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Categoria: Literatura

23 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

O exorcismo da Celeste_1 (Crónica)

Em terras da Beira, depois da guerra, a gratidão para com a senhora de Fátima, pela afeição a Portugal, estendia-se ao senhor presidente do Conselho por nos ter livrado do conflito. No Cume sobrava piedade e faltava comida. Estavam no fim os anos quarenta e os portugueses  longe de começarem a ser gente.

A Celeste morava ao cimo do povo, sozinha, e cismava que se matava. Via-se que não regulava bem da cabeça e adivinhava-se a fome que a apoquentava. Suspeitaram os vizinhos de mau olhado e a ti Catrina, calhada nas benzeduras para tal moléstia, já a tinha ido visitar com outras mulheres embiocadas no xaile e os rostos sumidos na copa de enormes lenços pretos. Das conversas delas nada se disse mas ouviu-se na rua a ladainha:

«Dois to deram, três to tirarão,
foi S. Pedro e S. Paulo e o apóstolo S. João
Sant’Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus,
assim como isto é verdade,
livre este corpo de ares, olhares e todo o mal
em louvor de Sant’Ana e Santa Iria…
padre nosso, ave-maria…»

Muitos padre-nossos e ave-marias depois, sem abrandar o mal, as mulheres mais velhas concluíram que deviam ser espíritos que atenazavam a bendita alma da Celeste, tão temente a Deus que ela era, mas nestas coisas de espíritos ruins são estes que escolhem a morada e, embora a oração lhes dificulte a entrada, está provado que não é intransponível a barreira.

A adensar a suspeita ouvia-se na habitação, durante a noite, o barulho de máquina de costura, que não havia, a trabalhar, a perturbar o sono e a aumentar a angústia. À porta juntavam-se pessoas vindas da igreja a ouvir o som que os espíritos produziam. Os poucos que não ouviram, apesar da atenção e do silêncio, conformaram-se com a deficiência auditiva e renderam-se à maioria.

O senhor padre pode ter desconfiado do diagnóstico, o sr. António Bernardo dizia que ela não batia bem da bola, podia até ser dos espíritos, a senhora professora aconselhou um médico, que disparate, o que sabe um médico destas coisas e onde é que o há, mas o povo na sua infinita sabedoria já tinha o veredicto, eram espíritos, só podia ser, falava-se de uma avó falecida há muitos anos, a voz tinha sido reconhecida, faltaram-lhe algumas missas ao trintário na encomendação da alma, não se perde nada em benzer a casa e deixar algum latim – conformou-se, acossado, o padre Pires –, dizem-se as missas em dívida e logo se verá.

A Celeste é mulher e o destino das mulheres serem possuídas, os espíritos malignos aproveitam e, depois de entrarem, são difíceis de expulsar. É um combate para senhores párocos, ou mesmo para um reverendíssimo bispo se as posses da vítima e a malignidade o aconselham. Pouco avezado a tais pelejas, mas com habilitações canónicas e compleição adequada à luta, bem se esforça o padre a desalojá-los. Quem julgue que a força da cruz e do divino devem bastar não conhece os espíritos e o furor que transmitem às mulheres possuídas, levando à exaustão o exorcista que não raro precisa de várias tentativas para se fazer obedecer. Fracassa e fica extenuado, à primeira, o padre Pires, valendo-lhe a gemada que o aguarda com vinho e açúcar, enquanto a ceia e o breviário lhe não retemperam as forças e devolvem a serenidade.

A Celeste não melhora. Continua a ouvir vozes que desconhece, definha. Alguns dias após, no regresso do Carapito, onde tinha ido levar o viático a um moribundo, volta o padre Pires à peleja com o maligno. Pode ser que na vez anterior se tenha entupido o hissope, avariado o crucifixo ou faltado à água a bendição, quem sabe, o senhor prior não costuma partilhar as dúvidas, se dúvidas assaltam o ministro de Deus, isto é um incréu a pensar, a força da fé move montanhas, sempre ouvi dizer, a Celeste pode ter perdido a fé com a fraqueza, e sem fé não adianta, é um esforço inglório, o certo é que o senhor padre volta a entrar naquela casa, se pode chamar-se assim ao sítio, mal nunca faz, senhor eu não sou digna de que entreis na minha morada, isto é uma forma de dizer, a Celeste refere-se a Deus que está em toda a parte, mas quando vem acompanhado do seu representante há-de infundir maior respeito, as pessoas humildes dizem estas coisas, o senhor padre mergulha bem o hissope, asperge-o com vigor, desenha cruzes, vai-se ao demo com o latim e as mãos, põe as pessoas a rezar o terço que a irmã Lúcia recomenda contra o comunismo, que também resulta com os espíritos, tudo obra do demo, deixa a reza para os paroquianos e sai da refrega exausto à procura da gemada com vinho, açúcar e nódoas para a batina, sem saber se os espíritos encurralados no corpo frágil obedeceram à ordem de expulsão, onde resistiam acossados à parafernália de alfaias sagradas e pias intimações.

As pessoas esperam na rua alheias ao perigo de serem apanhadas para refúgio dos espíritos em fuga. Nessa noite a máquina de costura inexistente permanece silenciosa e quieta, calam-se as vozes das almas penadas, a Celeste dorme bem pela primeira vez em muitos dias, depois da canja que lhe levaram. Se os espíritos não saíram estão debilitados.

A Celeste, com pouco alento, é certo, volta à horta e à igreja, o exorcismo resulta. Finou-se algumas semanas depois, completamente curada e liberta de espíritos malignos.

22 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

No início da década de sessenta, ali na Covilhã (Crónica)

Não sei como era a Covilhã em 1186, elevada a vila por foral de D. Sancho I, nem em 1763 quando o Marquês de Pombal ali criou a Real Fábrica de Panos que havia de lhe traçar o perfil industrial e torná-la um local de misérias e grandezas conforme as crises cíclicas a que ficou condenada. Das grandezas fruíam os industriais que, duas gerações depois, abriam falência enquanto outros surgiam para recomeçar o ciclo. Das misérias foram vítimas gerações de assalariados que ora fugiam das aldeias em busca do magro salário na indústria, ora regressavam à fome e às courelas em Boidobra, Peraboa, Ferro, Verdelhos, Orjais, Canhoso, Cortes, Teixoso ou Casegas.

Era este revezamento entre o campo e a fábrica que não deixava enraizar a consciência proletária mas atraía para a política alguns rurais feitos operários. Descrito por Ferreira de Castro, em «A lã e a Neve», não creio que Horácio, pastor, fosse o paradigma dessa alternância que dos rurais fazia operários têxteis e os reenviava para as aldeias e para a enxada quando a crise de novo se instalava. Não era o amor à terra que os movia, eram as fábricas que os expulsavam.

As pessoas fazem as cidades mas estas são as suas circunstâncias, que as moldam e lhes imprimem o carácter, os hábitos e o gosto. Na cidade não havia a courela que dava aos operários a ilusão de terem garantidos os alimentos e a casa de telha vã que os abrigava da chuva e da neve, e a vida na cidade é sempre cara para quem não lhe pode fazer face. Por isso caminhavam horas antes de iniciarem longos turnos em alguma das numerosas fábricas, que seguiam o leito das ribeiras Carpinteira e Degoldra, que enchiam de ruído a cidade que sobe pela encosta no sueste da serra da Estrela.

Em 1961arrastava-se no Tribunal da comarca a falência da Fábrica Alçada, outras agonizavam, e preparava-se para laborar a Nova Penteação que, com a evolução dos teares mecânicos e a consequente redução de mão de obra, havia de durar décadas até seguir o destino a que, também ela, não seria poupada.

A Covilhã reciclava o trapo e tecia com fios de lã o estambre, com variados padrões e cores, saído da arte e engenho dos debuxadores. O delegado do Instituto Nacional de Trabalho nunca negava aos patrões o aumento das horas de laboração, se as encomendas cresciam, nem as autorizações para despedir, quando diminuíam, nem as prendas que, em qualquer caso, sempre recebia.

O Têxtil e o Avante acusavam o delegado do ministério das Corporações dos subornos e acicatavam a revolta, a polícia espiava, o tenente Gaspar assustava a pequena burguesia na esquadra da PSP, a PIDE prendia os comunistas, mas era no interior das fábricas que a revolta crescia, abafada pelo ruído dos teares e pelo medo da polícia e do desemprego.

Foi nos dois anos lectivos, de 1961/63, que me fiz assinante do Jornal do Fundão, onde a coragem de António Paulouro fez a pedagogia democrática que manteve a esperança num 25 de Abril que ainda vinha longe.

Nas fábricas, o PCP lutava para se impor e nos cafés conspirava a burguesia mais culta.
No Montalto, onde pontificava o distinto advogado Guilherme Raposo de Moura, fiz o meu tirocínio político com o João Heleno, ecónomo do sanatório, o médico Sá Lima, o bibliotecário da Gulbenkian, Abel Leite da Silva, o Ernesto da Farmácia, o professor primário Barata, futuro deputado constituinte, e o Ribeiro dos Tabacos a quem a PIDE mandou retirar a representação das cervejas, primeiro, e a dos tabacos, depois, sem nunca se render. Nos anos que vieram chegaram novos democratas que o tenente Gaspar se encarregou de intimidar, os bufos de denunciar e a PIDE de prender.

Um pouco abaixo do Largo do Pelourinho, no Café Solneve, o Jerónimo dos Santos, o Patacho e o Teixeirinha, que a democracia viria a fazer presidente da Câmara, eram o núcleo de outro grupo anti-salazarista ligado ao primeiro por grande cordialidade a que não eram alheias as qualidades de Raposo de Moura, uma referência na cultura, no foro e na política, personalidade de cativante simpatia e enorme prestígio.

A escola técnica, o liceu até ao 5.º ano e o colégio Moderno, até ao 7.º, dirigido por um grande democrata, Castro Martins, constituíam a escassa oferta de ensino que contava ainda com 45 professores do ensino primário.

Na Covilhã, nos dois anos que ali vivi antes de rumar ao distrito de Lisboa, ameaçado de demissão pelo Director Escolar, Silva Mendes, se não abandonasse a cidade ou as companhias, com dois polícias a seguirem-me e o padre Morgadinho a denunciar-me à PIDE, apercebi-me dos mecanismos de repressão da ditadura, da cumplicidade do clero com o fascismo e da dureza da vida dos operários.

Da Covilhã, trouxe a enorme carga afectiva que dos 18 aos 20 anos moldaram o homem e o cidadão que jamais deixei de ser. Saí da Covilhã compelido pelos biltres da ditadura mas a Covilhã nunca mais saiu de mim. Ainda hoje, quase meio século volvido, recordo numerosos amigos, muitos já falecidos, mestres da escola técnica, docentes de todos as instituições de ensino, taxistas, prostitutas, barbeiros, engraxadores, o Artur Campos, proprietário do Montalto que mandava ao primeiro andar um empregado avisar-nos da presença da polícia, e, sobretudo, os meus alunos que apareciam na escola dos Penedos Altos, com sono e fome, vindos das Lameirinhas, Borralheira e Lameirão.

Recordo o Leal, o ardina que uma noite me guardou, sob a camisola, o jornal habitual que, à largura de toda a primeira página, anunciava em letras garrafais um título em caixa alta: «Ontem reuniu a Assembleia Nacional para apreciar as contas gerais do Estado relativas ao ano findo». A ausência de um «t», nas contas, pôs o país a rir e a polícia a confiscar o diário mas o Leal, fiel e cúmplice, guardou um exemplar para o cliente de todos os dias.

A Covilhã, urbe que 350 metros de altitude separam da base até ao topo, a caminho das Penhas da Saúde, ansiosa por chegar à Torre, a serpentear a Serra da Estrela, tem velhas tradições democráticas. Foi um alfobre de gente que aprendeu na ditadura os caminhos da resistência, é hoje uma cidade de 140 anos na vanguarda do progresso a desafiar a interioridade e a vencer a batalha do desenvolvimento.

27 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

A visita pascal_1 (Crónica)

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia o mesmo, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão enquanto o padre se ocupava da cruz e recolhia-a depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protector das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.
Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros para depois os revezarem. Genuflectiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e regada a fé a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.

23 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

A festa de santa Filomena_1 (Crónica)

No início da década de sessenta um brasileiro bem sucedido voltou ao Cume para rever amigos e embasbacar os autóctones com o sucesso. Trouxe presentes, distribuiu pentes e rebuçados, lançados aos garotos à rebatina e, à igreja, ofereceu um guião e dois pendões que mandou vir do Porto, uns paramentos a estrear e dinheiro suficiente para a festa de Santa Filomena.

A bem-aventurada tinha provas dadas na cura de animais, designadamente ovelhas, que a gripe dizimava e estropiava no inverno e, quanto maior a desgraça, mais crescia o pasmo pelas que escapavam e maior era a devoção. Tinha sido o caso, nesse ano, por causa das chuvas e dos sempre insondáveis desígnios divinos. Era a primeira homenagem pública, a augurar o início de uma tradição e de um amparo ainda maior. A festa há muito que a merecia a santa, mas os proventos da arrematação dos pés e orelhas de porco, de duas ou três dúzias de ovos e de alguns enchidos provenientes do pagamento de promessas, mal chegavam para lhe pagar a missa e comprar algum adorno.

Valera a generosidade do brasileiro que pôs os paroquianos em excitação, com recados enviados a parentes e amigos e data da festa anunciada.
Com farinha peneirada, ovos guardados e açúcar comprado, apalavrada a banda da Parada e encomendado o foguetório no Porto da Carne, a uma semana da festa, veio o pároco anunciar, durante a missa, que Sua Santidade tinha declarado falsa a santa, sacrílega a devoção e, assim, era impossível a festa. Manifestou tristeza suficiente, por solidariedade para com os paroquianos, que da decisão papal não cabia recurso. Ainda propôs outro santo, com certificado de garantia, de sexo diferente e idêntica virtude, para a substituir nos festejos. Deixou à reflexão dos paroquianos. E do brasileiro, subentendia-se. Qual quê? Goradas as expectativas, enxovalhada a crença, arruinadas as orações cuja permuta de intenções não admitia retroactividade, só restava um vago ressentimento e uma sensação de injustiça e impotência.

O brasileiro a quem a generosidade assegurara lugar cativo na primeira fila da igreja ficou lívido, primeiro, a vacilar na fé e nas pernas, ressentido depois e a remoer vingança.

Impediu-o o medo do Inferno e a inutilidade de demandar o papa de exigir a devolução do óbolo, ficando-se pela desolação e algumas obscenidades com sotaque, enquanto os paroquianos se dividiram entre o brasileiro e os sacramentos, a devoção e o padre, o papa e a santa, acabando por regressar ao redil e à fé dirigida de Roma. Apenas o brasileiro, por brio, passou a frequentar a missa em Vila Fernando, com outro padre, no tempo em que ainda se demorou. Manteve a devoção mas trocou de corretor.

Ninguém percebeu porque se demitiu do altar uma santa que lograra prestígio igual ao de santa Bárbara a amainar trovoadas e maior que o de S. Sebastião que, para além de mártir, não se lhe conhecia na paróquia outro feito que o recomendasse, não desfazendo, é claro, na seta que o trespassava em perpétuo sofrimento. Era difícil rezar a santos que não faziam milagres quando se apeava quem os fazia.
Creio que ao medo do castigo divino e à falta de alternativas se ficou a dever a persistência na fé, posta em causa de forma demolidora por motivos insuficientemente explicados e com despesas já feitas.

Não estralejaram foguetes, não se ouviram os acordes da banda, não se provaram as guloseimas. A imagem, ferida na estimação e na virtude, foi parar à sacristia, por decreto, condenada à solidão e ao esquecimento, à espera de que algumas gerações de crentes se finassem para reaparecer, quem sabe, com outro nome e renovados poderes. Assim a fé e a sociedade o consintam ainda. Os mordomos ficaram designados para as próximas festividades conservando o prestígio e as prerrogativas.

A santa e o brasileiro nunca foram ressarcidos da desgraça.

15 de Setembro, 2010 Fernandes

Santos Papas

São mais de 300 páginas com centenas de histórias pouco santas sobre a vida sexual dos Papas da Igreja Católica. O livro do jornalista peruano Eric Frattini, recém-chegado às livrarias portuguesas e editado pela Bertrand, percorre, ao longo dos séculos, a intimidade secreta de papas e antipapas, mas não pretende causar “escândalo”. Apenas “promover uma reflexão sobre a necessária reforma da Igreja ao longo dos tempos”.

Alguns morreram assassinados pelos maridos das amantes em pleno acto sexual. Outros foram depostos do cargo, julgados pelas suas bizarrias sexuais e banidos da história da Igreja. Outros morreram com sífilis, como o Papa Júlio II, eleito em 1503, que ficou na história por ter inventado o primeiro bordel gay de que há memória.

Nos conventos rezava-se para que morresse. João XII era bissexual e obrigava jovens a ter sexo à frente de toda a gente. Gozava ao ver cães e burros atacar jovens prostitutas. Organizou um bordel e cometeu incesto com a meia-irmã de 14 anos. Raptava peregrinas no caminho para lugares sagrados e ordenou um bispo num estábulo. Quando um cardeal o recriminou, mandou-o castrar. Um grupo de prelados italianos, alemães e franceses julgaram-no por sodomia com a própria mãe e por ter um pacto com o diabo para ser seu representante na Terra. Foi considerado culpado de incesto e adultério e deposto do cargo, em 964. Foi assassinado – esfaqueado e à martelada – em pleno acto sexual pelo marido de uma das suas várias amantes.

* Ler aqui.

9 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

O reverendo Luís e a procissão (Crónica)

Ao Luís não eram conhecidas virtudes públicas quando terminou o curso de engenharia e anunciou que tinha ouvido um chamamento. Julgaram que mencionava alguma oferta de emprego que um recém-licenciado sempre almeja. Nada disso. Rumou ao seminário e era vê-lo, quando regressava, nas férias, embevecido, a acolitar o padre nas cerimónias pias.

Não tardou, o tempo passa depressa, que o fizessem diácono e, a seguir, padre. Com que orgulho passou a substituir nos serviços litúrgicos o padre Manuel que, em Agosto, se deslocava ao Brasil impelido pelo gosto da viagem ou pelo desvelo paternal, segundo murmuravam os paroquianos desconfiados de uma filha naquelas paragens.

Um dia o João Nunes, antigo colega e também engenheiro, encontrou o reverendo Luís e disparou-lhe:

– Então como vai o engenheiro?

– Engenheiro, não, padre se faz favor, porque engenheiros há muitos e padres poucos.

– E o que é preciso para ser padre, retorquiu o primeiro, com visível boa disposição.

– É preciso ter juízo.

– Que grande cunha !…

E o diálogo terminou abruptamente, com o jovem clérigo amuado.

Começou aí o azedume do reverendo, emproado com as vestes talares e o colar romano que lhe cingia o pescoço, indiferente à canícula, persuadido de que a batina encobria os pecados e o engrandecia aos olhos dos profanos.

Alguns dias depois, na procissão da Senhora da Barca, o reverendo Luís comandava, no trajecto do costume, o cortejo, as orações e os cânticos quando, junto da esplanada do Café da Candidinha, se tresmalhou do pálio e se aproximou dos fregueses, crucifixo em riste, colérico, para os desancar evangelicamente, enquanto os devotos desfrutaram a pausa na fé e no percurso assistindo ao espectáculo profano.

Os alvos foram antigos colegas de colégio quando este era o único estabelecimento de ensino secundário no concelho. O João Nunes, o Aristides e o Zé Vaz aguentaram em silêncio a descompostura de quem não lhes tolerou a troca da devoção pela cerveja de barril. Foram admoestados furiosamente, seus hereges, não respeitam o padre, não se ajoelham à passagem da procissão, ofendem Deus Nosso Senhor, não têm consideração pela Senhora da Barca, indignos, pagãos… e, só depois de serenado com o espectáculo pio, o presbítero se recolheu ao pálio e à procissão que prosseguiu perante a assombro de alguns paroquianos e o gáudio de muitos outros.

Os hereges ficaram algum tempo mudos, mal refeitos da censura e do medo de levarem com a cruz, brandida pelo irado reverendo que, no delírio, parecia querer usá-la à vista dos devotos. Só quando a cauda da procissão se sumiu, as pernas deixaram de tremer e a calma voltou, soltaram os desabafos reprimidos que até a mãe do padre abrangeram.

A ligação entre os antigos colegas de colégio excluiu do convívio o presbítero e foram parcas as relações que ficaram. As férias terminaram e cada um foi à vida, enquanto o reverendo Luís regressou à paróquia da diocese de Lisboa onde exercia as funções a que o alegado juízo o predestinou.

No ano seguinte, no dia canónico, a procissão da Senhora das Neves repetir-se-ia com o padre Manuel no Brasil e o reverendo Luís a substituí-lo. Apenas os réprobos do ano anterior evitaram o café, não fosse o diabo tecê-las, e repetir-se a insólita cena.

A procissão teve a precedê-la a missa, como era uso, onde o reverendo Luís enalteceu as virtudes da santa e verberou o comportamento de paroquianos ausentes, indiferentes à procissão, capazes de se manterem sentados enquanto o andor, o pálio e a cruz viajavam pelas ruas. Soube-se que foi pobre a homilia e grande o acinte que moveu o oficiante, capaz de desancar os réprobos se, acaso, os visse perto do cortejo pio, sem se rojarem de joelhos à passagem. Não consta que os devotos se tivessem deixado encolerizar, apesar de acirrados, pelo jovem e piedoso presbítero que, a seguir, presidiu à procissão.

Pelas ruas ainda se viam colchas garridas às janelas quando o andor, o pálio e outros adereços desfilavam pelas ruas da vila. A procissão progredia vagarosamente com as orações e os gestos da coreografia de sempre. O Valdemar lançava foguetes em honra da santa, longe do cortejo, para evitar que as canas atingissem os devotos, indiferente aos incêndios que podia atear e a que, como bombeiro, teria de acudir.

Na esplanada do café da Candidinha o reverendo Luís viu de longe uma mesa ocupada onde a experiência lhe dizia que não morava a devoção. Ao chegar próximo do local, abandonou o pálio e correu de cruz erguida a admoestar os incréus, seus hereges, seus malcriados, não respeitam Deus, não estimam a santa, não veneram a cruz, não temem o Inferno, não conhecem a cólera divina e…, esgotada a pia admoestação, cego de raiva e fervor pio, regressou ao pálio e aos cânticos para maior glória da Senhora das Neves.

Na esplanada, um casal estrangeiro, surpreendido, sem nada ter percebido, hesitava em dar o iogurte ao filho.

8 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

Jesus cansado da cruz (Crónica)

Um dia o enorme crucifixo da velha igreja ganhou vida. Genuflectida a seus pés uma beata debitava a salve-rainha enquanto, do lado direito, um pouco atrás, antes do transepto, outra beata rezava padre-nossos junto ao altar da Virgem Maria. Era a força do hábito. Trocavam-se orações por pedidos sem reclamação dos ícones nem reparo dos mendicantes, enquanto o padre vociferava latim e dizia a missa.

O senhor Jesus já por ali andava dependurado, há uns séculos, a suportar a crueza dos espinhos e o mau aspecto das chagas que nunca mais saravam. Enegreceu com o fumo das velas, suportou os odores de quem cuida melhor a higiene da alma do que a do corpo, ouviu gente em desespero e pedidos de vingança de almas danadas que lhe solicitavam o infortúnio alheio.

Conheceu centenas de padres e numerosos bispos a quem nunca fez reparo pelo latim periclitante, a pobreza das homilias ou a riqueza dos paramentos. Ouviu confissões eróticas sem mover a tanga, safadezas incríveis sem se ruborizar, misérias de vidas e vidas de miséria, sem um suspiro, um grito ou um vómito. A tudo o senhor Jesus se habituou, até às versões diferentes a respeito da sua própria vida.
Ouviu um bispo irado a condenar os jacobinos, outro a  amaldiçoar os judeus, e, todos, conforme as épocas, a execrar a Revolução Francesa, a república, o laicismo, a apostasia, a blasfémia e o preservativo.

A tudo o senhor Jesus assistiu, em silêncio, no bronze em que o esculpiram. Até um dia. Até ao dia em que o padre apostrofou os incréus que se afastavam do culto, faltavam à santa missa e se furtavam à eucaristia; admoestou as donzelas impacientes que não esperaram pelo casamento; ameaçou os casais que substituíam a castidade pelo preservativo e contrariavam os desígnios de Deus quanto aos filhos. Jesus despertou no preciso momento em que o oficiante explicava que naquelas rodelas de pão ázimo ia ele próprio, em corpo e sangue, pousar nas línguas ávidas de quem guardara jejum desde a meia-noite, bem confessado, melhor arrependido e excelentemente penitenciado.

Foi então que arrancou os cravos, deu um piparote na coroa de espinhos, abandonou a cruz e esgueirou-se por entre os devotos sem ninguém notar, nem a beata das salve-rainhas, nem o padre que administrava a partícula, nem os comungantes habituados a fechar os olhos. Ninguém reparou que no seu lugar ficou apenas um sinal mais, em raiz de nogueira, com quatrocentos anos, aliviado do peso e do freguês.

Jesus não mais foi visto.

31 de Agosto, 2010 Carlos Esperança

Maria_1 (Crónica)

Se a alva e meiga Senhora que, há cerca de noventa e três anos, poisou numa azinheira, vestida com um manto de luz, para gáudio de três inocentes pastorinhos, por erro de navegação celeste houvesse poisado numa azinheira errada e encontrado um só pastor, mancebo de vinte e tantos anos; se a falta de energia lhe tivesse apagado o manto, sendo a beleza tanta quanto dela disseram as criancinhas, e entre o manto e o corpo nada houvesse, como é de crer, por ser a luz que resplandecia o único vestido que a cobria, poderia o dito pastor chamar-se José, como o humilde e humilhado carpinteiro de Nazaré, e a história seria outra.

Se o dito pastor, mancebo de vinte e tantos anos, na flor da idade e do desejo, impelido pelos sentidos, fosse tão rápido e eficaz a tomar a dita Senhora como o era a conduzir o rebanho, não seria o papa, muitos anos depois, a entrar em êxtase; seria ele, pastor, ali e então.

E, em vez de serem criancinhas a ouvir “eu sou a Nossa Senhora”, pitoresca apresentação que só ouvi a um Sargento, apresentando-se aos soldados, “eu sou o nosso primeiro Vieira”, em vez dessa apresentação que os exegetas atribuem à Virgem Maria, teria ouvido o pastor, mancebo de vinte e tantos anos, mais afeito ao rebanho do que ao corpo feminino, à guisa de apresentação e despedida, com voz lânguida e conformada, eu sou Maria.

Tudo leva a crer que a referida Senhora, de tão rara beleza, teria esquecido a conversão da Rússia, poupado o dito pastor à oração e, em vez de duas ou três aparições, poderia tentar outras, sabendo embora que não era a azinheira certa aquela em que poisava, mas adivinhando à sua sombra o pastor, mancebo de vinte e tantos anos.

Diz-me um amigo que o País devia duplicar o número de azinheiras para igualmente duplicar as probabilidades de novas aparições. Tenho a esse respeito opinião diferente, tese igualmente respeitável, embora nestas questões pouco valha a dialéctica, impossível que é formular a antítese, pois a ciência certa nunca a teremos. Penso que o caminho, o caminho correcto, está em duplicar o número de crianças que prefiram à escola a oração e se dediquem à pastorícia, de preferência longe dali, que os milagres raramente se repetem perto, e se acontecem, como há sobejas provas na Ladeira e noutros sítios, nunca são reconhecidos, por se desconfiar da abundância e se temer a concorrência.

E se no futuro apenas houver pastores crianças, com joelhos no chão e olhos no Céu, nunca mais haverá qualquer pastor na flor da idade e do desejo, mancebo de vinte e tantos anos, a ofender a virtude e a mudar o sítio às azinheiras, a perturbar a circulação celeste e os milagres.

27 de Maio, 2010 Carlos Esperança

O exorcismo da Celeste (Crónica)

Em terras da Beira, depois da guerra, a gratidão para com a Senhora de Fátima, pela afeição a Portugal, estendia-se ao Senhor Presidente do Conselho por nos ter livrado do conflito. No Cume sobrava piedade e faltava comida. Estavam no fim os anos quarenta e os Portugueses longe de começarem a ser gente.

A Celeste morava ao cimo do povo, sozinha, e cismava que se matava. Via-se que não regulava bem da cabeça e adivinhava-se a fome que a apoquentava. Suspeitaram os vizinhos de mau-olhado e a Ti Catrina, calhada nas benzeduras para tal moléstia, já a tinha ido visitar com outras mulheres embiocadas no xaile e os rostos sumidos na copa de enormes lenços pretos. Das conversas delas nada se disse mas ouviu-se na rua a ladainha:

«Dois to deram, três to tirarão,
Foi S. Pedro e S. Paulo e o apóstolo S. João.
Sant’Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus;
Assim como isto é verdade,
Livre este corpo de ares, olhares e todo o mal.
Em louvor de Sant’Ana e Santa Iria…
Padre-nosso, ave-maria…»

Muitos padre-nossos e ave-marias depois, sem abrandar o mal, as mulheres mais velhas concluíram que deviam ser espíritos que atenazavam a bendita alma da Celeste, tão temente a Deus que ela era, mas nestas coisas de espíritos ruins são estes que escolhem a morada e, embora a oração lhes dificulte a entrada, está provado que não é intransponível a barreira.

A adensar a suspeita ouvia-se na habitação, durante a noite, o barulho de máquina de costura, que não havia, a trabalhar, a perturbar o sono e a aumentar a angústia. À porta juntavam-se pessoas vindas da igreja a ouvir o som que os espíritos produziam. Os poucos que não ouviram, apesar da atenção e do silêncio, conformaram-se com a deficiência auditiva e renderam-se à maioria.

O Senhor Padre pode ter desconfiado do diagnóstico, o Senhor António Bernardo dizia que ela não batia bem da bola, podia até ser dos espíritos, a senhora professora aconselhou um médico, que disparate, o que sabe um médico destas coisas e onde é que o há, mas o povo na sua infinita sabedoria já tinha o veredicto, eram espíritos, só podia ser, falava-se de uma avó falecida há muitos anos, a voz tinha sido reconhecida, faltaram-lhe algumas missas ao trintário na encomendação da alma, não se perde nada em benzer a casa e deixar algum latim – conformou-se, acossado, o Padre Pires –, dizem-se as missas em dívida e logo se verá.

A Celeste é mulher e é destino das mulheres serem possuídas, os espíritos malignos aproveitam e, depois de entrarem, são difíceis de expulsar. É um combate para senhores párocos, ou mesmo para um reverendíssimo bispo se as posses da vítima e a malignidade o aconselham. Pouco avezado a tais pelejas, mas com habilitações canónicas e compleição adequada à luta, bem se esforça o padre a desalojá-los. Quem julgue que a força da cruz e do divino devem bastar não conhece os espíritos e o furor que transmitem às mulheres possessas, levando à exaustão o exorcista que não raro precisa de várias tentativas para se fazer obedecer. Fracassa e fica extenuado, à primeira, o Padre Pires, valendo-lhe a gemada com vinho e açúcar que o aguarda, enquanto a ceia e o breviário lhe não retemperam as forças e devolvem a serenidade.

A Celeste não melhora. Continua a ouvir vozes que desconhece, definha. Alguns dias após, no regresso do Carapito, onde tinha ido levar o viático a um moribundo, volta o Padre Pires à peleja com o maligno. Pode ser que na vez anterior se tenha entupido o hissope, avariado o crucifixo ou faltado à água a bendição, quem sabe, o Senhor Prior não costuma partilhar as dúvidas, se dúvidas assaltam o ministro de Deus, isto é um incréu a pensar, a força da fé move montanhas, sempre ouvi dizer, a Celeste pode ter perdido a fé com a fraqueza, e sem fé não adianta, é um esforço inglório, o certo é que o Senhor Padre volta a entrar naquela casa, se pode chamar-se assim ao sítio, mal nunca faz, Senhor eu não sou digna de que entreis na minha morada, isto é uma forma de dizer, a Celeste refere-se a Deus que está em toda a parte, mas quando vem acompanhado do seu representante há-de infundir maior respeito, as pessoas humildes dizem estas coisas, o Senhor Padre mergulha bem o hissope, asperge-o com vigor, desenha cruzes, vai-se ao demo com o latim e as mãos, põe as pessoas a rezar o terço que a Irmã Lúcia recomenda contra o comunismo, que também resulta com os espíritos, tudo obra do demo, deixa a reza para os paroquianos e sai da refrega exausto à procura da gemada com vinho, açúcar e nódoas para a batina, sem saber se os espíritos encurralados no corpo frágil obedeceram à ordem de expulsão, onde resistiam acossados à parafernália de alfaias sagradas e pias intimações.

As pessoas esperam na rua alheias ao perigo de serem apanhadas para refúgio dos espíritos em fuga. Nessa noite a máquina de costura inexistente permanece silenciosa e quieta, calam-se as vozes das almas penadas, a Celeste dorme bem pela primeira vez em muitos dias, depois da canja que lhe levaram. Se os espíritos não saíram estão debilitados.

A Celeste, com pouco alento, é certo, volta à horta e à igreja, o exorcismo resulta. Finou-se algumas semanas depois, completamente curada e liberta de espíritos malignos…

in Pedras Soltas

2 de Abril, 2010 Carlos Esperança

Homem armadilha de deus armadilha de Homem (Crónica)

Por
Sílvia Alves

– E tu quem és?
– Eu sou filho de deus.
– Mau!
– Sou! E estou cansado de ser. Cansado das dúvidas, das gargalhadas, de levar com a porta na cara!
– Meu filho, a fé é uma coisa extraordinária mas nem sempre funciona: uns têm, outros fingem, uns vêem caminho outros vão atrás. Enganam-se uns aos outros, sempre pude contar com esses. Só não contei que tu crescesses, que tu próprio duvidasses e que a tua mãe se fartasse destes dois mil anos de sombra. Ela era feliz com esta história de nasceres em cada Dezembro, ser virgem, mãe…
– A chorar a minha morte em cada Primavera. Feliz? Condenada. Felizmente, desde que lhe enviaste o Gabriel, sabe mais de anjos que tu próprio. E achas que a minha vocação é o teatro? Figurante nu, numas palhas? Ainda hoje tenho alergia. E o suplício de, tímido como sou, andar por aí a falar com toda a gente. E a farsa da morte, julgas que não dói? Sinto dores nas mãos e nos pés, ao ver-me pregado em cruzes por todo o lado. Estou farto!
– A morte são apenas três dias.
– Pai, estou farto das tuas alucinações! Com a idade podias ter juízo.
– Desistir, queres tu dizer? Depois de todo o trabalho que tive? Não foram apenas sete dias da estreia, foi uma eternidade a pensar a encenação! Meu filho, porque me abandonas?
– Porque posso. Vou tomar uma mulher, levá-la ao céu como se não houvesse deus neste mundo nem no outro, apenas homens e mulheres.
– Não podes levar pecado para o céu.
– Não há céu sem pecado. Tu sabes isso melhor que ninguém.
– Achas que eles estão a gostar da peça?
– Sei lá, estão tão calados…
– Estes assuntos da religião são muito delicados.
– Está muito escuro. Aqui deste lado não se vê nada.
– Não me convém acender mais luzes, resulta melhor na penumbra.
– Qual é a próxima peça?
– É a mesma, só mudam os actores.
– Devias fazer algo novo.
– Então, tu dizes ser filho de deus?
– Serei, mas já nem eu tenho fé!
– Eu acredito em ti.
– E tu quem és?
– Eu sou deus.
– Mau!
– Sou! E estou cansado de ser. Cansado das dúvidas…