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Apneia transcendental

A Dona Maria escreve artigos de opinião no Diário de Coimbra. Escreve artigos de opinião mas nunca lhe li algum que merecesse tal qualificação. Porque a Dona Maria não formula opiniões, escrevinha certezas inabaláveis acerca das suas pias convicções religiosas num espaço supostamente reservado à opinião dos comentadores residentes, sobre variados assuntos. A Dona Maria é, também ela, uma residente do jornal mais representativo da cidade dos estudantes. Um jornal que deveria ser uma referência intelectual e de conhecimento e não apenas um pasquim de fait divers locais onde os dedos pegajosos das sotainas e da seita Opus Dei largam hodiernamente mais impressões que um carteirista amador.

Faz tempo que critico a linha editorial do referido jornal, sobretudo no que se refere ao favoritismo manifestado com a publicação de textos de cariz religioso na página “Fala o Leitor”, bem reveladora do sacro ambiente que por ali vagueia. Mas, sendo um espaço reservado aos seus leitores, e tendo estes todo o direito de se prostrarem em adulação submissa aos salvadores que bem entenderem, sejam imaginários ou reais, tenho amaciado o meu cinismo com um aborrecido encolher de ombros. Talvez por isso tenha hesitado em comentar um artigo da senhora, publicado em 3 de julho, que não soube amortecer e muito menos digerir. Por isso ou pelo facto de a entediante senhora me parecer demasiado inofensiva e inocente para merecer atenção, talvez pelo ar de Testemunha de Jeová com que se apresenta, um espectro de ultra beata fabricado em longas homilias, o cabelo curto e recatado como sói e um sorriso maquilhado que só quem nunca soube sorrir sincera e livremente consegue exibir.

Dizia a senhora nesse artigo, após uma introdução que nunca faria prever o que se seguiria, incorporando sorrateiramente o que efetivamente pretendia derramar sobre o leitor ocasional, que “Há momentos em que o sol, inesperadamente, surpreendentemente, dissipa as nuvens e a luminosidade é tanta que os seres criados brilham como diamantes.” Referiu-se então a um “meeting da fé” que decorreu durante três dias numa grande superfície comercial da cidade, afirmando que este foi “estrela de primeira grandeza.” “A fé – continuou – brilhou com tal esplendor que os carrinhos de compras que vinham das lojas travavam às quatro rodas para a escutar.” Aqui eu percebi que estava a ler um artigo de alguém com graves problemas de perceção sensorial. Recordo-me de ter por lá passado e a única coisa que travava os carrinhos de compras era o movimento de mudança de direção que faziam ao manobrar para se desviarem das bancas dos paladinos da fé e do seu enfadonho e alucinado linguajar…

Sente-se o êxtase da cruz a palpitar no discurso que sai do peito da veneranda senhora. Continua: “Mas a voz que mais se fez ouvir por esses andares acima do Dolce Vita foi a de uma mãe de sete filhos que contou com uma naturalidade, com uma força, com uma alegria transbordante a sua vida de família…Disse que aquela mãe era uma mãe de sete filhos…Só que um já foi para o céu e lá espera…para poder brincar com os seus irmãos; sim porque a família tem lá reservado o seu lugar…É a esperança de quem tem fé. É a certeza de quem sabe que este lugar aqui é provisório. Investigações, descobertas, pois que a ciência as faça; artefactos, patranhas de quem presume fazer do Homem um ser imortal, dar-lhe uma juventude eterna, não colhem. Não têm sustentabilidade para serem credíveis.” Aqui parei. Foi neste ponto que o respeito inato que sinto ou procuro sentir pelos outros entrou em conflito com o respeito que possa ou não ter e manifestar para com as suas crenças absurdas e estupidificantes.

Para pessoas como a Dona Maria, nada importa a não ser a fé. Ciência? Que é lá isso? Que pode um médico fazer mais que uma oração? Quem nos transportará mais longe, um avião ou o teletransporte da fé? Que pode um contracetivo ou o planeamento familiar fazer por uma pobre mãe de sete filhos que a esperança num condomínio privado no céu não possa resolver de forma mais credível?

“A voz daquela mulher ficou a ecoar nas paredes do Dolce Vita. Aquela mãe fez chorar as pedras.” (Não foram só as pedras que choraram…) “Jorraram lágrimas, não de dó nem de pena. Foram lágrimas de emoção. Os corações que bateram forte ao ouvi-la ficaram a transbordar de alegria.” E eu a engolir a perplexidade que nem o café conseguiu diluir…

Choca-me profundamente que a uma pessoa tão notoriamente desfasada da realidade seja dado espaço para debitar as maiores absurdidades. Absurdidades que apenas se tornam respeitáveis, note-se, porque introduzido o fator fé, uma mão aberta cheia de um nada que tira o próprio sentido ao gesto. Choca-me que um jornal sério, onde certamente trabalham jornalistas lúcidos e com os pés assentes na terra, publique desarrazoadamente a visão fanatizada desta senhora como se de algo sério se tratasse. Como se o mundo real, ainda demasiado sobrecarregado de ignorância e obscurantismo religioso, necessitasse de mais primitivismo emocional desregulado. Como se a incapacitante ignorância comportamental e existencial das pessoas menos dotadas de conhecimento fosse algo que merecesse aplauso, negando-lhes, num só golpe, a capacidade de resolução dos seus próprios problemas, problemas esses que nunca existiriam à partida se fossem racionalmente antecipados.

Escreveu esta segunda-feira João César das Neves, na sua já famigerada crónica semanal: “…num tempo em que a cultura dominante se orgulha da perda do transcendente, tudo se reduz ao material.”

Eu digo antes que, em quase todos os domínios, é o transcendente que nos reduz. E que todos os que o perpetuam são responsáveis por esta apneia sociocultural que nos impossibilita não só de ir mais além, como de ser mais além.