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Direito e Ética

«Considerai o príncipe no seu gabinete. Dali partem as ordens graças às quais procedem harmonicamente os magistrados e os capitães, os cidadãos e os soldados, as províncias e os exércitos, por mar e por terra. Eis a imagem de Deus que, sentado no seu trono no mais alto dos céus, governa a natureza inteira… Enfim, reuni tudo quanto dissemos de grande e augusto sobre a autoridade real. Vede um povo imenso reunido numa só pessoa, considerai esse poder sagrado, paternal e absoluto; considerai a razão secreta, que governa todo o corpo do Estado, encerrada numa só cabeça: vereis a imagem de Deus nos reis, e tereis ideia da majestade real» Jacques Bossuet(1627-1704), A Política segundo as Santas Escrituras.

Subjacentes à teoria moderna do Estado existem conceitos teológicos secularizados, presentes por exemplo na relação Direito e Moral, já que o Direito é permeável a discursos morais para se legitimar. Por outro lado, a Moral pode utilizar-se do Direito para que os discursos por ela produzidos ganhem uma força vinculativa e de implementação efectiva. Como temos assistido no caso do Borndiep e, mais genericamente, no debate em relação à Interrupção Voluntária da Gravidez.

No seguimento dos meus posts sobre moral e ética e sobre as relações entre o Vaticano e o poder político (I, II, III, IV) vou tentar analisar numa breve abordagem histórica esta secularização.

A lei básica da ética e da moral, a chamada «Regra de ouro», comprovada por Heródoto em distintos povos da antiguidade, foi formulada nos Vedas, há pelo menos quatro milénios, por Confúcio, 500 a.C., no Zoroartrismo e em muitas outras religiões com vários enunciados:

«Eis a síntese do Dharma (Lei): não façais nada aos outros que, se fosse feito a vós, vos causaria mágoa» Mahabharata

«Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós» Shakyamuni

«Não imponhas aos outros o que tu próprio não desejas» Confúcio, Analectos 15,24

Na cultura grega, especialmente para Platão e Aristóteles, os filósofos que mais influenciaram a teologia cristã, a ética está intimamente vinculada à vida política (polis). Aliás, Aristóteles refere-se à ética como sendo um ramo da política, já que a primeira trataria do bem-estar individual, enquanto a segunda se ocuparia do bem comum. Na cultura grega, Direito, Moral e Política, são aspectos de uma mesma totalidade.

Os conceitos filosóficos da moral grega evoluíram na cultura romana para uma distinção entre Direito, Religião, Política e Moral. E o Direito romano é a pedra basilar do Direito nas sociedades ocidentais.

Os teológos cristãos cristianizaram a ética grega, a versão platónica por Agostinho de Hipona que reinterpreta a purificação e imortalidade da alma sugerida por Platão na elevação ascética indispensável para a compreensão dos desígnios de Deus.

O inescapável Tomás de Aquino retomou o conceito supremo da felicidade da ética aristotélica readaptado com Deus como fonte única da felicidade e descartando a razão que para Aristóteles era o caminho para a perfeição moral. Para a moral escolástica o bem comum deve subordinar-se ao bem supremo da salvação da alma. Ou seja, a Política e o Direito devem submeter-se ao direito divino e transcrever a moral cristã.

Com o Renascimento houve uma retoma do humanismo que voltou a reflexão ética para a esfera humana. No Iluminismo os filósofos defendem que a moral deve ser fundamentada não em valores religiosos e sim na compreensão sobre a natureza humana. A concepção mais expressiva é a natureza racional de Kant. Foi o falhanço do projecto renascentista que forneceu o pano de fundo no qual a nossa cultura se torna inteligível: uma cultura onde o debate moral é visto como indissociável da religião e esta continua transposta para o Direito, mesmo em Estados supostamente laicos.

Uma ética secular racional será muito mais forte que uma moral dogmática, até porque o que tem acontecido nos últimos tempos corrobora Feuerbach: «quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas».

Quer a reflexão ética contemporânea (séc. XIX e XX), que recusa uma base exterior, transcendental para a moralidade, quer a base biológica dos comportamentos morais que o progresso científico demonstrou inequivocamente não permearam a nossa sociedade do século XXI. Pelo contrário, há cada vez mais exemplos perfeitamente anacrónicos da mistura dos obsoletos códigos morais religiosos no direito que rege uma série de países. E não falo apenas daqueles onde a Sharia é uma realidade, ou por exemplo, da Turquia, que desde Ataturk (1881-1938), é um estado laico, pretendia reintroduzir no seu código penal o adultério (feminino, especialmente) como um crime punido com pena de prisão. Como o artigo da Mariana recorda mesmo na Europa, que se diz laica, assistimos a grande pressão pela ICAR para a negação do laicismo, com ênfase a nível do Direito.

Urge uma intervenção ética capaz de criticar dogmas dominantes que, parafraseando Georges Bastide, possibilite a construção de novas formas de convivência humana através de um «esforço de lucidez, que separe, sem equívoco, a liberdade da alienação». Este é o desafio ético da contemporaneidade: a realização de um diálogo ético livre e igualitário numa sociedade marcada pela desigualdade, nomeadamente entre teístas e ateístas! E, especialmente, é fulcral que o direito seja absolutamente laico. Devemos respeitar as morais individuais mas não se deve deixar que a ética de um determinado grupo seja imposta a toda a sociedade.