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Se Deus existe, tudo é permitido

Aqui está um texto cuja autoria é de Ricardo Alves.

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O que mais me impressionou no recente incidente com os folhetos distribuídos nas escolas pela associação católica “SOS Vida” foi o desprezo pelos sentimentos das crianças e pela própria verdade factual, e penso que devemos reflectir sobre como é possível defender, como o faz o padre Jerónimo Gomes, que “(…) estas imagens não são chocantes. Tudo se pode dizer às crianças desde que seja científico e de maneira simples” (Público, 6/3/2004).

Qualquer pessoa minimamente sensata considera o panfleto primário, terrorista e objectivamente nocivo para a tranquilidade de qualquer criança, católica ou não. Isto será felizmente consensual na nossa sociedade, mas existe uma associação formada com o apoio do bispo do Algarve que distribui o folheto considerando-o normal. Como é possível existir uma contradição tão grande entre as referências éticas destes católicos e a da maioria da sociedade?

O padre Jerónimo Gomes ajudou-nos a compreender quando declarou, perante as câmaras de televisão, que “não precisa de ver para acreditar”. Referia-se à imagem (comprovadamente falsa) do “taiuanês comendo um feto comprado a 50 euros no hospital local”. Mas a sua frase ecoa o mito do Tomé cristão, o tal a quem o JC da mitologia cristã teria dito que não se deveriam exigir provas tangíveis para crer. Jerónimo Gomes situa-se portanto num sistema de análise da realidade em que a verdade factual é relativizável pela fé, e que permite toda e qualquer operação de redefinição da realidade de acordo com a fé, os dogmas da hierarquia, ou as necessidades evangélico-políticas do dia-a-dia. Este princípio aplica-se igualmente a todas as noções éticas habitualmente aceites. Mentir ou aterrorizar crianças é normalmente considerado errado, mas não o é necessariamente para quem acredita ter “Deus” e os seus representantes terrenos do seu lado. Para os católicos fanáticos (o que felizmente não inclui, longe disso, todos os católicos portugueses nossos contemporâneos) mentir ou causar pesadelos a crianças é éticamente aceitável, desde que feito em nome de “Deus” e com a bênção da sua hierarquia terrena.

Na mente dos fanáticos, se “Deus” existe tudo (lhes) é permitido.

Ricardo Alves, 9/3/2004