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O menino Eleutério – 4.º conto piedoso (último)

Atanásio Barroso e Maria de Jesus já tinham passado os trinta anos de idade e, em conjunto, os trinta hectares de terra de semeadura e outros tantos de olival, vinhedo e pinhais, quando os amigos os empurraram para o matrimónio.

Nunca antes por ele outra se interessara nem ela a outro desejara, isto que se soubesse, que a mulher séria era vedado manifestar desejos de qualquer natureza. Daí que toda a aldeia os vissem virtuosos e talhados um para o outro. E assim foi.

Casados, e abendiçoados por um padre que a idade tornara casto e suspeito de santidade, dois anos se passaram com esforços inglórios e impertinentes perguntas dos vizinhos, sem que D. Maria de Jesus lograsse emprenhar.

Já julgava ela ser maninha, por ficar sempre forra, responsabilidade que tinha obrigação de assumir ainda que, e não era o caso, faltasse o marido ao cumprimento das obrigações matrimoniais. Moléstias de varão é que não são de admitir.

Bem sabia D. Maria de Jesus que ao marido cabiam apenas os êxitos, não devendo mulher séria pôr-lhe em dúvida os méritos ou queixar-se do desempenho como se tivesse direito, à guisa de mulher mundana, ter doutros desempenhos conhecimento que lhe permitisse comparação.

Começou a evitar o banho e a seguir melhor os conselhos de amigas que sorriam sem dentes por entre numerosa prole. Debalde. Fez então uma promessa à Senhora de Fátima. Com a reza diária do terço, em caso de sucesso, faria a pé as trinta léguas que a separavam da Cova da Iria. Assim a Virgem a ouvisse.

Eram votos formulados em Português, idioma que a Virgem mostrara dominar em confidências à Irmã Lúcia, numas deslocações que fizera a uma azinheira da Cova da Iria, e em que lhe deu conta dum atentado que um papa por nascer havia de sofrer, bem como doutras coisas excepcionais com que facilmente convenceu três crianças das virtudes terapêuticas do terço e da penitência.

Quem cedo adivinhou o mal que a Rússia espalharia pelo mundo, quem, suspendendo os hábitos dos astros na Cova da Iria, fez girar o Sol sobre si mesmo e o fez descer três vezes até à altura do horizonte, maravilhando 50.000 devotos, fácil lhe seria estimular a fertilidade duma devota.

Quem teve o poder de mostrar o Inferno e os seus horrores, destinados aos que se arredam das orações ou se baldam à penitência, não abandonaria quem cumpria as obrigações matrimoniais sem ter em vista outro fim que não fosse o da prossecução da espécie, sem laivos de lubricidade, sem sombra de pecado.

Ainda não tinha passado um mês sobre o piedoso voto e já, dia após dia, a ausência das regras prenunciava o êxito da fé. Esperou tempo suficiente antes de avisar o marido, não fosse a natureza pregar-lhe uma partida.

Depois foi esperar o que é hábito, chamar a entendida na altura própria para cortar o cordão umbilical, observar a criança e pronunciar o veredicto sobre o sexo.

Naquele Natal de 1940 aqueles pais nem se davam conta da guerra que grassava na Europa. Ouviam vagamente falar de Hitler com aquela admiração e respeito que merecem os Homens que amam a sua Pátria e se dispõem a combater judeus, ciganos, maçons e comunistas. E, graças a Deus, o Eleutério estava livre de tudo isso pelo nascimento e pelo baptismo que o Sr. Padre havia de celebrar no 30.º dia do nascimento com pompa, circunstância, muitos convidados e enorme quantidade de vitualhas.

O nome de Santo fora-lhe dado pelo Padrinho que desconhecia haver três, homónimos, sendo um Bispo, outro Papa e um terceiro, não menos virtuoso, companheiro de S. Dinis com quem partilhara o martírio.

Eleutério ficou aos cuidados da irmã da mãe, mais velha que ela dois anos, mulher austera e substancial, celibatária convicta, habituada às lides do campo, à prática religiosa e ao ensino da catequese.

A tia sabia da promessa. Isso bastou para cuidar do sobrinho enquanto a irmã e o cunhado se aventuravam nos caminhos de Fátima com bandos de peregrinos que engrossavam a cada momento. Suportaram a dureza da caminhada, resistiram sem um queixume, sem vacilação na fé, sem folga nas rezas.

Viveram intensamente a chegada à Cova da Iria e comoveram-se na procissão do Adeus. No dia seguinte, após as cerimónias a que presidiu um cardeal, partiram de regresso, agora de camioneta, cheios de cansaço e santidade.

Nesses dias Eleutério esquecera completamente a teta materna pela qual, em boa verdade, nunca mostrara a avidez dos filhos dos pobres. Ficou vedado.

Eleutério era nome rebarbativo que os pais acharam adequado à sua condição, e o Padrinho ao seu futuro, mas tão pouco eufónico e propenso a diminutivo que cedo passou a ser tratado por Barrosinho.

Cresceu a ouvir rezar pelo fim da guerra e, acabada esta, com dúvidas sobre quem seriam os melhores, continuou a ouvir rezar pela conversão da Rússia, pela paz, pelo Santo Padre, pelos governantes e por intenções avulsas que variavam em cada missa de acordo com as necessidades mais prementes. Frequentou a catequese com a tia, mudou os dentes e sobreviveu ao sarampo, às bexigas, ao crisma e ao exame do 2º. Grau.

No ano seguinte, feito o exame de admissão à primeira tentativa, entrou no Liceu onde, ao fim de 10 anos, completou o 7.º ano, a tempo de ir para Mafra frequentar o curso de Oficiais Milicianos e vestir uma farda ainda mais bonita que a da Mocidade.

Em 1966, depois de ter defendido a Pátria e a civilização cristã e ocidental em Angola, passou à disponibilidade com a patente de Tenente.

A mãe, senhora muito virtuosa, falecia alguns meses depois do regresso do filho. Diabetes ? dizia o médico ? estiveram na origem de muito sofrimento e da morte prematura. Logo a seguir finava-se o pai, de desamor pela vida e cirrose hepática.

Barrosinho, agora Sr. Barroso, ficou só no mundo. Por incapacidade dos pais, falta de promessas ou desacerto com as fases da Lua, vá-se lá saber, não tivera irmãos.

Deixou a tia, catequista e intratável, as propriedades e a aldeia. Rumou a Lisboa.

Respondeu a anúncios e, em breve, encontrou emprego numa empresa de produtos químicos onde passou a ser tratado por Sr. Barroso. E casou.

Quando veio o 25 de Abril tinha sete anos de trabalho, sempre na mesma empresa. Chegara a chefe de secção, insensível às calúnias dos colegas invejosos que atribuíam o seu sucesso aos queijos de ovelha e garrafões de azeite que recebia do caseiro e com que obsequiava regularmente o Gerente suíço por mera cortesia e amizade.

Quiseram saneá-lo os outros trabalhadores. O Sr. Barroso insinuou que lutara pela democracia na clandestinidade, até era simpatizante do Partido Socialista. Foi mais feliz que o Gerente, regressado à Pátria na sequência duma greve tumultuosa.

Hoje, 30 anos depois, é Chefe de Serviços. Não se sabe o que faz. O actual gerente diz que ele é importante. Envelhece e envilece. Passa o tempo a dizer que pouco falta para os comunistas estarem todos no Governo, que os militares traíram a Pátria, que a Pátria é uma porcaria, que se fosse mais novo emigrava.

Recebe subsídios para arrancar árvores nas propriedades da sua aldeia e, com novos subsídios, de novo as plantar. E não se cansa de dizer que os Governos venderam Portugal à Europa do mesmo modo que entregaram o Ultramar ao comunismo.

Temente a Deus, quatro filhos perfeitos, todos com emprego do Estado e ordenado certo ao fim do mês, o Sr. Barroso começou a humanizar-se. Aos 60 anos, em véspera de Natal, só teme ter cada vez menos a companhia dos netos e cada vez mais a da amantíssima Esposa que suporta resignado há mais de três décadas.

Mas começa a ser um homem feliz e agradavelmente maldizente.

Uma destas noites sonhou que era Natal e ocupava um lugar no Presépio. Viu-se a rodear o Menino com S. José, a Virgem, a vaquinha e os reis magos. Acordou feliz. Nem se deu conta do animal que lhe coube ser. Milagre da fé.