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Mês: Fevereiro 2006

14 de Fevereiro, 2006 Ricardo Alves

República laica – solução para o futuro

ENCONTRO-DEBATE com ÉTIENNE PION:
REPÚBLICA LAICA – SOLUÇÃO PARA O FUTURO

14 de fevereiro (terça-feira), às 18:30 horas, no auditório da Biblioteca-Museu República e Resistência (Rua Alberto de Sousa, nº10 – Zona B do Rego, junto à Cidade Universitária).
Entrada livre e tradução simultânea.

Étienne Pion é presidente do MOUVEMENT EUROPE ET LAÏCITÉ e autor do livro L’AVENIR LAÏQUE.

Uma iniciativa da Associação Cívica República e Laicidade.

(Reposição.)
14 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Um pobre mártir…

Silvio Berlusconi, o mediático primeiro-ministro italiano, grande defensor de óvulos, espermatozóides e da família «tradicional», o candidato dilecto do Vaticano nas próximas eleições de Abril, afirmou-se o «Jesus Cristo» da política italiana, um mártir da res pública.

De facto, uns escassos dias depois de se ter comparado com Napoleão, afirmando que apenas este tinha feito mais pelo respectivo país, num jantar com apoiantes em Ancona, na costa adriática, Berlusconi declarou-se um mártir salvador da pátria mais concretamente «Eu sou o Jesus Cristo da política. Eu sou uma vítima paciente, aguento toda a gente e sacrifico-me por todos».

Esperemos que a colagem caricata de Berlusconi à Igreja católica, com o beneplácito desta, resulte, como afirmou Alfonso Pecoraro Scanio, o líder dos Verdes italianos, em que «A eleição seja o seu Waterloo»…

14 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Uma história dantesca

Detalhe do fresco de Giovanni da Modena (1415) na basílica de San Petronio em Bolonha

Em 2001 este detalhe do fresco de Giovanni da Modena, ou mais provavelmente Giovanni di Pietro Faloppi, foi considerado «blasfemo e obsceno» e a sua remoção imediata foi exigida pela União dos Muçulmanos Italianos em carta dirigida a João Paulo II e a Giacomo Biffi, o arcebispo de Bolonha. Estranhamente nem o Vaticano nem qualquer dignitário católico, que tanto condenaram os cartoons da polémica, nomeadamente o cardeal Achille Silvestrini que afirmou que as sociedades seculares não têm o direito de ofender os sentimentos religiosos de alguém, consideraram a destruição do fresco!

A ofensa que o fresco centenário constitui mereceu de Abdel Aziz El Mataani, professor da mais antiga universidade islâmica, a universidade Al Azhar no Cairo, a promessa «Quem destruir esta imagem será bendito por Deus». Aparentemente alguns grupos ligados à al-Qaeda são da mesma opinião e a catedral só não foi alvo de um atentado bombista porque a polícia italiana desmontou os planos do grupo terrorista que se preparava para o fazer.

Será que a manutenção do «ofensivo» fresco, face à alteração da posição do Vaticano em relação a «ofensas» pictóricas a qualquer religião, está ameaçada? E será que a Divina Comédia, o ofensivo livro de Dante, que tão mal trata Maomé e Ali no seu Inferno e que foi a inspiração para o fresco em questão, vai ser proíbido nas aulas de literatura como também pretende a dita União?

13 de Fevereiro, 2006 Carlos Esperança

Um talibã açoriano

Ainda ecoam os dislates do padre Serras Pereira, em entrevista ao «Independente», e já a voz de outro sacerdote católico, padre Cláudio Franco, me chega por amável envio de um amigo de Ponta Delgada [«Açoriano Oriental» da passada quinta-feira, dia 9].

É a mesma demência mística, idêntico desvario, igual desvelo prosélito. O padre Serras Pereira não é um epifenómeno numa Igreja moldada pelo concílio de Trento e dirigida por uma horda de Papas reaccionários e fiéis à Contra-Reforma.

O padre de S. Miguel dá pelo nome de Cláudio Franco e exerce o múnus na paróquia do Cabouco. Desorientado com a baixa prática religiosa, acusa de «pagãos» e «amantes do demónio» os católicos não praticantes.

No boletim paroquial «A voz do Mestre», essa luminária publicou os «10 mandamentos do demónio aos católicos não praticantes» – uma obra esgotada a que o meu amigo não teve acesso mas cujo labor teológico é registado no «Açoriano Oriental»:

«Sermos católicos não praticantes é uma mera ilusão, é não ser-se na realidade nada. Mais ainda, é uma autêntica blasfémia, é escarnecer as coisas divinas, é adulterar a Redenção que Cristo nos veio trazer como caminho certo e único que nos conduz à Salvação».

Diz o pio catecúmeno que, quem não vai à missa no Cabouco, sujeita-se, no dia-a-dia, a «amar o demónio e todas as tentações a que ele nos convida».

O padre Cláudio, que criou os «Mandamentos do Demónio», associa os católicos não praticantes a pessoas que vivem a «servir os inimigos do homem (o mundo, demónio e carne) e ao serviço e no estado de pecado mortal».

O paroquiano que me enviou o «Açoriano Oriental» aguarda que o bispo de Angra, António de Sousa Braga, ponha o padre Cláudio de penitência, a ler o «Diário Ateísta», para o redimir das asneiras que profere e do terrorismo religioso que pratica.

12 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

E entretanto no Irão

Aquando das últimas eleições eleições no Irão que deram a vitória a Mahmud Ahmadinezhad não só foi considerado por observadores internacionais que ocorreram «falhas» nas eleições, como os apoiantes de Rafsanjani e de outros candidatos reformistas afirmaram que estas foram manipuladas, os últimos acusando os Guardas Revolucionários do Irão e a segurança Basij de orquestrarem um conluio de forma a dar a vitória ao ultra-conservador.

Na página do Student Movement Coordination Committee for Democracy in Iran (SMCCDI), um movimento secularista, podemos não só inferir que eventualmente tais acusações têm alguma razão de ser como ler que as manipulações do governo iraniano, contrariamente ao que muitos poderiam pensar considerando as violentas reacções à pseudo-guerra dos cartoons em Teerão a que todos assistimos, não estão a convencer pelo menos uma boa parte dos iranianos.

De facto, o movimento laico informa-nos que afinal as manifestações «espontâneas» de repúdio pelos cartoons de Maomé foram eventos organizados pelo governo para mostrar ao mundo uma suposta indignação massiva dos iranianos pela «ofensa». Aparentemente, apesar dos denodados esforços por parte do governo e das mesquitas dominadas por clérigos ligados ao regime teocrático de Teerão, a «massa» manifestante reduziu-se a uns meros 400 (Teerão tem 12 milhões de habitantes), a maioria dos quais membros das forças para-militares Bassij, as tais que os reformistas afirmam tão providenciais terem sido na eleição de Ahmadinezhad.

Para os secularistas iranianos, o fiasco que constitui a manifestação mostra a impopularidade do regime teocrático a as aspirações seculares dos iranianos. E mostra que embora muitos iranianos rejeitem os cartoons, respeitam a liberdade de expressão de quem os publicou!

De igual forma, somos informados que outra manifestação de repúdio ao regime teocrático ocorreu ontem, dia que em que se celebrava o 27º aniversário da revolução (e o início do regime do ayatollah Khomeini).

O governo esperava trazer milhões de iranianos para as ruas apelando aos seus sentimentos nacionalistas e/ou religiosos. Mas, não obstante as centenas de autocarros que trouxeram milhares de «celebrantes», igualmente «espontâneos», para as ruas de Teerão, onde se queria uma gigantesca moldura humana ao evento, apenas conseguiram entre 70 ou 80 mil manifestantes, constituidos maioritariamente pelo que o SMCCDI designou por manifestantes «profissionais», estudantes e funcionários públicos (obrigados a tal).

O coordenador da SMCCDI, Aryo B. Pirouznia, afirmou ontem numa entrevista ao serviço persa da televisão por satélite «Voice of America» que «A geração mais nova no Irão, que é composta por milhões de indíviduos, há muito que virou as costas ao regime islâmico e anseia por modernidade, secularismo e nacionalismo… Esta afirmação é suportada pela falta de participação popular nas demonstraçõs oficiais de hoje e igualmente pela recusa dos iranianos em participarem naquelas manifestações anti-cartoons violentas».

aqui tinhamos dado conta de manifestações simbólicas contra a ditadura dos mullahs, como a recente exposição no Museu de Arte Contemporânea de Teerão de arte proíbida pelo regime, neste caso 190 quadros da colecção de Farah Pahlavi, a mulher do ex-Xá. A inusitada afluência à exposição e a reacção do público são também indicações que a sociedade iraniana não é tão monolítica como os seus teocratas governantes gostariam de fazer passar. E que são erradas e contraproducentes muitas das reacções ocidentais à pseudo-guerra dos cartoons!

As tentativas de apaziguamento e a cedência às chantagens terroristas de uma minoria fundamentalista são o pior golpe nas aspirações democráticas de muitos iranianos e certamente de muitos outros muçulmanos reféns de regime autocráticos. Como é afirmado pelo SMCCDI, entre as razões que permitem que o anacrónico regime teocrático iraniano se mantenha encontra-se a falta de um empenho real a nível mundial que apoie os iranianos na escolha de um sistema político laico! Como o Ricardo apontou, a polarização real nesta história, lá como cá, é entre laicidade e clericalismo, liberdade de expressão e delito de blasfémia. Temos de deixar claro que quer a laicidade quer a liberdade de expressão não são negociáveis nem sujeitos a qualquer tipo de chantagem!

11 de Fevereiro, 2006 Carlos Esperança

Não há só talibãs no Islão.

Um ano após o anúncio em que dizia recusar a comunhão a quem usasse métodos contraceptivos e após a condenação, por difamação, da Associação de Planeamento Familiar, que acusou de «serial killer»,

O padre Serras Pereira repetiu ontem que «a homossexualidade é uma doença», que «o aborto é um crime pior do que a pedofilia», que o uso do DIU (dispositivo intra-uterino) como contraceptivo é «assassino» e acusa, em afirmações ao Correio da Manhã, os outros sacerdotes de só não concordarem consigo por «má-fé» ou «ignorância crassa».

Não há só talibãs no Islão.

Na entrevista ontem dada a «O Independente» o perigoso sacerdote refere ainda que «qualquer relação sexual que não vise a procriação é perversa», que só «a castidade» e a contagem do período fértil da mulher «são métodos contraceptivos legítimos», e que o uso do preservativo ou pílula «falsificam a relação».

Fonte: Correio da Manhã

11 de Fevereiro, 2006 Carlos Esperança

Rua Irmã Lúcia (Vidente de Fátima)

Hoje, às 11H15 foi inaugurada a «Rua Irmã Lúcia (Vidente de Fátima)» na Urbanização da Casa Branca, na freguesia de Santo António dos Olivais.

O vereador da Cultura, Mário Nunes, disse que a autarquia de Coimbra considera a Irmã Lúcia uma «personalidade marcante de Coimbra» e «uma figura marcante do séc. XX».

Mário Nunes foi designado para a Cultura graças ao precedente aberto por Alípio Severo Abranhos, conde d?Abranhos, que foi ministro da Marinha, apesar de enjoar. É natural que transite para o pelouro do culto, mais de acordo com a sua aptidão.

A Irmã Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado (Jesus, pela parte da mãe, e do Coração Imaculado, pela parte do pai) foi a prisioneira mais antiga de Portugal e do Mundo. Apenas a deixaram sair em dias de eleições e de visita papal, para evitar mais visões.

Em vida encerraram-na numa cela, defunta, dão-lhe uma rua; atrás das grades punham-na a escrever cartas a Marcelo Caetano a pedir-lhe para proibir a mini-saia, no túmulo encomendam-lhe milagres para obrar na Argentina; antes mandavam-na dizer que Salazar era enviado da providência enquanto o povo julgava que era castigo, agora dizem que é benta; em vida abandonavam-na, depois de morta mandaram-lhe o Paulo Portas à missa de corpo presente.

Eu acho bem que lhe dêem o nome a uma rua, uma forma de compensação a quem tudo tiraram em vida. Aliás é um nome mais substancial do que «Rua da Mãozinha» que já havia na paróquia.

Não se sabe quem concedeu à Câmara o alvará para declarar vidente uma munícipe, se a competência é do presidente ou foi competência delegada no vereador da cultura e se, no futuro, a profissão de vidente pode ser atribuída a outro munícipe.

11 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

A génese e expansão das guerras da religião modernas

Há mais de um ano escrevi que um dos principais sinais históricos que encontramos invariavelmente em épocas de crise é a adesão de pessoas a vertentes (religiosas ou políticas) que se caracterizam por um radicalismo extremo e uma inflacção do sentimento de pertença a um grupo que assuma o papel de protector e detentor da VERDADE ou MORAL absolutas. Um maniqueísmo exacerbado dos nós (os bons) e dos outros (os maus), do Bem contra o Mal.

Hoje os cartagineses são sortidos mas, tal como no século II a.C., há muitos emuladores de Marco Pórcio Catão, censores moralistas que zelam pela moral e bons costumes respectivos e pela punição dos que consideram ideólogos do mal. Tal como Catão, o objectivo dos pregadores é exponenciar o ódio das populações contra esses supostos ideólogos do mal, transformando-o num sentimento nacionalista/de grupo que deixe em segundo plano os problemas sociais, políticos e outros que assolam as respectivas sociedades, prometendo muitas vezes que a eliminação desses ideólogos do mal será simultaneamente a resolução desses problemas.

Não subscrevo a tese do choque civilizacional de Samuel Huntington (que previa há uma década que este seria inevitável no pós guerra fria), mas acho que de facto o maniqueísmo ou lógica bipolar existente antes da queda do muro era um elemento aglutinador que prevenia a eclosão dos conflitos regionais a que agora assistimos e o ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, a praga anacrónica do século XXI. Com a população mundial desiludida da política, nos locais onde a tensão social é mais aguda assistimos à substituição dos memes ideológicos pelo memeplexo da religião. Assim, temos assistido nos últimos tempos à eclosão de conflitos religiosos um pouco por todo o Globo, sem nada a ver com o suposto conflito de civilizações, mas em que os intervenientes recorrem ao termo teológico cunhado por Agostinho, o de guerra justa, isto é, aquela que obedece a um desígnio divino ou vinga injúrias (à religião, claro).

O século XXI tem sido assim o século das «guerras justas» religiosas que varrem toda a Terra, algumas das quais para que já alertámos no Diário Ateísta, por exemplo na Tailândia, mais concretamente no sul da Tailândia, Nigéria, Indonésia, na Rússia entre várias religiões, na Tchetchénia e no Afeganistão. E não esqueçamos ainda que também G. W. Bush afirmou estar a cumprir uma missão «divina» quando decidiu invadir o Afeganistão e o Iraque. Assim como foi o reacender dos conflitos religiosos nos Balcãs entre bósnios muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos o rastilho da sangrenta guerra que resultou no desmembrar da Jugoslávia.

Mais recentemente, nas Filipinas, um país em que a esmagadora maioria da população é católica, um massacre de cristãos por um grupo de fundamentalistas muçulmanos foi considerado «um duro golpe para a esperança de paz», especialmente na zona de actuação da Moro Islamic Liberation Front, já que agora «qualquer incidente pode despoletar uma guerra de religiões».

Há menos de uma semana terroristas que se pensa pertencerem ao grupo extremista Abu Sayyaf (Portadores da Espada) assaltaram uma quinta em Patikul, assassinando seis cristãos, incluindo uma bébé de 9 meses. De acordo com um dos sobreviventes os assassinos perguntaram às vítimas qual era a sua religião antes de abrir fogo sobre eles.

Também em Caxemira, alvo de acesas disputas entre a Índia e o Paquistão, o conflito de poder se está a transformar num conflito de religiões. Uma manifestação de muçulmanos enfurecidos pelo que afirmaram ser uma profanação do Corão pelos budistas locais resultou em dez feridos, incluindo cinco polícias, e danos materiais. Os manifestantes, que incendiaram várias casas e carros, exprimiam a sua revolta pelo aparecimento nas ruas de Leh, na região de Ladakh de maioria budista, de várias páginas rasgadas do Corão.

Muitos dos nossos leitores crentes afirmam que as religiões não são culpadas do aproveitamento que delas se faz para justificar a «justeza» de violência sortida. Para mim isso só seria verdade se os responsáveis religiosos deixassem claro aos seus seguidores que a religião é algo do domínio privado que não deve ser misturado com a res (coisa) pública. Se advogassem a estrita separação do Estado/política e da religião. Infelizmente não é isso que acontece em alguma das religiões dominantes, aliás verifica-se exactamente o oposto. Todas elas identificam a laicidade e/ou o «relativismo» concumitante com a ideologia do mal, responsáveis pelos problemas do mundo ou das respectivas sociedades e advogam que estes só podem ser resolvidos com uma estrita adesão aos respectivos ditames. Com os resultados que conhecemos…

10 de Fevereiro, 2006 Ricardo Alves

Por um punhado de cartunes: aproveitamentos e hipocrisias

É óbvio que a crise dos cartunes tem sido aproveitada por partes interessadas. No entanto, não se tem frisado suficientemente que a crise convém a dois lados, só conjunturalmente opostos: aos xenófobos da Dinamarca e de alhures na Europa (a «nossa» extrema-direita) e aos fascistas islâmicos do Médio Oriente e vizinhanças (a extrema-direita «deles»). A primeira gostaria que os imigrantes (principalmente muçulmanos na Dinamarca, na França ou no Reino Unido) partissem, e deleita-se com a imagem de intolerância e violência que alguns muçulmanos estão (voluntariamente) a dar de si próprios; a segunda sonha com o califado mundial após a queda dos regimes não islamistas e «pró-americanos» da região, e deleita-se por apresentar os europeus como tolerantes com a blasfémia (o que é verdade) e xenófobos (o que depende dos casos).

Permanecem como alguns dos sinais mais visíveis da instrumentalização desta crise os ataques a embaixadas na Síria e no Líbano (em ambos os casos, aparentemente orquestrados por alguém em Damasco) e em Teerão. Outro sinal serão os célebres três cartunes que não fizeram parte dos doze publicados pelo Jylllands-Posten, cuja origem permanece incerta (eu apostaria na extrema-direita europeia…) e que foram divulgados por imãs apostados na exacerbação da polémica. A crise serve também aos promotores da teoria e prática da «guerra de civilizações» enquanto polarização entre cristãos e muçulmanos, entre os quais se contam Bin Laden e Samuel Huntington. (Como já escrevi, a polarização real é entre laicidade e clericalismo, liberdade de expressão e delito de blasfémia.)

Neste cenário, há hipocrisia a rodos dos dois lados. À esquerda, há quem tenha satirizado o cristianismo no passado e tenha agora descoberto pruridos em ridicularizar o Islão; e à direita, há quem seja incapaz de criticar o catolicismo e tenha descoberto subitamente o totalitarismo da religião… islâmica. Evidentemente, existe também quem critique essas duas religiões e as mais que nos aborrecerem, e é do lado desses que eu estou.

A situação tem o aspecto irritante (que para mim é habitual…) de nos quererem enfiar numa dicotomia em que não encaixamos. Mas, como ateus e anticlericais, há que repetir que as multidões de muçulmanos em fúria instigadas por imãs são a imagem perfeita do rebanho acrítico e obediente que tanta religião produz e que tanto temos denunciado. E que a ideia de que as nossas comunidades políticas devem ser «clubes cristãos» é um objectivo (que não pode avançar um milímetro) do clericalismo índigena.

Aos muçulmanos, este é o momento de lhes recomendar calma, sentido de humor e, sobretudo, capacidade de encaixe. E já agora, seria conveniente que se distanciassem dos extremistas que se apoiam no Islão (se não for demasiadamente incómodo…). Aos que subitamente se interessaram pela liberdade de expressão, gostaria de perguntar, ingenuamente, se alinhariam na eliminação da alínea b do artigo 252 do Código Penal? (Só para saber quão longe vai o apego ao direito à blasfémia…)
9 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Guerra dos cartoons explicada

Desde que se acendeu a guerra dos cartoons que achei curioso o facto de os cartoons da discórdia terem sido publicados no Jyllands-Posten em Setembro, republicados pelo jornal egípcio Al Fager em Outubro, sem grandes manifestações de ofensa até há poucos dias. Esta guerra «atrasada», tal como há uns dias o editor-chefe do referido jornal, Adel Hammouda, referia, surpreendeu-me. E tal como ele achei que subjacente a esta guerra pseudo-religiosa estavam motivos políticos e que a pretensa ofensa que constituiam as inócuas caricaturas era apenas um pretexto que escondia uma motivação sem nada de religioso na origem.

Hoje, o New York Times confirma as minhas suspeitas, descrevendo a génese da indignação «espontânea» que tem varrido violentamente o globo.

A guerra das caricaturas foi orquestrada em Dezembro último quando os líderes das 57 nações muçulmanas, incluindo o presidente do Irão, Mahmoud Ahmadinejad, se reuniram em Meca. De facto, a Organização da Conferência Islâmica (OIC) ou mais concretamente os governos que dela fazem parte viram no irrelevante incidente uma forma de «abafar» os protestos políticos dentro dos próprios países, que não são exactamente modelos de democracia e respeito dos direitos humanos, vindos não só de alas mais liberais das respectivas sociedades como de movimentos islâmicos. Assim, a questão dos cartoons foi acesa por estes governos, especialmente os governos do Irão e da Síria, com uma bombardeamento massivo das populações pelos media locais (estritamente controlados pelo estado) que culminaram nas demonstrações «espontãneas» de «indignação» (e em embaixadas em chamas e igrejas atacadas). Suponho aliás ser a primeira vez em muitos anos que os sírios são permitidos manifestar-se por algo…

Como afirmou Muhammad el-Sayed Said, o director do Centro Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos no Cairo «Era algo menor até à conferência islâmica e a OIC ter tomado posição contra».

Sari Hanafi, professor associado na Universidade Americana de Beirute, considera que foi uma oportunidade usada pelos governos árabes para eliminar o atractivo que o conceito de democracia constitui para as respectivas populações, um papão que agitaram avisando que a democracia e as liberdades do Ocidente correspondem a desrespeito ao Islão.

Claro que foi igualmente importante o papel de desinformação, ou antes, de mentira deliberada de Ahmed Akkari, o libanês naturalizado dinamarquês que «produziu» 3 cartoons «extra», estes sim francamente ofensivos, e que convenceu alguns jornalistas egpícios que uma proposta de um partido de extrema direita para banir o Corão devido às suas passagens incitando à violência era mais que um delírio de um partido assumidamente anti-imigração e anti União Europeia (o Dansk Folkeparti ou Danish People’s Party obteve 13% dos votos nas eleições de 2005, uma votação não despicienda mas obviamente não representando a maioria dos dinamarqueses, que pretende que a Dinamarca saia da União Europeia).

Mas o pretexto oferecido pelo empenhado muçulmano «caiu do céu» para os governantes reunidos em Meca conseguirem travar os impulsos democráticos inspirados no Ocidente que ameaçavam os respectivos regimes (muitos dos quais ditaduras). Certamente que se não tivessem sido publicadas as ditas caricaturas veríamos, o mundo árabe certamente, mas eventualmente todo o mundo muçulmano inflamado contra uma qualquer liberdade «licenciosa» ocidental…