Loading

Carlos Esperança

14 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Bispo do Funchal saiu a meio de missa para inaugurar hotel



D. Teodoro de Faria no passado dia 30 de Abril deixou a celebração de crisma por «compromisso inadiável», com Alberto João Jardim. O pároco de Santa Rita diz tratar-se de «lapso de hora» – informa o Portugal Diário. E acrescenta «O bispo do Funchal saiu a meio de uma celebração de crismas na paróquia funchalense de Santa Rita para estar presente na inauguração do Pestana Grand Hotel, no passado dia 30 de Abril, ao lado de Alberto João Jardim, presidente do Governo Regional».

O assunto foi motivo de escândalo e objecto das habituais diatribes contra o bispo que o padre Frederico deixou com o prestígio abalado. Mas não se vê motivo para tamanha estranheza, por 3 razões:

Primeiro – Entre a companhia de beatos rudimentarmente alfabetizados e o sofisticado presidente do Governo Regional a escolha é óbvia.

Segundo – Entre compromissos com Deus, cujo pacto antigo lhe assegura a resolução dos problemas, e a obrigação de estar com o sócio principal do Diário de Notícias da Madeira (órgão isento que pertence 80% ao Governo Regional e 20% à Diocese), é natural que escolha a companhia de quem mais o estima.

Terceiro – Entre as rodelas de pão ázimo, sem fermento nem sal, e as deliciosas vitualhas de um hotel a inaugurar, qual é o clérigo que hesita?

14 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Força Portugal

Força Portugal 1 – A coligação eleitoral sob cujos auspícios foram publicados os execráveis panfletos que aqui se editam, distribuídos em Fátima e em caixas de correio, sofreu uma derrota tão humilhante que até parece que a virgem e o filho passaram a envergonhar-se de tal gente.

Força Portugal 2 – A derrota da selecção portuguesa face à Grécia pôs em evidência a inutilidade de 3 tácticas:

a) – a reza colectiva do padre-nosso nos balneários;

b) – a eficácia de Nossa Senhora de Caravaggio, importada expressamente do Brasil para Luís Filipe Scollari (que não estava benzida ou foi subornada pela colónia grega residente no Brasil);

c) – As orações do Patriarca Policarpo e os seus pios votos, bem como as persignações dos jogadores.

Segundo alguns ateus, era preferível que tivessem jogado bem, recusando-se a admitir que o Deus dos cristãos ortodoxos esteja em melhor forma que o do Vaticano.

12 de Junho, 2004 Carlos Esperança

As relíquias da ICAR estão a baixar a cotação



A bolsa de valores religiosos tem sofrido, com os tempos, uma lenta erosão no que diz respeito às relíquias, que envaideciam os proprietários e levavam a confiança aos domicílios onde repousavam.

Tempos houve em que a febre das relíquias deu origem a um próspero negócio e à criação de uma indústria de falsificações cujos exemplares rivalizavam com os verdadeiros a conceder graças e a obrar milagres.

Assim se distribuíram por paróquias uma dúzia de braços de S. Filipe, só ultrapassado por Santo André a quem colocaram 17 para gáudio e piedade de crentes de igual número de paróquias.

Às vezes eram bizarras as relíquias, mas não menos inspiradoras de piedade, como aconteceu com o rabo do burro que carregou a Virgem Maria, com uma pena de asa do arcanjo Gabriel ou com as línguas do Menino Jesus. Mas foi a piedade, a imensa piedade, e a raridade de peças genuínas no mercado, que levou Santa Juliana a ter 40 cabeças dispersas para piedosa contemplação dos crentes.

Nem vale a pena falar do santo Prepúcio, relíquia comovedora, por ter pertencido a Jesus Cristo. Dos vários que houve (prepúcios, porque JC só houve 1), a um único foi passado certificado de garantia e, depois, até esse foi declarado falso. Entenderam os cardeais que JC não poderia ter ressuscitado sem ele e, a partir daí, pairou a ameaça de excomunhão para os crentes que se lhe referissem, mesmo para os que tinham obtido graças por seu intermédio.

Enfim, as relíquias da ICAR, quase sempre a roçar o macabro, peças de santos desidratadas ou mumificadas, estão hoje com cotações tão baixas que arruinaram o mercado das falsificações. Só as peças de santos e beatos fabricados no pontificado de JP2 exigiriam armazéns imensos e uma rede de frio de invulgar capacidade para as conservar. Ficaria mais cara a armazenagem do que o valor da mercadoria.

Na primeira visita que fiz a Itália, há mais de 30 anos, fartei-me de ver relíquias, ao mesmo tempo que me inebriava com a beleza das pinturas e esculturas que decoravam magníficas catedrais onde várias vezes voltei deslumbrado pela beleza, desprezando a piedade.

Mas foi na primeira vez que, depois de muitos ossos exibidos, a guia obrigou o grupo a observar um esqueleto inteiro, em excelente estado de conservação, devido às virtudes que em vida exornaram o proprietário. Mais importantes do que as graças que concedia eram os exemplos de piedade que tinha deixado. Era o orgulho da paróquia, uma pequena localidade próxima de Nápoles, pertença de uma pequena comunidade que possuía uma igreja e relíquias de fazer inveja a muitas cidades.

Estava a guia empolgada, a falar das virtudes do santo cujo esqueleto exibia, quando alguém lhe perguntou de quem era um esqueleto mais pequeno que se encontrava próximo. Sem perder o fio à meada, respondeu de imediato:

– Era do mesmo santo, quando era mais novo.

11 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Menos treze mil crianças na peregrinação anual a Fátima

Comentários à reportagem do Diário de Notícias

Diário de Notícias (DN) – O bispo de Leiria-Fátima, D. Serafim Ferreira e Silva, pediu ontem às crianças que rezem pela «paz no mundo» e «pelo pão», na sua peregrinação anual ao Santuário.

Diário de uns Ateus (DA) – Não será uma forma de exploração do trabalho infantil, para fazerem o que os padres deviam fazer? E por que Deus não prescinde das orações para fazer o que deve, caso seja capaz?

DN – Mas a cerimónia esteve, este ano, muito aquém das expectativas. Apenas 12 mil acorreram ao local, menos dez mil do que aquelas que visitaram a Cova da Iria em 2003.

DA – Com as guerras que há, a fome que grassa no mundo, as desgraças que assolam o planeta, é milagre que haja quem acredite em Deus.

DN – Com as suas orações, o bispo de Leiria-Fátima recordava que há, por todo o mundo, crianças que continuam a passar fome e a sofrer as consequências da guerra.

DA – Como se vê a influência das orações é nula. É um quadro superior da ICAR (um bispo) a reconhecê-lo.

DN – Já o reitor do santuário, Monsenhor Luciano Guerrano, incentivou-as «a rezar de um modo especial por Portugal». Mas ontem, queria também uma oração pelas famílias. «Pelas que já existem e também pelos jovens que têm medo de constituir família: rezemos para que tenham coragem de ter filhos», exortou.

DA – Como é que se rezará de modo especial por Portugal? Além do abuso de pedirem tais coisas às crianças, é altura de dizer que os filhos não se fazem com orações.

DN – (…) «Nós não estamos a ter as crianças necessárias», afirmou [Mons. Luciano Guerra], lançando mão dos dados nacionais para fundamentar a sua preocupação.

DA – Que autoridade terão os clérigos para fazerem estas afirmações se não dão o exemplo ou, se dão, procuram ocultá-lo.

DN – Reduzido foi também o número de pequenos peregrinos que ontem estiveram em Fátima. Segundo os números oficias, não passaram dos 12 mil. (…) Nada, porém, que se comparasse com as 25 mil crianças que assistiram às cerimónia do ano passado, às quais se juntaram os familiares, totalizando cerca de 150 mil pessoas.

DA – O negócio está mau para toda a gente. E não está provado que as hóstias de Fátima tenham valor nutritivo (espiritual) superior ao das outras paróquias, ou que a farinha de que são feitas seja de melhor qualidade.

10 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Notas piedosas

Tortura – Segundo o Pentágono, Bush não está sujeito a leis contra a tortura. Neste momento não é só Deus que está isento de prestar contas. Já são dois os inimputáveis e, ambos, com um passado pouco recomendável.

Dia do Corpo de Deus – Parece que 10 de Junho é dia de corpo de Deus. Será dia de lhe darem banho? Perguntei a alguns católicos o que era isso de corpo de Deus e não sabiam. Mas não gostaram da minha sugestão.

RTP 1 – Segundo a Agência Ecclesia ao Domingo é transmitida missa dos estúdios da televisão pública, às 10H00. É altura de perguntar por que exigiu a ICAR a «oferta» da TVI, levando o Governo da época a uma vergonhosa cedência. Depois foi o percurso da sacristia até à sarjeta. A televisão da ICAR começou por um acto de gula e acabou transformada em bordel.

ICAR – Ao deparar-me com o tema «Encontro Matrimonial» (Movimento da Igreja Católica, destinado a casais, sacerdotes e religiosas, temi o pior, quando o vi destinado aos «casais que querem manter viva a sua chama de amor». Não será demasiado promíscuo misturar casais, sacerdotes e religiosas?

Sousa Franco – Após a sua morte os maiores dislates cabem ao PPM (uma agremiação de súbditos do Sr. Duarte Pio) em que os vassalos ultrapassam o mestre. Este naco de prosa do comunicado do PPM é elucidativo:

«Não queremos nem devemos dramatizar, nem tão pouco fazer do Professor um mártir, mas a verdade é que o Professor também deveria fazer parte das pessoas que não cuidava da sua saúde. Provavelmente, não media a tensão há muito tempo. A sua morte já estava prevista».

10 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Concordata não serve

O EXPRESSO de hoje, edição antecipada por causa do feriado, publica em «Correio Azul», com o título em epígrafe, um texto da minha autoria, já editado neste «Diário» com redacção ligeiramente diferente.

Assinalo em itálico o parágrafo não publicado.

O mundo árabe é um exemplo trágico da promiscuidade entre o sagrado e o profano, o que deveria evitar fenómenos de regressão no processo de secularização que se verificou nos países ocidentais e, em particular, na Europa.

É por isso que a Concordata, negociada entre Portugal e a Santa Sé, assume foros de anacronismo. Não se sabe o que ganhará o Estado democrático com ela e sabe-se o que ganhou a ditadura e perdeu a Igreja com a de 1940, para não falar do que ganharam outras ditaduras com idênticas concordatas.

A religião não se impõe por tratados nem a propagação da fé se confia aos Estados. A Concordata, não pode ser um tratado de Tordesilhas que submeta à órbita do Vaticano um país a que a Cúria trace o meridiano.

Esta revisão fere princípios de universalidade e de igualdade de direitos e de obrigações, que a lei geral estabelece e acautela. Acresce que é difícil harmonizar-se com a lei geral na medida em que a Igreja católica apostólica romana (ICAR) exige tratamento especial no que lhe diz respeito e enuncia deveres religiosos como se o princípio da separação não impusesse ao Estado total alheamento.

Por ser bizarro, cite-se o n.º 2 do Art. 15: «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vinculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». Imagine-se que, por dever de reciprocidade, havia um n.º 3 com esta redacção: «A República Portuguesa, reafirmando a doutrina do Estado sobre o casamento civil, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio civil o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade canónica de requerer o matrimónio religioso».

Ou ainda o n.º 5 do Art. 9, onde se lê: «A Santa Sé declara que nenhuma parte do território da República Portuguesa dependerá de um bispo cuja sede esteja fixada em território sujeito a soberania estrangeira». Será a forma ínvia que o Estado Português encontrou para reconhecer a soberania espanhola a Olivença?

É minha firme convicção de que esta concordata não serve e outra não é precisa.

Talvez só o facto de ter sido assinada apenas entre Durão Barroso e o cardeal Angelo Sodano nos tenha poupado à primeira frase da de 1940: «Em nome da Santíssima Trindade».

9 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Ao Luís Almeida Henriques

Faz hoje 2 anos que foi a enterrar o médico ilustre, cidadão exemplar, democrata e homem solidário. No funeral, civil, à guisa de oração fúnebre, antes de baixar à cova, foi lido o texto que lhe dediquei. Aqui o publico para recordar o amigo e homenagear de novo Luís Almeida Henriques. E para dar a conhecer o homem, bom como poucos, e um cidadão como devia haver muitos: republicano, socialista, ateu.

Eis o texto:

Só as lágrimas amaciam esta revolta que sentimos. A tua ausência é chumbo derretido na ferida da saudade que abriste com o gume do teu enorme afecto.

A tua partida, Amigo, obriga-nos a uma dolorosa viagem à memória. E como pode ser tão sofrida essa viagem onde tropeçamos na esperança que transmitias, na alegria contagiante, na ternura com que nos envolvias!

Tu eras o rio impetuoso que não suportava as margens. Eras a voz irreverente de quem não se conforma com as injustiças, de quem acredita no homem e na sua capacidade de transformar o mundo. Foste voz de Abril antes da liberdade conquistada, para seres a consciência crítica dos que tão depressa se acomodaram. Sonhaste cravos antes de florirem. Não deixaste de os regar quando lhes quiseram roubar o viço ou desejaram vê-los murchar.

E nunca, mas nunca, foste neutral. Marginal, muitas vezes. Rebelde, sempre. Havia em ti um gosto irreprimível pela liberdade, tão intenso como o prazer da transgressão. E é nesse exemplo cuja memória guardamos que havemos de rever-nos nos dias que ainda tivermos, no tempo que ainda formos, nos tempos que nos desafiam a lutar pelos ideais que sempre foram teus e que serão sempre nossos.

Se há um paradigma de livre-pensador conseguiste-o. Empenhado em todos os movimentos cívicos em que te reviste, apoiante de todas as causas que julgaste justas, foste dos homens mais solidários e nobres que conhecemos. E dos mais fraternos. Foste excessivo a dar, sem nada querer de volta.

Amaste a Pátria por cuja liberdade arriscavas a tua. Amaste a família, os amigos, Viseu. À tua volta nascia uma tertúlia em cada mesa de café, em cada banco de jardim, em cada esquina onde paravas rodeado de afectos, em cada ágape que eras o primeiro a promover.

Há talvez uma década, num jantar de anos do Dr. Fernando Vale, maravilhado pela frescura do seu discurso, disseste que, enquanto vivesses, não lhe faltarias com o teu abraço em cada aniversário. E cumpriste. Não o farás pela primeira vez no próximo dia 30 de Julho, quando completar 102 anos.

Luís, tu não tinhas ainda que partir. Nem esperaste pelo solstício que se avizinha.

Não podias ter esperado um pouco mais? Não podias, ao menos, transferir a força do teu entusiasmo, a coragem e determinação que eram teu apanágio, para nos ajudares a defender as causas e os princípios que nos irmanaram?

Não. Claro que não. Tu já não vês sequer as lágrimas que as flores que te cobrem escondem nos nossos rostos. Dizem que é feio chorar. O raio que os parta, Luís. Feio seria não chorar um homem como tu, não sofrer a partida de um irmão destes, não sentir a perda de um amigo assim.

Fica em paz amigo, companheiro, camarada, irmão. Nós ficamos desolados.

Cemitério de Nelas, 10 de Junho de 2002

9 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Sobre a Concordata

Foi hoje publicada no Diário de Notícias, na secção Tribuna Livre, o texto do Diário de uns Ateus, com os cortes assinalados em itálico:

A cerimónia de despedida do núncio apostólico em Lisboa, em 2002 deixou as piores apreensões sobre os bastidores das negociações da Concordata.

O então MNE, Martins da Cruz, prometeu o que não podia, nem devia, prometer ? o reforço da influência da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) no domínio «do ensino, da assistência social, da cultura, nos múltiplos domínios em que nos habituámos a ver uma Igreja activa e empenhada em contribuir para a solução de problemas nacionais». É sempre através da rede de assistência social (lares, hospitais, escolas, creches, templos) que a Igreja se infiltra para controlar o quotidiano dos cidadãos. A tragédia dos países árabes onde o islamismo tem hoje a mesma influência que a ICAR tinha na Europa, na Idade Média, devia fazer reflectir os cidadãos, os crentes e os não crentes.

E, com total impunidade, afirmou ainda: «Como católico considero um privilégio ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros no momento desta importante negociação».

O país livrou-se do ministro mas não se escapou à Concordata.
A experiência de 1940 devia ter-nos vacinado contra a reincidência. A própria ICAR, refém da ditadura fascista e associada à repressão de meio século, devia evitar a tentação dos privilégios, embora ninguém, com privilégios, admita que os tem.

Acontece que esta Concordata foi negociada à sorrelfa e não foi fácil aceder-lhe, mesmo alguns dias depois de assinada. É importante discutir o texto que, depois de ratificado, se torna direito interno português, directamente aplicável.

A religião não se impõe por tratados nem a propagação da fé se confia aos Estados. O mundo islâmico é o exemplo trágico. A Concordata, não pode ser um tratado de Tordesilhas que submeta à órbita do Vaticano um país a que a Cúria trace o meridiano. A subserviência à tiara não augura um futuro de tolerância e esta revisão ficou à mercê do promíscuo contubérnio entre ministros de Deus e de Durão Barroso. O resultado está aí.

Não consta que a ICAR tenha sentido qualquer limitação ao exercício do seu múnus nestes anos de democracia. Que pretendia mais, ou o que pretende proibir?

A concordata fere princípios de universalidade e de igualdade de direitos e de obrigações, que a lei geral estabelece e acautela; opõe-se à lei geral na medida em que a ICAR exige tratamento especial naquilo que lhe diz respeito; e enuncia deveres religiosos como se o princípio da separação não impusesse ao Estado o total alheamento quanto a tais «deveres».

Por ser bizarro, cite-se o n.º 2 do Art. 15: «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vinculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio».

Imagine-se que, por dever de reciprocidade, havia um n.º 3 com esta redacção: «A República Portuguesa, reafirmando a doutrina do Estado sobre o casamento civil, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio civil o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade canónica de requerer o matrimónio religioso».


Esta concordata não serve e outra não é precisa. Não foi objecto de negociadores, foi um arranjo de negociantes.

Talvez só o facto de ter sido assinada apenas entre Durão Barroso e o cardeal Angelo Sodano nos tenha poupado à primeira frase da de 1940: «Em nome da Santíssima Trindade».

8 de Junho, 2004 Carlos Esperança

Consternação mundial – 1 morto

O falecimento de Ronald Reagan levou a comunicação social a enaltecer o papel do antigo presidente dos EUA. Houve uma quase unanimidade na exaltação das qualidades que exornaram o antigo presidente. O papa JP2, pese a pouca credibilidade que merece, acusou-o de ter «uma alma nobre» e ter «difundido a liberdade».

A generalidade dos órgãos de comunicação social teceu-lhe os maiores encómios. Foi assim que me dei conta do estado lastimoso da minha memória. Tinha uma ideia completamente contrária do indivíduo.

Só fiquei um pouco mais tranquilo quando li que o papa assegurou à viúva que «rezava pelo eterno descanso do seu esposo». Afinal não sou o único a sentir que ele precisa de muitas orações para se redimir do que fez em vida, ainda que a companhia não me agrade.

Mas já não é a primeira vez que me encontro do mesmo lado de pessoa tão pouco recomendável, João Paulo II. Aconteceu na ocupação do Iraque.

8 de Junho, 2004 Carlos Esperança

O menino Eleutério – 4.º conto piedoso (último)

Atanásio Barroso e Maria de Jesus já tinham passado os trinta anos de idade e, em conjunto, os trinta hectares de terra de semeadura e outros tantos de olival, vinhedo e pinhais, quando os amigos os empurraram para o matrimónio.

Nunca antes por ele outra se interessara nem ela a outro desejara, isto que se soubesse, que a mulher séria era vedado manifestar desejos de qualquer natureza. Daí que toda a aldeia os vissem virtuosos e talhados um para o outro. E assim foi.

Casados, e abendiçoados por um padre que a idade tornara casto e suspeito de santidade, dois anos se passaram com esforços inglórios e impertinentes perguntas dos vizinhos, sem que D. Maria de Jesus lograsse emprenhar.

Já julgava ela ser maninha, por ficar sempre forra, responsabilidade que tinha obrigação de assumir ainda que, e não era o caso, faltasse o marido ao cumprimento das obrigações matrimoniais. Moléstias de varão é que não são de admitir.

Bem sabia D. Maria de Jesus que ao marido cabiam apenas os êxitos, não devendo mulher séria pôr-lhe em dúvida os méritos ou queixar-se do desempenho como se tivesse direito, à guisa de mulher mundana, ter doutros desempenhos conhecimento que lhe permitisse comparação.

Começou a evitar o banho e a seguir melhor os conselhos de amigas que sorriam sem dentes por entre numerosa prole. Debalde. Fez então uma promessa à Senhora de Fátima. Com a reza diária do terço, em caso de sucesso, faria a pé as trinta léguas que a separavam da Cova da Iria. Assim a Virgem a ouvisse.

Eram votos formulados em Português, idioma que a Virgem mostrara dominar em confidências à Irmã Lúcia, numas deslocações que fizera a uma azinheira da Cova da Iria, e em que lhe deu conta dum atentado que um papa por nascer havia de sofrer, bem como doutras coisas excepcionais com que facilmente convenceu três crianças das virtudes terapêuticas do terço e da penitência.

Quem cedo adivinhou o mal que a Rússia espalharia pelo mundo, quem, suspendendo os hábitos dos astros na Cova da Iria, fez girar o Sol sobre si mesmo e o fez descer três vezes até à altura do horizonte, maravilhando 50.000 devotos, fácil lhe seria estimular a fertilidade duma devota.

Quem teve o poder de mostrar o Inferno e os seus horrores, destinados aos que se arredam das orações ou se baldam à penitência, não abandonaria quem cumpria as obrigações matrimoniais sem ter em vista outro fim que não fosse o da prossecução da espécie, sem laivos de lubricidade, sem sombra de pecado.

Ainda não tinha passado um mês sobre o piedoso voto e já, dia após dia, a ausência das regras prenunciava o êxito da fé. Esperou tempo suficiente antes de avisar o marido, não fosse a natureza pregar-lhe uma partida.

Depois foi esperar o que é hábito, chamar a entendida na altura própria para cortar o cordão umbilical, observar a criança e pronunciar o veredicto sobre o sexo.

Naquele Natal de 1940 aqueles pais nem se davam conta da guerra que grassava na Europa. Ouviam vagamente falar de Hitler com aquela admiração e respeito que merecem os Homens que amam a sua Pátria e se dispõem a combater judeus, ciganos, maçons e comunistas. E, graças a Deus, o Eleutério estava livre de tudo isso pelo nascimento e pelo baptismo que o Sr. Padre havia de celebrar no 30.º dia do nascimento com pompa, circunstância, muitos convidados e enorme quantidade de vitualhas.

O nome de Santo fora-lhe dado pelo Padrinho que desconhecia haver três, homónimos, sendo um Bispo, outro Papa e um terceiro, não menos virtuoso, companheiro de S. Dinis com quem partilhara o martírio.

Eleutério ficou aos cuidados da irmã da mãe, mais velha que ela dois anos, mulher austera e substancial, celibatária convicta, habituada às lides do campo, à prática religiosa e ao ensino da catequese.

A tia sabia da promessa. Isso bastou para cuidar do sobrinho enquanto a irmã e o cunhado se aventuravam nos caminhos de Fátima com bandos de peregrinos que engrossavam a cada momento. Suportaram a dureza da caminhada, resistiram sem um queixume, sem vacilação na fé, sem folga nas rezas.

Viveram intensamente a chegada à Cova da Iria e comoveram-se na procissão do Adeus. No dia seguinte, após as cerimónias a que presidiu um cardeal, partiram de regresso, agora de camioneta, cheios de cansaço e santidade.

Nesses dias Eleutério esquecera completamente a teta materna pela qual, em boa verdade, nunca mostrara a avidez dos filhos dos pobres. Ficou vedado.

Eleutério era nome rebarbativo que os pais acharam adequado à sua condição, e o Padrinho ao seu futuro, mas tão pouco eufónico e propenso a diminutivo que cedo passou a ser tratado por Barrosinho.

Cresceu a ouvir rezar pelo fim da guerra e, acabada esta, com dúvidas sobre quem seriam os melhores, continuou a ouvir rezar pela conversão da Rússia, pela paz, pelo Santo Padre, pelos governantes e por intenções avulsas que variavam em cada missa de acordo com as necessidades mais prementes. Frequentou a catequese com a tia, mudou os dentes e sobreviveu ao sarampo, às bexigas, ao crisma e ao exame do 2º. Grau.

No ano seguinte, feito o exame de admissão à primeira tentativa, entrou no Liceu onde, ao fim de 10 anos, completou o 7.º ano, a tempo de ir para Mafra frequentar o curso de Oficiais Milicianos e vestir uma farda ainda mais bonita que a da Mocidade.

Em 1966, depois de ter defendido a Pátria e a civilização cristã e ocidental em Angola, passou à disponibilidade com a patente de Tenente.

A mãe, senhora muito virtuosa, falecia alguns meses depois do regresso do filho. Diabetes ? dizia o médico ? estiveram na origem de muito sofrimento e da morte prematura. Logo a seguir finava-se o pai, de desamor pela vida e cirrose hepática.

Barrosinho, agora Sr. Barroso, ficou só no mundo. Por incapacidade dos pais, falta de promessas ou desacerto com as fases da Lua, vá-se lá saber, não tivera irmãos.

Deixou a tia, catequista e intratável, as propriedades e a aldeia. Rumou a Lisboa.

Respondeu a anúncios e, em breve, encontrou emprego numa empresa de produtos químicos onde passou a ser tratado por Sr. Barroso. E casou.

Quando veio o 25 de Abril tinha sete anos de trabalho, sempre na mesma empresa. Chegara a chefe de secção, insensível às calúnias dos colegas invejosos que atribuíam o seu sucesso aos queijos de ovelha e garrafões de azeite que recebia do caseiro e com que obsequiava regularmente o Gerente suíço por mera cortesia e amizade.

Quiseram saneá-lo os outros trabalhadores. O Sr. Barroso insinuou que lutara pela democracia na clandestinidade, até era simpatizante do Partido Socialista. Foi mais feliz que o Gerente, regressado à Pátria na sequência duma greve tumultuosa.

Hoje, 30 anos depois, é Chefe de Serviços. Não se sabe o que faz. O actual gerente diz que ele é importante. Envelhece e envilece. Passa o tempo a dizer que pouco falta para os comunistas estarem todos no Governo, que os militares traíram a Pátria, que a Pátria é uma porcaria, que se fosse mais novo emigrava.

Recebe subsídios para arrancar árvores nas propriedades da sua aldeia e, com novos subsídios, de novo as plantar. E não se cansa de dizer que os Governos venderam Portugal à Europa do mesmo modo que entregaram o Ultramar ao comunismo.

Temente a Deus, quatro filhos perfeitos, todos com emprego do Estado e ordenado certo ao fim do mês, o Sr. Barroso começou a humanizar-se. Aos 60 anos, em véspera de Natal, só teme ter cada vez menos a companhia dos netos e cada vez mais a da amantíssima Esposa que suporta resignado há mais de três décadas.

Mas começa a ser um homem feliz e agradavelmente maldizente.

Uma destas noites sonhou que era Natal e ocupava um lugar no Presépio. Viu-se a rodear o Menino com S. José, a Virgem, a vaquinha e os reis magos. Acordou feliz. Nem se deu conta do animal que lhe coube ser. Milagre da fé.