrudescimento das iniciativas religiosas para reintroduzir os seus dogmas no Direito, suposto laico, que rege os nossos estados. Nomeadamente em assuntos que têm subjacentes a sexualidade, como é referido, por exemplo, no post do Carlos Esperança «A Cúria não tem cura»

Tudo isto suscitou a escrita deste texto em que, para evitar eventuais desentendimentos semânticos, vou apenas abordar o sexo=biológico e deixar de lado a sua evolução para o que chamo sexo=social. Portanto logo à partida separo-me um pouco da visão do filósofo Michel Foucault (A História da Sexualidade , 1976-1984) que engloba ambos numa scientia sexualis: «A noção de sexo tornou possível agrupar, numa unidade artificial, a scientia sexualis, elementos anatómicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres; e possibilitou-nos usar essa unidade fictícia como um princípio causal, um sentido omnipresente, um segredo a ser descoberto em toda parte» (Michel Foucalt, A Hstória da Sexualidade, 1976-1984).

Pessoalmente acho que a civilização progride em saltos quânticos e não de forma contínua. As grandes transições civilizacionais surgiram no decurso de uma grande descoberta: o fogo, a metalurgia, a pastorícia, a domesticação de animais, etc… Na História mais recente podemos identificar movimentos culturais como catalizadores das transições, normalmente literários ou de outras formas de arte, que interpretam e transmitem os avanços científicos em todas as áreas do conhecimento humano, nomeadamente nas ciências exactas. Até ao limiar do século XX a sociedade em geral era exposta ao que de novo era descoberto pelos cientistas. Eram habituais as experiências de salão na sociedade elegante dos séculos XVIII e XIX, em que a classe alta se divertia com o NO, o gás hilariante, ou o hélio, que mudava o timbre do mais respeitável barítono. Quando a electricidade foi finalmente dominada foi vista quasi como panaceia para todos os males da sociedade (quem não viu o Regresso a Oz e o tratamento prescrito à pobre Dorothy).

Mas em 1900 Planck explica o puzzle da radiação do corpo negro (conhecido como a catástrofe do ultra violeta) e propõe que o calor radiado por um corpo negro é emitido apenas em quantidades discretas a que chama quantas. E o mundo mudou quando Einstein, compreendendo que a teoria de Planck faz uso implícito da hipótese quântica da luz, explica em 1905 o efeito fotoeléctrico introduzindo o conceito do dualismo onda-corpúsculo aplicado à luz. Estendido 19 anos mais tarde por Louis de Broglie, um estudante de Arte Medieval que trocou as catedrais góticas por ondas electromagnéticas, a partículas subatómicas como os electrões.

O papel actual que a ciência desempenha no quotidiano é frequentemente negligenciado e muitas vezes a opinião pública só é mobilizada quando a investigação e as novas descobertas suscitam questões éticas. Por exemplo, o evolucionismo tem 140 anos. É a pedra basilar de toda a biologia moderna, do desenvolvimento de medicamentos que nos salvam a vida e na alimentação de uma população crescente num planeta que parece cada vez mais pequeno. Continua a não ser aceite pelas religiões ocidentais, especialmente as do livro, que contrapoem o oxímoro criacionismo científico, já que o evolucionismo nega o pecado original, o alicerce de todos os dogmas do livro. Não permeou a sociedade. Por isso, no século XXI, não demos ainda o salto quântico expectável pelo grau de avanço científico.

Mas retomando o tema, sexo e reprodução são fenómenos distintos e a reprodução sexuada é a excepção e não a regra nas espécies vivas da Terra. E muito mais recente: durante muitos milhões de anos a vida na Terra manteve-se sem sexo. Só muito posteriormente começaram a surgir machos e fêmeas e o sexo passou a ser indispensável para a reprodução de algumas espécies. Que numa perspectiva reducionista, a la Dawkins, são apenas veículos orgânicos que permitem a replicação dos genes. A reprodução é simplesmente o mecanismo que permite aos genes, e não aos indivíduos, a sua perpetuação ao longo das gerações.

Para a grande maioria das formas vivas, a reprodução assexuada, nas suas muitas variantes, assume-se como a forma predominante de reprodução. Prático, rápido… e sem prazer, ou pelo menos não há, até o presente, indícios de que as bactérias se divirtam no processo, apesar do afinco com que se dedicam a ele. Com esporádicas incursões a um quasi sexo para troca de material genético. A via sexuada é apenas a forma de reprodução flagrantemente mais dispendiosa em termos biológicos. Não só a nível fisiológico mas, quando os dois sexos correspondem a indivíduos distintos, também comportamental. Pensemos na energia investida em cantos, danças e outras exibições altamente elaboradas dos comportamentos de corte de muitas espécies, assim como no aparecimento e manutenção de características sexuais secundárias como as majestosas plumas dos pavões macho. Para não falar no desperdício de energia na produção de machos, criaturas quase inúteis do ponto de vista da natureza, criadas e alimentadas com a função específica de atingirem a maturidade e tornarem-se doadores dos gâmetas necessários para fertilizar as fêmeas. Ou seja, a propagação genética sexuada é mais cara, em termos puramente energéticos, do que a assexuada; o sexo, em termos biológicos, deve ser assumido como um «artigo de luxo»! Por que razão o sexo triunfou dessa maneira, apesar do elevado custo energético?

Só recentemente os biólogos evolucionistas parecem ter encontrado a resposta para o paradoxo, num corolário da teoria da evolução a que se chamou a hipótese da Rainha Vermelha, inspirada no livro de Lewis Carrol, Through the Looking Glass, em que a Rainha Vermelha diz «Now here, you see, it takes all the running you can do to keep in the same place».

Um meio ambiente em permanente mudança, especialmente no que diz respeito a parasitas (bactérias, vírus, etc., que se reproduzem assexuadamente), é a base desta teoria sobre a origem e a manutenção do sexo, proposta em 1980 por William D. Hamilton, da Universidade de Oxford. Os omnipresentes parasitas apresentam virulência específica, afectando apenas determinados genótipos dos hospedeiros. O tempo de vida dos parasitas é muito mais curto que o dos hospedeiros, ou seja, milhões de gerações dos primeiros sucedem-se durante a vida de um hospedeiro. As incontáveis gerações de parasitas, para os quais a principal fonte de variabilidade é a mutação, traduzem-se em taxas de evolução muitas vezes maiores, deixando como única saída para os hospedeiros mais longevos a reprodução sexuada e a produção de filhos diferenciados geneticamente e eventualmente resistentes aos parasitas.

Segundo Hamilton, uma «corrida às armas da adaptabilidade genética» entre hospedeiros e parasitas ocorre desde que a vida surgiu na Terra. Os parasitas estão sempre a furar as barreiras defensivas impostas pelo genótipo dos hospedeiros, enquanto estes, com a ajuda do sexo, criam continuamente novas defesas. Na ausência do sexo, os hospedeiros permaneceriam geneticamente inalteráveis, enquanto os parasitas iriam acumulando adaptações que lhes permitiriam quebrar todos os sistemas de defesa dos primeiros.

A teoria da Rainha Vermelha prediz diversos padrões ecológicos que têm sido verificados na natureza. Segundo a teoria, por exemplo, quanto maior a diferença entre o tempo de vida do hospedeiro e o tempo de vida do parasita, maior será a pressão de parasitismo. Assim, o sexo deve ser mais frequente em organismos de maior longevidade, o que de facto pode ser comprovado experimentalmente. Muitos estudos indicam ainda que espécies com reprodução assexuada são mais susceptíveis a ataques de parasitas que espécies aparentadas com reprodução sexuada. Isso também é verdade para variedades de plantas. Qualquer agricultor sabe que monoculturas de cereais geneticamente uniformes são mais propensas a serem devastadas por pragas. Há espécies de peixes em que só existem fêmeas que se reproduzem assexuadamente produzindo apenas fêmeas. Quando as condições ambientais são adversas algumas fêmeas deixam de se reproduzir, transformam-se em machos e passa a haver sexo e produção de crias dos dois sexos. Quando o ambiente estabiliza desaparece a reprodução sexuada.

No entanto, a distinção entre sexualidade e reprodução não permeou a sociedade, que continua refém de dogmas sexuais anacrónicos face ao conhecimento moderno.

17 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Laicidade e ICAR em Espanha

Continua a saga do confronto entre a ICAR e o Governo espanhol. Despoletado pelas declarações de Zapatero de que «chegou a hora do respeito radical das opções sexuais de cada indivíduo, a hora de uma visão laica em que ninguém impõe as suas crenças, nem na escola nem na investigação, nem em nenhum âmbito da sociedade» e por o Primeiro Ministro espanhol ter considerado as teses da Igreja Católica em Espanha «irritantes, fora de tom e reaccionárias».

As primeiras reacções fizeram-se ouvir pela voz do arcebispo Primaz da Espanha, Antonio Cañizares que advertiu os espanhóis do perigo de um «laicismo ideológico» que, segundo o ilustre prelado, viola a liberdade religiosa e procura impedir que a Igreja torne públicas as suas crenças.

No seguimento do pedido da presidente do Congresso espanhol, Carme Chacón, para a Igreja não interferir nas instituições democráticas, o bispo Gea Escolano lamentou que o governo opine sobre a instituição eclesial e queira «amordaçá-la». Nomeadamente considerando que «a Igreja Católica não pode calar-se diante da degradação que o governo espanhol propõe para a legislação em questões como a legalização das uniões homossexuais ou as possibilidades de aborto legal».

Como foi referido no post da Mariana «Legislação deve conter referências a Deus e à lei divina» há pouco mais de uma semana o arcebispo de Pamplona e Bispo de Tudela, Fernando Sebastián, criticou a intenção do governo espanhol de governar com leis laicas uma vez que leis que não incluam referências a Deus, à lei divina, à fé de cidadãos ou que não considerem as exigências da moral natural ou dos valores absolutos (os católicos, claro, não há moral nem valores fora do catolicismo) são discriminatórias dos católicos.

No passado domingo, o presidente da Conferência Episcopal Espanhol, Cañizares, voltou à carga para denunciar «diversos ataques» por parte dos meios de comunicação social em Espanha que estão «dispostos a massacrá-la». Nomeadamente em relação à Carta da Congregação para a Doutrina da Fé (ex- Santo Ofício da Inquisição) sobre a colaboração entre o homem e a mulher na Igreja e no mundo. Em que é recordado que a mulher é um ser humano de segunda, sujeita ao domínio masculino, por vontade divina como consequência da dentadinha na maçã da pérfida Eva

Na sua homília, o Arcebispo identifica como proeminentes entre as causas do que considera a perseguição à ICAR a laicidade reinante e a secularização generalizada do mundo.

Como se vê, o Syllabus errorum o dicionário dos erros da época moderna enunciados por Pio IX que descrevia a democracia como um «princípio absurdo», a liberdade de opinião como «loucura e erro» e condenando especialmente o laicismo continua actual para a ICAR do século XXI. Claro que Pio IX foi o Papa que criou o dogma da infalibilidade papal…

Mas o que me choca mais é a intolerância, irracionalidade e autismo de uma Igreja que se acha no direito de impor a sua moral anacrónica como absoluta e se considera alvo de perseguição por a tal não a permitirem!

Nada impede os católicos de seguirem a sua moral, bem pelo contrário, a laicidade assegura que todos podem seguir as respectivas morais individuais desde que em obediência ao Direito laico que rege o Estado. Por que razão se arrogam os católicos ao direito de determinar as condutas privadas alheias exigindo transpor para o Direito os seus dogmas?

15 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Fundamentalismos

Um post do Boss no Renas e Veados alertou-me para a extensão do campo de acção dos auto designados grupos pró-vida (humana, claro) americanos à trivial pílula contraceptiva. Com o pretexto de que a pílula tem uma eficiência de 70% na inibição da ovulação e impede a implantação no útero de um possível óvulo fertilizado, farmacêuticos e médicos fundamentalistas recusam-se a fornecer ou prescrever o atentado às leis divinas do “crescei e multiplicai-vos” ao abrigo de recentes leis estaduais, que o permitem por razões morais.

Um dos principais sinais históricos que encontramos invariavelmente em épocas de crise é a adesão de pessoas a vertentes (religiosas ou políticas) que se caracterizam por um radicalismo extremo e uma inflacção do sentimento de pertença a um grupo que assuma o papel de protector e detentor da VERDADE ou MORAL absolutas. Um maniqueísmo exacerbado dos nós (os bons) e dos outros (os maus), do Bem contra o Mal.

Não subscrevo a tese do choque civilizacional de Samuel Huntington (que previa há uma década que este seria inevitável no pós guerra fria), mas acho que de facto o maniqueísmo ou lógica bipolar existente antes da queda do muro era um elemento aglutinador que prevenia a eclosão dos conflitos regionais a que agora assistimos e o ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, a praga anacrónica do século XXI.

De certa forma, o vazio emocional que a queda do muro proporcionou, e que destruiu um meme ideológico e, por arrastamento, todos os memes ideológicos que se construiram por oposição, foi rapidamente ocupado pelo memeplexo sempre subliminar da religião

No caso da religião católica a resposta (muito rápida) foi um negar crescente do concílio Vaticano II. Procura-se agora restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Com uma integração de todos os elementos da sociedade sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (mais uma vez com o seu expoente máximo no Papa, não mais um primum inter pares). O inimigo a combater é a modernidade, com as suas liberdades e o seu laicismo.

Este é apenas mais um caso recente em que a laicidade, neste caso no Direito, é ameaçado por fundamentalistas religiosos. Que só vem reforçar o meu post anterior…

15 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Direito e Ética

«Considerai o príncipe no seu gabinete. Dali partem as ordens graças às quais procedem harmonicamente os magistrados e os capitães, os cidadãos e os soldados, as províncias e os exércitos, por mar e por terra. Eis a imagem de Deus que, sentado no seu trono no mais alto dos céus, governa a natureza inteira… Enfim, reuni tudo quanto dissemos de grande e augusto sobre a autoridade real. Vede um povo imenso reunido numa só pessoa, considerai esse poder sagrado, paternal e absoluto; considerai a razão secreta, que governa todo o corpo do Estado, encerrada numa só cabeça: vereis a imagem de Deus nos reis, e tereis ideia da majestade real» Jacques Bossuet(1627-1704), A Política segundo as Santas Escrituras.

Subjacentes à teoria moderna do Estado existem conceitos teológicos secularizados, presentes por exemplo na relação Direito e Moral, já que o Direito é permeável a discursos morais para se legitimar. Por outro lado, a Moral pode utilizar-se do Direito para que os discursos por ela produzidos ganhem uma força vinculativa e de implementação efectiva. Como temos assistido no caso do Borndiep e, mais genericamente, no debate em relação à Interrupção Voluntária da Gravidez.

No seguimento dos meus posts sobre moral e ética e sobre as relações entre o Vaticano e o poder político (I, II, III, IV) vou tentar analisar numa breve abordagem histórica esta secularização.

A lei básica da ética e da moral, a chamada «Regra de ouro», comprovada por Heródoto em distintos povos da antiguidade, foi formulada nos Vedas, há pelo menos quatro milénios, por Confúcio, 500 a.C., no Zoroartrismo e em muitas outras religiões com vários enunciados:

«Eis a síntese do Dharma (Lei): não façais nada aos outros que, se fosse feito a vós, vos causaria mágoa» Mahabharata

«Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós» Shakyamuni

«Não imponhas aos outros o que tu próprio não desejas» Confúcio, Analectos 15,24

Na cultura grega, especialmente para Platão e Aristóteles, os filósofos que mais influenciaram a teologia cristã, a ética está intimamente vinculada à vida política (polis). Aliás, Aristóteles refere-se à ética como sendo um ramo da política, já que a primeira trataria do bem-estar individual, enquanto a segunda se ocuparia do bem comum. Na cultura grega, Direito, Moral e Política, são aspectos de uma mesma totalidade.

Os conceitos filosóficos da moral grega evoluíram na cultura romana para uma distinção entre Direito, Religião, Política e Moral. E o Direito romano é a pedra basilar do Direito nas sociedades ocidentais.

Os teológos cristãos cristianizaram a ética grega, a versão platónica por Agostinho de Hipona que reinterpreta a purificação e imortalidade da alma sugerida por Platão na elevação ascética indispensável para a compreensão dos desígnios de Deus.

O inescapável Tomás de Aquino retomou o conceito supremo da felicidade da ética aristotélica readaptado com Deus como fonte única da felicidade e descartando a razão que para Aristóteles era o caminho para a perfeição moral. Para a moral escolástica o bem comum deve subordinar-se ao bem supremo da salvação da alma. Ou seja, a Política e o Direito devem submeter-se ao direito divino e transcrever a moral cristã.

Com o Renascimento houve uma retoma do humanismo que voltou a reflexão ética para a esfera humana. No Iluminismo os filósofos defendem que a moral deve ser fundamentada não em valores religiosos e sim na compreensão sobre a natureza humana. A concepção mais expressiva é a natureza racional de Kant. Foi o falhanço do projecto renascentista que forneceu o pano de fundo no qual a nossa cultura se torna inteligível: uma cultura onde o debate moral é visto como indissociável da religião e esta continua transposta para o Direito, mesmo em Estados supostamente laicos.

Uma ética secular racional será muito mais forte que uma moral dogmática, até porque o que tem acontecido nos últimos tempos corrobora Feuerbach: «quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas».

Quer a reflexão ética contemporânea (séc. XIX e XX), que recusa uma base exterior, transcendental para a moralidade, quer a base biológica dos comportamentos morais que o progresso científico demonstrou inequivocamente não permearam a nossa sociedade do século XXI. Pelo contrário, há cada vez mais exemplos perfeitamente anacrónicos da mistura dos obsoletos códigos morais religiosos no direito que rege uma série de países. E não falo apenas daqueles onde a Sharia é uma realidade, ou por exemplo, da Turquia, que desde Ataturk (1881-1938), é um estado laico, pretendia reintroduzir no seu código penal o adultério (feminino, especialmente) como um crime punido com pena de prisão. Como o artigo da Mariana recorda mesmo na Europa, que se diz laica, assistimos a grande pressão pela ICAR para a negação do laicismo, com ênfase a nível do Direito.

Urge uma intervenção ética capaz de criticar dogmas dominantes que, parafraseando Georges Bastide, possibilite a construção de novas formas de convivência humana através de um «esforço de lucidez, que separe, sem equívoco, a liberdade da alienação». Este é o desafio ético da contemporaneidade: a realização de um diálogo ético livre e igualitário numa sociedade marcada pela desigualdade, nomeadamente entre teístas e ateístas! E, especialmente, é fulcral que o direito seja absolutamente laico. Devemos respeitar as morais individuais mas não se deve deixar que a ética de um determinado grupo seja imposta a toda a sociedade.

8 de Setembro, 2004 Palmira Silva

O epicurista Emídio Guerreiro

Para além do que Carlos Esperança referiu no seu artigo de homenagem a um dos homens mais marcantes do Portugal contemporâneo, descobri nas entrevistas que Emídio Guerreiro concedeu ao Diário de Notícias e à Pública que ele se assume como um epicurista, ou seja, seguidor da linha filosófica da Grécia clássica mais denegrida pela ICAR. Epicurus, que ensinava no seu jardim escravos e mulheres, algo inaudito, para além de precursor do pensamento científico moderno, tendo introduzido o conceito de movimento aleatório e desenvolvido o atomismo de Leuccipus e Democritus, foi o primeiro ateísta de que há registo histórico.

O epicurismo foi continuado em Roma destacando-se nos seguidores romanos Titus Lucrecius Carus (98-55 a.C.) e a sua obra De Rerum Natura (A Natureza das Coisas). Do ponto de vista filosófico, o atomismo deixa pouca ou nenhuma margem para a intervenção divina, nomeadamente negava o milagre da transmutação do pão e vinho em carne e sangue, sendo considerado heresia pela Igreja Católica. A redescoberta do poema de Lucrecius na Renascença foi fulcral para o estabelecimento das bases do pensamento científico renascentista. Giordano Bruno, queimado vivo no Campo dei Fiori em Roma, por ordem do agora santo cardeal Bellarmino, foi um epicurista.

Alguns excertos das entrevistas a Emídio Guerreiro:

«O terceiro milénio será, na minha opinião, o milénio da desalienação humana. O homem criou mitos, depois confiou atributos a esses mitos, depois sujeitou-se a eles. Agora vai-se libertar deles.»

«Há um filósofo grego, Epicuro, que tem uma concepção maravilhosa sobre o que é a morte: Enquanto tu és, a morte não existe, enquanto a morte não está, tu estás. Depois, é o nada absoluto.»

«Mas só a partir de Descartes [1596-1650] é que o racionalismo passou a ser um instrumento para construir a própria razão humana. Pela dúvida metódica, passo a passo, procede-se para o conhecimento de uma verdade que permite alcançar o conhecimento de outra verdade. Chega-se à verdade formulada, sem imposição de uma verdade revelada.

Não foi pouca coragem a dele para o dizer, pois nessa altura realizava-se o julgamento, terrível, de Galileu Galilei [1564-1642].»

«Desde tempos imemoriais que o homem vive em sociedade, pelo menos desde o tempo em que Prometeu lhe comunicou o segredo do fogo. Com a agricultura fixou-se e deixou o estado selvagem. A partir daí teve que sujeitar-se a hábitos, costumes, a leis que ele próprio fez. Data daí a alienação do homem. Ele criou determinadas noções, às quais se sujeitou, e que depois acabaram por aliená-lo, moldá-lo numa outra natureza,(…) por exemplo, a noção de deus é aqui em Portugal maioritariamente católica. Mas a história da construção deste ser transcendental, que na origem parece ser uma atitude irracional, é própria do homem, da sua razão humana. Foi uma maneira de interpretar a natureza. Os fenómenos que a ciência não sabia explicar foram atribuídos a uma força superior, o que, independentemente da validade da atribuição, é uma explicação. Daí que para se explicar a si mesmo, tenha criado um deus à sua imagem e semelhança.»