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Sexo e ciência

Nos últimos tempos temos sido agraciados com uma série de notícias em que o tema recorrente é o recrudescimento das iniciativas religiosas para reintroduzir os seus dogmas no Direito, suposto laico, que rege os nossos estados. Nomeadamente em assuntos que têm subjacentes a sexualidade, como é referido, por exemplo, no post do Carlos Esperança «A Cúria não tem cura»

Tudo isto suscitou a escrita deste texto em que, para evitar eventuais desentendimentos semânticos, vou apenas abordar o sexo=biológico e deixar de lado a sua evolução para o que chamo sexo=social. Portanto logo à partida separo-me um pouco da visão do filósofo Michel Foucault (A História da Sexualidade , 1976-1984) que engloba ambos numa scientia sexualis: «A noção de sexo tornou possível agrupar, numa unidade artificial, a scientia sexualis, elementos anatómicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres; e possibilitou-nos usar essa unidade fictícia como um princípio causal, um sentido omnipresente, um segredo a ser descoberto em toda parte» (Michel Foucalt, A Hstória da Sexualidade, 1976-1984).

Pessoalmente acho que a civilização progride em saltos quânticos e não de forma contínua. As grandes transições civilizacionais surgiram no decurso de uma grande descoberta: o fogo, a metalurgia, a pastorícia, a domesticação de animais, etc… Na História mais recente podemos identificar movimentos culturais como catalizadores das transições, normalmente literários ou de outras formas de arte, que interpretam e transmitem os avanços científicos em todas as áreas do conhecimento humano, nomeadamente nas ciências exactas. Até ao limiar do século XX a sociedade em geral era exposta ao que de novo era descoberto pelos cientistas. Eram habituais as experiências de salão na sociedade elegante dos séculos XVIII e XIX, em que a classe alta se divertia com o NO, o gás hilariante, ou o hélio, que mudava o timbre do mais respeitável barítono. Quando a electricidade foi finalmente dominada foi vista quasi como panaceia para todos os males da sociedade (quem não viu o Regresso a Oz e o tratamento prescrito à pobre Dorothy).

Mas em 1900 Planck explica o puzzle da radiação do corpo negro (conhecido como a catástrofe do ultra violeta) e propõe que o calor radiado por um corpo negro é emitido apenas em quantidades discretas a que chama quantas. E o mundo mudou quando Einstein, compreendendo que a teoria de Planck faz uso implícito da hipótese quântica da luz, explica em 1905 o efeito fotoeléctrico introduzindo o conceito do dualismo onda-corpúsculo aplicado à luz. Estendido 19 anos mais tarde por Louis de Broglie, um estudante de Arte Medieval que trocou as catedrais góticas por ondas electromagnéticas, a partículas subatómicas como os electrões.

O papel actual que a ciência desempenha no quotidiano é frequentemente negligenciado e muitas vezes a opinião pública só é mobilizada quando a investigação e as novas descobertas suscitam questões éticas. Por exemplo, o evolucionismo tem 140 anos. É a pedra basilar de toda a biologia moderna, do desenvolvimento de medicamentos que nos salvam a vida e na alimentação de uma população crescente num planeta que parece cada vez mais pequeno. Continua a não ser aceite pelas religiões ocidentais, especialmente as do livro, que contrapoem o oxímoro criacionismo científico, já que o evolucionismo nega o pecado original, o alicerce de todos os dogmas do livro. Não permeou a sociedade. Por isso, no século XXI, não demos ainda o salto quântico expectável pelo grau de avanço científico.

Mas retomando o tema, sexo e reprodução são fenómenos distintos e a reprodução sexuada é a excepção e não a regra nas espécies vivas da Terra. E muito mais recente: durante muitos milhões de anos a vida na Terra manteve-se sem sexo. Só muito posteriormente começaram a surgir machos e fêmeas e o sexo passou a ser indispensável para a reprodução de algumas espécies. Que numa perspectiva reducionista, a la Dawkins, são apenas veículos orgânicos que permitem a replicação dos genes. A reprodução é simplesmente o mecanismo que permite aos genes, e não aos indivíduos, a sua perpetuação ao longo das gerações.

Para a grande maioria das formas vivas, a reprodução assexuada, nas suas muitas variantes, assume-se como a forma predominante de reprodução. Prático, rápido… e sem prazer, ou pelo menos não há, até o presente, indícios de que as bactérias se divirtam no processo, apesar do afinco com que se dedicam a ele. Com esporádicas incursões a um quasi sexo para troca de material genético. A via sexuada é apenas a forma de reprodução flagrantemente mais dispendiosa em termos biológicos. Não só a nível fisiológico mas, quando os dois sexos correspondem a indivíduos distintos, também comportamental. Pensemos na energia investida em cantos, danças e outras exibições altamente elaboradas dos comportamentos de corte de muitas espécies, assim como no aparecimento e manutenção de características sexuais secundárias como as majestosas plumas dos pavões macho. Para não falar no desperdício de energia na produção de machos, criaturas quase inúteis do ponto de vista da natureza, criadas e alimentadas com a função específica de atingirem a maturidade e tornarem-se doadores dos gâmetas necessários para fertilizar as fêmeas. Ou seja, a propagação genética sexuada é mais cara, em termos puramente energéticos, do que a assexuada; o sexo, em termos biológicos, deve ser assumido como um «artigo de luxo»! Por que razão o sexo triunfou dessa maneira, apesar do elevado custo energético?

Só recentemente os biólogos evolucionistas parecem ter encontrado a resposta para o paradoxo, num corolário da teoria da evolução a que se chamou a hipótese da Rainha Vermelha, inspirada no livro de Lewis Carrol, Through the Looking Glass, em que a Rainha Vermelha diz «Now here, you see, it takes all the running you can do to keep in the same place».

Um meio ambiente em permanente mudança, especialmente no que diz respeito a parasitas (bactérias, vírus, etc., que se reproduzem assexuadamente), é a base desta teoria sobre a origem e a manutenção do sexo, proposta em 1980 por William D. Hamilton, da Universidade de Oxford. Os omnipresentes parasitas apresentam virulência específica, afectando apenas determinados genótipos dos hospedeiros. O tempo de vida dos parasitas é muito mais curto que o dos hospedeiros, ou seja, milhões de gerações dos primeiros sucedem-se durante a vida de um hospedeiro. As incontáveis gerações de parasitas, para os quais a principal fonte de variabilidade é a mutação, traduzem-se em taxas de evolução muitas vezes maiores, deixando como única saída para os hospedeiros mais longevos a reprodução sexuada e a produção de filhos diferenciados geneticamente e eventualmente resistentes aos parasitas.

Segundo Hamilton, uma «corrida às armas da adaptabilidade genética» entre hospedeiros e parasitas ocorre desde que a vida surgiu na Terra. Os parasitas estão sempre a furar as barreiras defensivas impostas pelo genótipo dos hospedeiros, enquanto estes, com a ajuda do sexo, criam continuamente novas defesas. Na ausência do sexo, os hospedeiros permaneceriam geneticamente inalteráveis, enquanto os parasitas iriam acumulando adaptações que lhes permitiriam quebrar todos os sistemas de defesa dos primeiros.

A teoria da Rainha Vermelha prediz diversos padrões ecológicos que têm sido verificados na natureza. Segundo a teoria, por exemplo, quanto maior a diferença entre o tempo de vida do hospedeiro e o tempo de vida do parasita, maior será a pressão de parasitismo. Assim, o sexo deve ser mais frequente em organismos de maior longevidade, o que de facto pode ser comprovado experimentalmente. Muitos estudos indicam ainda que espécies com reprodução assexuada são mais susceptíveis a ataques de parasitas que espécies aparentadas com reprodução sexuada. Isso também é verdade para variedades de plantas. Qualquer agricultor sabe que monoculturas de cereais geneticamente uniformes são mais propensas a serem devastadas por pragas. Há espécies de peixes em que só existem fêmeas que se reproduzem assexuadamente produzindo apenas fêmeas. Quando as condições ambientais são adversas algumas fêmeas deixam de se reproduzir, transformam-se em machos e passa a haver sexo e produção de crias dos dois sexos. Quando o ambiente estabiliza desaparece a reprodução sexuada.

No entanto, a distinção entre sexualidade e reprodução não permeou a sociedade, que continua refém de dogmas sexuais anacrónicos face ao conhecimento moderno.