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Jesus, esse revolucionário incompreendido

Esqueçamos a metáfora. Ponhamos de parte a subjectividade interpretativa de textos avoengos que o passado e os adeptos da sua eternização nos legaram como herança. Tomemos como real a romantizada história dessa enigmática personagem que uns misóginos psicopatas utilizaram como pilar mor para a fabricação da mais poderosa instituição a que a humanidade alguma vez se viu subjugada. Façamos de conta que Jesus, mais tarde Cristo, de facto existiu e que disse precisamente o que vem relatado nos evangelhos sinóticos, numa época primitiva em que o plágio intelectual e a pirataria cultural eram o único meio de passar informação ou de subtrair reconhecimento.

Esqueçamos, disse, o obscurantismo metafísico urdido para controlar a excessividade exibicionista e controladora da testosterona ou os estouvados impulsos púberes do estrogénio. Jesus de Nazaré, a personagem vagamente histórica que as mentes mais perversas e conservadoras preferem cultuar no auge da decadência e do sofrimento foi, sobretudo, e muito mais do que lhe acrescentaram postumamente, um revolucionário, um humanista dedicado, um iluminado precoce, apesar de atormentado pela compreensível crendice mais desesperada, um placebo antidepressivo numa época enclausurada pela selvajaria mais descontrolada.

Nos dias que correm, Jesus seria catalogado como um fanático e perigoso ideólogo de esquerda, um anarquista pós-punk, um yuppie pacifista adepto da contraceção e das praias de nudismo, um alienado rastafári a declamar poemas de amor em pelo no alto de uma montanha após incendiar uma plantação de cannabis, ou quiçá, benzei-vos, um comunista militante, porque ateu para com os antiquados, sádicos e narcisistas deuses capitalistas, excessivamente neoliberais. Apoiaria a Greenpeace, lutaria pelos direitos dos animais, seria membro do movimento LGBT, lutaria pela igualdade da mulher, estaria sempre do lado das minorias castradas de voz e sempre contra as vozes autoritárias do poder hereditário ou ilicitamente açambarcado. Um verdadeiro homem do povo, para o povo e com o povo. Não por ser igual a tantos, mas por a tantos reconhecer a diversidade e as fraquezas. E por a tantos vislumbrar o potencial. E porque a todos Deus criara. Tal como eram. Fossem como fossem. Porque tudo criara, afinal. E quem são os homens para questionar a criação de Deus?

Pasme-se pois, porque creiam que de pasmo aqui se trata, que, volvidos dois milénios (mais ano, menos ano), sejam precisamente os avatares das personagens que Jesus criticou veementemente, os espíritos mais conservadores, elitistas, reaccionários, calculistas e oportunistas, ou simplesmente insensatos, os que mais aguerridamente lhe usurpam o imaginário procurando impor aos restantes um tipo de mundividência em nome de quem categoricamente se entregou à morte para a achincalhar.

Estes que em seu nome falam são os que insistem em misturar o seu abastardado sistema de crenças, impregnado de uma idolatria que os antigos mandamentos já haviam condenado, com o governo dos homens, esquecendo o que ele disse, antecipando em séculos a laicidade: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”

Estes são os que falam da necessidade de uma interpretação metafórica para tudo o que à luz do pensamento moderno possa parecer descabido, mas que continuam sem compreender a simbologia bem atual do episódio dos vendilhões do templo; ou que ele entraria em Fátima (um exemplo entre tantos) não de mãos postas e olhar de celibatário sensaborão, mas de cajado em riste, pronto a escavacar a gigantesca tabanca comercial com que os vendilhões do templo atestam os cofres do Vaticano com os parcos tostões que os vendilhões da banca caridosamente permitiram poupar.

Estes são os que no novo oeste negam a ciência e a evolução e lançam guerras santas contra outras de igual índole em terra deserta, e para muitos ainda plana, esquecendo que todos os rostos têm duas faces. E que estas faces, apesar de opostas, são semelhantes e completam o todo.

Estes são os que julgam quem nasce diferente, quem pensa diferente, apenas por não serem iguais à maioria, e se esquecem que o homem aconselhou a não julgar, para não se ser julgado, porque com o juízo com que se julga assim também se será julgado. Ou que atire a primeira pedra o que não tiver defeitos ou não tenha cometido erros. Ou que quem violar os mandamentos será declarado o menor no Reino dos Céus, o que engloba a totalidade da espécie humana.

A história da humanidade é tantas vezes feita de incongruências… Como é possível que alguém que hoje seria visto como um revolucionário de esquerda, passe o cunho ideológico, alguém que lutou pelos mais básicos direitos humanos,  tenha sido utilizado após a sua morte como símbolo para a implementação de sequiosos, torpes e retrógrados valores clericais e da frívola ideologia da direita mais reacionária?

A segunda vinda de Jesus Cristo está prevista na sua biografia não autorizada. Talvez seja por isso que os usurários do seu pensamento insistem em mantê-lo pregado na cruz. Não vá ele próprio tecê-las…

Esqueçamos, então, o obscurantismo. E façamos de conta que tudo isto é real.