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Categoria: Literatura

24 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

O Cume_1 (Crónica)

A aldeia tinha água e luz, a primeira provinda exclusivamente de uma fonte de mergulho, donde jorravam excedentes para o bebedoiro do gado e para a presa onde as mulheres lavavam roupa, e a segunda, do Sol e das estrelas, reflectida pela lua, ou nascida na torcida dos candeeiros a petróleo ou no pavio de candeias de azeite. Mesmo à Sagrada Família que todas as noites viajava de uma casa para outra vizinha, em perpétuas voltas pela aldeia, era o azeite que lhe iluminava as formas e a virtude que as famílias contemplavam através do vidro da caixa de cerejeira. No verão as coisas complicavam-se, tendo as mulheres que deslocar-se à ribeira, para lavarem a roupa, a dois bons quilómetros de distância. Quanto ao gado lá se ia repartindo a água da fonte, bebendo de um balde, à tardinha, primeiro as pessoas que o quisessem e, a seguir, os animais, balde de novo mergulhado para trazer nova água que ora uma burra, ora uma vaca, sobretudo esta, rapidamente esvaziava. Se entretanto acontecia alguém mais querer dessedentar-se, o balde era primeiro enxaguado, essa água vertida numa pia para galinhas, para aproveitar, e, só depois, outra vez cheio, posto à disposição do sequioso que ali mergulhava a boca e o nariz, até mais não querer, dispensado do assobio que estimulava as vacas. As pessoas tinham precedência sobre os animais.

O forno cozia uma vez por mês, desamuado sucessivamente por todos e com a quantidade de lenha fornecida num sistema que sempre funcionara, na razão directa do número de pães de cada família, marcados para evitar confusões. Os tabuleiros vinham de casa onde fora peneirada a farinha, feito o fermento e amassada. Chegados ao forno abendiçoava-se a massa que o fermento e a oração fariam crescer, fingia-se, tendia-se e punha-se a cozer.

A criança que eu era no fim da década de quarenta recorda três homens a quem reconhecia importância – o presidente da Junta, o senhor do Correio e o sacristão. Hoje havia de julgar o alfaiate ou o merceeiro de maior relevância social mas, então, no meu reduzido universo de valores, com o senhor pároco a viver noutra freguesia, sem a obrigação de pedir a bênção a quem quer que fosse, nem a de beijar mãos, por não ser hábito doméstico e gozar do privilégio de ser filho da professora e de um funcionário de finanças, eram eles os mais importantes.

O presidente da Junta era o sr. José Simão. Tratava da horta como os outros, mas era presidente, o primeiro que eu conhecera. A professora precisava da sua assinatura no recenseamento escolar, mas era ele a deslocar-se à escola, acompanhado da mulher, que lhe desenhava o nome pois ele não o encarreirava – segundo ambos alegavam – apesar do treino a que se submetera, começando a derrapar no José, a que sempre faltava o o ou o s e, invariavelmente, o acento, para depois se lhe varrer o i ou o m e aquele endiabrado til que exornava o complicado Simão. Pronto, assinava a mulher, arrumava-se a questão, faça favor de desculpar, minha senhora, o seu marido vem sexta-feira, ainda bem, nesta altura do ano sai da repartição a horas do combóio, são dezasseis tostões, não precisa de vir a pé, são para riba de duas léguas, ainda chega de dia, até amanhã minha senhora.
Um casal simpático aquele, o único que cultivava linho na aldeia e que me deu a oportunidade de ver como uma frágil planta se transforma em fio. Admirei a barrela e a cardação, vi o que fazia a espadela e contemplei a planta que fora a acabar fiada na roca e dobada.

O do Correio era o sr. António Bernardo a cuja casa eu ia levar as cartas e perguntar diariamente pelo correio. Era um camponês que tinha um braço aleijado a que devia uma pequena reforma e o retrato de um jovem de vinte e poucos anos vestido de sargento, como compensação do ferimento na primeira grande guerra. Era o único lavrador da aldeia com três vacas, integralmente pagas, uma burra e algumas ovelhas. Presidia por tradição, que o alvará da Câmara sempre confirmava, aos actos eleitorais.

Um dia acompanhei a minha mãe ao sufrágio durante uma forte chuvada, o que levou o sr. António Bernardo a perguntar respeitosamente por que se tinha incomodado, com um tempo daqueles, coitado do menino, se até já a tinha descarregado, informação cujo alcance me escapou, limitando-se a recolher o voto e a pousá-lo sobre a mesa. Percebi que já não era preciso introduzi-lo pois já lá estava, não aquele, que era impossível introduzir antes de chegar, mas outro igual, que tinha o mesmo valor e igual intenção. Disse mesmo que já estavam descarregados todos os eleitores mas que a lei obrigava a manter a porta aberta, e a lei é a lei, não acha Sr.ª professora, e para a respeitar e fazer respeitar ali estava ele, ninguém melhor que ele, até já fora presidente da Junta antes do José Simão, por isso só quando a hora canónica chegasse é que se fechava a porta e, nessa altura, é que pediria à Sr.ª professora para preencher uns papéis que era preciso, que ele não se ajeitava e os que estavam com ele ainda menos, no tempo deles não havia escola, o trabalho não era muito, todos tinham votado, graças a Deus, mesmo o Germano que Deus tem, se fosse vivo também não deixaria de votar ou, se o tempo estivesse assim e andasse com o gado, não se importava que nós o descarregássemos.

Era um bom homem, a quem o sr. Prior confiava a orientação do terço, designado por mês de Maria, que em Maio todos os dias tinha lugar na aldeia, a mando de Nossa Senhora e a rogo da irmã Lúcia, pela conversão da Rússia. Devia ser por igual delegação de poderes que lhe cabia a orientação da novena que todos os anos,  quando a canícula fustigava o renovo, despovoava a aldeia para ser rezada junto a uma pia que ficava a mais de um quilómetro, na quinta do sr. Morgado. Lembro-me bem dessas peregrinações, que acompanhei várias vezes com devoção, e da eficácia demolidora de uma dessas novenas que transformou o normal pedido de chuva numa trovoada devastadora com os crentes a queixarem-se do excesso de fé, da molha e dos prejuízos.

O sacristão era coxo. O nome verdadeiro encontra-se, se acaso o soube eu, arquivado na desmemória de sexagenário. Todos o tratavam por Ti Mijinhas.

Sempre julguei apanágio do múnus o cheiro dele, antes de saber que o efeito conjugado da incontinência urinária e da relutância ao banho era a causa necessária e suficiente de um odor que as pituitárias da época, muito mais conformadas e cristãs que as de hoje, assinalavam com nauseada tolerância.
Era ele que ajudava o sr. pároco a paramentar-se, cargo que à época conferia algum prestígio, se encarregava de agitar a campainha quando o sr. Prior passava com a hóstia em frente do Santíssimo, no sentido ascendente e no descendente, estridente toque que me levou muitas missas e cuidada averiguação a localizar. Eu julgava que era o efeito da passagem da hóstia à frente do sacrário que produzia o som, qual célula fotoeléctrica, antes de ter descoberto que o mesmo se devia à campainha com quatro chocalhos cruzados, agitada pelo sacristão, a razoável distância, no momento adequado das exéquias.

Mas era a eucaristia que enobrecia o homem pela singularidade das funções. Cabia-lhe acompanhar com a patena a trajectória das hóstias que do cálice eram transportadas pela mão do oficiante até à língua dos devotos, espécie de rede protectora a impedir que o corpo de Cristo caísse desamparado por alguma manobra mais infeliz ou desajeitada do oficiante, mera precaução para um eventual acidente nunca registado. Nesses momentos até parecia que a perna mais curta do coxo, que o sacristão sempre fora, se adequava melhor à função do que se ambas lhe tivessem crescido iguais.

Era ele que transportava a caldeirinha da água benta com o hissope mergulhado à espera que o sr. prior o sacudisse vigorosamente sobre os paroquianos para os aspergir e abençoar. Cabia-lhe ainda acender as velas e apagá-las, guardar as alfaias, dobrar e arrecadar os paramentos. Os trabalhos menos nobres, a limpeza da Igreja, o tratamento dos paramentos, a mudança da roupa aos santos e outras tarefas menores, de grande interesse para o culto e razoável benefício para a alma, eram destinados a mulheres que disso se encarregavam em obscura dedicação.
Já depois de dita a missa, enquanto se rezavam as últimas orações, uma espécie de IVA para prolongar o santo sacrifício, lá ia o Ti Mijinhas de bandeja em punho pedir para vários fins, conforme o domingo. O mais usual era o “costolado da oração” que anos depois a minha mãe me esclareceria tratar-se do “apostolado da oração”, o que não alterava o valor do óbolo nem confundia a devoção daquela gente pobre.

Fica fora desta crónica a Ti Ismelindra, corruptela de Ermelinda, nome que ela própria desconhecia ter, parteira voluntária a cujo currículo adicionou dois irmãos meus que naquela aldeia encontraram a nossa mãe na altura de virem ao mundo.
Mas é sobretudo uma pequena população analfabeta que resistia à miséria e a cinco orações diárias, que circulava descalça sobre a neve e a geada, por cima de silvas e tojos, que nunca usou relógio ou tomou banho, que pedia brasas para acender o lume, cujas casas eram muitas vezes de terra batida e de paredes sem reboco, que, para se poder vestir, vendia os presuntos do porco que criava, os queijinhos que fazia, pequenos rolos de manteiga que enfeitava com o cabo de uma colher, os molhos de agriões e meruges colhidos nos regatos, os ovos, e calcorreava duas léguas, para percorrê-las de novo no regresso com o pecúlio rendido na praça da Guarda, é essa população que um dia hei-de recordar, menos na fome que a consumia e nas carências proteicas que lhe dilatavam o ventre dos numerosos filhos, mas na sua solidariedade inexcedível e no espírito esmoler que a exornava. Talvez um dia.

18 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

A visita pascal_1 (Crónica)

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia o mesmo, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão enquanto o padre se ocupava da cruz e recolhia-a depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protector das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.
Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros para depois os revezarem. Genuflectiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e regada a fé a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.

17 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

Momento de Poesia

Dissertação sobre a morte de Joana d’ Arc…

Deixaste vencer-te pela desgraça que te bateu à porta,
quando te chamaram bruxa
e tu já sabias que aquele hálito a saber a podre
vinha para te anunciar a morte no patíbulo que
improvisaram para a História.
Não havia alternativa à tua rebeldia, que envergonhava
os homens que viviam da sorte incerta do jogo das espadas,
na sofreguidão do fragor das batalhas em campo aberto
ou cercando as muralhas das cidades, preparando
as tropas para o assalto final.
Por isso, obrigaram-te a vestir a roupa que usavam as mulheres,
antes de te queimarem viva, para que o destino se cumprisse
e o disfarce fosse esquecido,
e nem as cinzas do teu corpo foram poupadas, para que nada
restasse de ti, como se fosse possível imolar pelo fogo
a memória do teu povo.

a) Alexandre de Castro

15 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

Por quem andas de dó?_1 (Crónica)

Das andanças pelo país que cada promoção implicava na vida de um funcionário de finanças, contava-me meu pai que numa aldeia de Bragança, onde aguardou dois anos o regresso à Guarda e à família, era costume os homens exonerarem Deus da obrigação de os chamar à sua divina presença.

Eles próprios encarregavam-se de o fazer por mor da disputa das estremas de uma vinha ou da serventia que dava acesso a um lameiro; por velhas rivalidades de que os próprios esqueceram a origem e mantinham vivo o ódio; por causa da partilha da presa comum cuja água era escassa e muita a necessidade para o renovo.

Motivos não faltavam, nem vinho à mistura, para azedar os ânimos e brandir o sacho ou a roçadoira após breve troca de palavras e despachar para o outro mundo o menos lesto a sacar da arma ou mais desprevenido de munições.

Soía às vezes acabar conformado um cristão, vítima de moléstia que lhe levava a febre e o consumia, a quem aparecia o pároco com o Viático mas faltava o médico para o aliviar das dores e o salvar.

Não era diferente nas terras da Beira onde as bengaladas, acabado o vinho dos pipos, desfaziam a feira e rachavam cabeças com a facilidade com que nessa mesma manhã se negociaram as rezes e se cobrara o alboroque.

Pior era a navalha de ponta e mola trazida de Espanha, na candonga, e espetada à sorrelfa na confusão dos chapéus que voavam, das cabeças que se abriam e dos trambolhões que o desequilíbrio do corpo avinhado e o acidentado do terreno propiciavam.

Eram tempos duros e valia pouco a vida…

Nesse ambiente rural e violento ganha credibilidade o diálogo, naquela aldeia de Bragança, que meu pai me reproduzia. Perguntaram a uma rapariga que vestia de luto carregado:

– Então por quem andas de dó, Maria?
– Ai, por mê pai.
– Então quem to matou, Maria?
– Ninguém… foi Deus quem no apanhou à falsa fé na cama.

17 de Novembro, 2010 Carlos Esperança

A Senhora do Monte_1 (Crónica)

Nas aldeias da Beira Alta era hábito rezar, pelas intenções plenárias de cada mês, nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, ir ao confesso e à eucaristia e, assim, alcançar as indulgências exigidas para a salvação da alma. Podia parecer injusto pôr garotos a rezar por pecados dos adultos, mas já se sabia que outros garotos o fariam quando adultos se tornassem esses para apreciar os pecados. Ficavam as rezas para as mulheres, que sempre as fariam, para os que ainda não sabiam pecar e para os que, sabendo, já não podiam. Era assim, há meio século, e disso se não livrou a criança que fui. Além das devoções locais outras havia que se cumpriam em paróquias próximas, que os transportes não permitiam lonjuras, com dia certo e local aprazado. A Senhora do Monte era um desses destinos.

Guardo da infância o gosto por romarias. Os santos domiciliavam-se no alto dos montes para ficarem a meio caminho entre os devotos que lhes pediam e o céu que os atendia. Eram mensageiros dedicados, imóveis numa peanha, ouvindo queixas, aceitando petições, a aliviarem o sofrimento. Raramente eram solicitados além das suas posses e, se soía, resignavam-se os mendicantes. Quanto mais perto do céu, maior respeito infundiam, mais petições recebiam, maiores expectativas geravam. Eu ficava a imaginar do que seriam capazes os que habitavam no cimo de montanhas muito altas, que sabia haver, sem cuidar das dificuldades de acesso dos requerentes.

Durante o ano, os santos concediam graças que eram agradecidas em Agosto com foguetes, missa e uma romaria profana que irritava os padres e alegrava os santos. Mas, de tanto pedirem, foi-se Deus cansando de os ouvir, primeiro, desinteressaram-se os crentes de implorar, depois, ou, talvez, a sangria da emigração converteu em deserto o terreno fértil da fé. É com saudade que recordo as ermidas abandonadas que outrora atraíam à sua volta feiras e procissões em confronto dialéctico do sagrado com o profano numa síntese admirável de que só o mundo rural era capaz.

A Senhora do Monte pertencia à paróquia da Cerdeira. Às vezes os santos tomavam as dores dos paroquianos e geravam a desconfiança dos vizinhos, mas não era o caso, por ser de concelho diferente e não haver rivalidades entre as paróquias.

Saíamos da Miuzela do Côa, manhã cedo, descíamos a aldeia, passávamos pela capelinha de S. Sebastião, deixando à direita, encostada ao cemitério, a vinha do passal que, no tempo da República, Paulo Afonso comprou à autoridade administrativa, valendo-lhe a excomunhão eclesiástica, vingança do pároco que reclamava a vinha e o regresso da monarquia. Viveu o réprobo em paz, sem que o anátema o apoquentasse, até ao dia em que teve de pedir a desexcomunhão, para que o filho pudesse franquear o seminário, custando-lhe a canónica amnistia outra vez o valor da vinha.

À beira do caminho havia agricultores, inquietos com a romaria, a guardar os melões, que a rapaziada cobiçava, e, ao longe, entre giestas, lobrigavam-se cachopas, deambulando à espera do encontro apalavrado, talvez mesmo alguma coitanaxa aflita por tornar-se dona.

Íamos pela fresca e regressávamos tarde, de estômago menos vazio, com fritos e vinho a justificarem a jornada, esquecida a devoção, a tropeçar nas pedras em noites de lua nova. Atrás de nós via-se um clarão, vindo da Guarda, à distância de seis léguas, no alto do monte onde chegara a luz eléctrica, com a ermida de onde voltávamos perdida na escuridão da noite.

A Senhora do Monte há muito que não fazia um milagre de jeito mas tinha festa rija e um passado de respeito. Um dia o fogo subiu o monte impelido pelo vento e envolveu a capela, com gente aflita a orar. Abriram as portas e redobraram as orações, que em tempo de aflição se reza mais depressa para compensar a desatenção e acompanhar a ansiedade. Deixaram que a virgem visse o fogo e este a virgem. Foi então que as chamas baixaram e logo o fogo se deteve, enquanto, maravilha das maravilhas, prodígio nunca visto, começou o fogo a recuar e, à medida que a terra desardia, tornaram as plantas que a cobriam.

A Santa, por ter-se cansado ou perdido o jeito, renunciou aos milagres, mas os crentes não desistiram de a ver regressar ao ramo e fazer jus à glória antiga. Ainda assim, era muito solicitada por raparigas solteiras que lhe imploravam para as livrar da prenhez que em horas do demo pudessem ter contraído. Foi como contraceptivo de eficácia duvidosa que conheci a Senhora do Monte nos tempos em que calcorreei os caminhos que lá me levaram.

9 de Novembro, 2010 Carlos Esperança

O S. Roque_1 (Crónica)

Ficou-me de criança a impressão de que a ermida do S. Roque, na margem esquerda do Côa, estava alcandorada num monte enorme e que ao sacrifício da subida se deveria a recompensa dos milagres.

Hoje, ao passar na auto-estrada, sobre a ponte rodoviária, surpreende-me lá em baixo uma capela exígua abandonada num pequeno cabeço, com a vegetação a apropriar-se da área da devoção e dos negócios. Onde está um chaparro negociava burros um cigano, onde a Lurdes começava às dez a aviar copos de meio quartilho, para terminar às 3 da tarde com o pipo e a paciência devastados, medram giestas e tojos e o abandono tomou conta do espaço onde estava sediada a feira e se realizava a festa.

Onde os solípedes e as pessoas alcançavam não sobem ainda os automóveis.

Eu gostei, ainda gosto, de romarias. Mesmo com milagres cada vez mais raros, a acontecerem na razão inversa dos louvores, encontramos sempre caras que atraem afectos e nos devolvem memórias. Às vezes não são quem pensámos, os anos passam, são filhos, mas vale a pena, falam-nos do que nós sabíamos, são da terra que julgámos.

Há mais de cinquenta anos o Rasga foi ao S. Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela, as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao S. Roque, o Maravilhas curou-se, o Ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta.

O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos, mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do Medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente. Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era a mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao S. Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o S. Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.

E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque. O Rasga, mal chegou, pediu três notas pela burra a um da Parada que lhe ofereceu duas, a mulher do da Parada ainda o puxou, homem para que queres a burra, o rachador do Monte meteu-se logo, isto não é assunto de mulheres, tinham que fazer negócio, tem que tirar alguma coisa, não tiro, dou-lhe mais uma nota de vinte, tiro-lhe essa nota, nem mais um tostão, e o do Monte a dizer racha-se, vários a apoiar, fica por duas notas e meia, o rachador a agarrar-lhes as mãos, estranha união, e a fazer com a sua um corte simbólico, deram as mãos estava feito o negócio, um tirou cinquenta o outro deu mais cinquenta, consumada a liturgia logo assomou meia nota de sinal, faltavam duas que apareceriam quando lhe entregasse o rabeiro, vai uma rodada, paga o vendedor que recebeu o dinheiro, primeiro um copo para o comprador, o rachador a seguir, depois para todas as testemunhas, outra rodada paga o comprador, outra ainda, esta pago eu, diz um da Cerdeira, não quero mais diz o de Pailobo, morra quem se negue, praguejou um da Mesquitela, olha vem ali o Proença da Malta, grande negociante, como está, disseram todos, uma rodada, pago eu, diz o Proença, mas a minha primeiro, exigiu o da Cerdeira com agrado geral,  e ali ficaram a seguir os negócios, os foguetes e a festa, e a tirar o chapéu e a agradecer ao Proença quando este foi dar a volta pelo sítio do gado onde já se encontrava o Serafim dos Gagos a disputar-lhe o vivo e a pôr a fasquia aos preços.

Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha de levar o viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o buxo cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.

Algum tempo depois perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no S. Roque, menino, ficaram no S. Roque.

31 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

A primeira comunhão_1 (Crónica)

Seis décadas depois vêm-me à memória as doces catequistas da minha infância. A menina Aurora e a sua Tia Ricardina ambas solteiras de muitos anos e beatas de quase tantos outros. Lembro-me do fervor com que me ensinaram a odiar os judeus porque mataram Cristo, os maçons porque perseguiam a igreja e os comunistas porque eram ateus. Recordo o entusiasmo que punham nas orações para que Deus iluminasse os nossos governantes e lhes desse longa vida, apelos ouvidos apenas no que diz respeito à segunda parte.

Nas aulas de doutrina explicavam-me a cor do firmamento, ao pôr do sol, como sendo o sinal de que os comunistas iam matar os cristãos, conforme a Irmã Lúcia tinha revelado, e eu, tão estúpido, que não deixava de ser cristão, com maior medo do Inferno e das suas labaredas, onde apenas se ouviam gritos e ranger de dentes, do que da morte que os ditos comunistas me preparavam.

Penso que era o medo da revelação do 3.º segredo de Fátima que me toldava a razão e me deixava manietado para outras reflexões. Sabia que Deus estava muito zangado, do mesmo modo que toda a gente o sabia, por ouvirmos dizer, bem entendido, e que devíamos rezar o terço para lhe aplacar a ira contra os que não eram crentes mas, não sei porquê, quem pagava éramos nós, talvez por Ele não ter jurisdição nos que não acreditavam, mas isso não podia ser porque Deus era omnipotente, eu só não percebia a obsessão da nossa parte em assumirmos culpas alheias e fazer pagamentos por conta, o motivo de termos de expiar os pecados alheios, isso na época não me admirava, havia muita solidariedade, eram grandes os sentimentos que nos animavam e nobres as devoções a que nos dedicávamos. Assim salvássemos a nossa própria alma de ser frigida no azeite das profundezas, combustível de sabor mediterrânico que alimentava os meios de produção da eterna justiça a cujo suplício estavam destinados os condenados.

Valia-me a certeza de fazer parte dos poucos, poucos é a gente a falar pois na aldeia eram todos, que podiam aspirar à bem-aventurança eterna. A nossa religião era a única que conduzia à salvação, todos os outros estavam errados e faziam muito mal em não se converter. A Santa Madre Igreja, Católica, Apostólica, Romana, estava aberta, nunca compreendi como é que podia haver quem se negasse à conversão e ao caminho da santidade que lhe eram oferecidos, como é que alguém podia duvidar de que o papa fosse o sucessor de Pedro e o representante de Cristo na Terra bem como serem os Senhores Bispos os sucessores dos Apóstolos! Como era possível que os judeus se não arrependessem de ter assassinado Jesus Cristo e persistissem no erro, que os moiros teimassem em permanecer infiéis, vá-se lá perceber a razão de ser mais fácil persistir no erro do que aceitar a salvação. Era tão difícil o entendimento, sobretudo a quem não conhecia a outra parte, e ainda bem, pois era dever de um cristão converter os outros ou, se eles o não quisessem, usar meios adequados para livrá-los do erro.

Por sua vez o Sr. Padre, depois da me ter examinado e aprovado no exame da catequese, declarou-me em condições de iniciar os preparativos para a primeira comunhão. De novo as catequistas se encarregaram de me preparar para a desobriga que a precedia. Foi durante a confissão que, genuflectido, depois de uma oração preliminar, me convidou a contar-lhe os pecados. Esforcei-me por me recordar das vezes que tinha posto o dedo na malga da marmelada sem saber se de um só pecado, repetido, se tratava ou de tantos quantas as incursões no vaso onde se guardava uma guloseima castanha e muito doce à espera de tentar uma criança. Dava voltas à memória para saber se tinha alguma vez mentido, se tinha maus pensamentos – e isso tinha – pensava em partir o pião dum colega acertando-lhe com o ferrão do meu, se tinha pecado por palavras ou obras, indiscutível matéria de reflexão e arrependimento, pois eu conhecia palavras feias que não cabia a um cristão pensar e muito menos pronunciar. Mas não era disso que cuidava o Sr. Prior na longa confissão, que eu entendi como proporcional à dimensão dos pecados ou, na melhor das hipóteses, como deferência para com o filho da Sr.ª Professora, mas eu não pensava nesta possibilidade, pois as crianças não são sensíveis à deferência nem à divisão em castas. O reverendo cuidava saber se eu praticava o pecado solitário, maldade de cujo ensinamento o medo que as outras crianças tinham da professora me havia até então livrado, e, perante a minha ignorância, preveniu-me piedosamente por antecipação, antes é que vale a pena não é depois do mal feito, preveniu-me – dizia – dos riscos da cegueira a que podia conduzir-me esse pecado, risco que me afligia bastante, bem como da tuberculose que, apesar da gravidade à época, eu não estava em condições de avaliar.

Perguntou-me ainda se eu fazia marranices, palavra com que acabava de me enriquecer o léxico, o que me deixou perturbado por ser um pecado que eventualmente eu cometesse sem saber, possibilidade de elevado grau de probabilidade pois aos pecados confessados não fora dada importância e aos pecados desconhecidos era dada uma particular e desvelada atenção, aumentando-me a ansiedade e sentimento de culpa, tanto maior quanto  mais profunda era a minha ignorância. Explicou-me que o dito pecado era pôr-me em cima das raparigas e fazer zumba, zumba, zumba… e ficou ali a repetir a palavra algum tempo, como se tivesse esquecido o que estava a dizer, até ter recuperado a tranquilidade e ter-me mandado rezar  o acto de contrição, que eu tinha na ponta da língua, completamente desinteressado já dos pecados de que eu carecesse de aliviar-me para salvação da alma.

Levei ainda de penitência uns tantos pai-nossos e ave-marias, coisa de pouca monta que me levou a acreditar que os pecados não eram tão pesados nem difíceis de expiar como eu tinha imaginado. A penitência foi cumprida nessa noite antes de adormecer, ansioso pela chegada da meia-noite, hora canónica a partir da qual não podia tomar qualquer alimento sólido ou líquido antes da comunhão onde ia receber pela primeira vez o corpo de Nosso Senhor que, não sei como, cabia numa rodela finíssima de pão ázimo sem fermento nem sal, ainda por cima partida em pedacinhos de que só me coube uma insignificância, de paladar péssimo, que não podia tocar com os dentes, não fosse morder o Senhor, e aquilo colou-se-me ao palato e eu tinha medo de levar lá a língua que podia incomodar Nosso Senhor, que devia ser muito susceptível, e eu a debater-me com aquele pedacinho de farinha que teimava em não se desfazer, mais parecia borracha com cola, mas que eu bem sabia que tinha um alto valor nutritivo como alimento da alma, embora me não desse conta, mas disso estava prevenido pela menina Aurora e pela sua Tia Ricardina, bem como pelo Sr. Prior que na véspera veio pela segunda vez examinar-nos e confirmar a nossa preparação para recebermos Nosso Senhor. Quem não estivesse preparado não era digno, eu era, por ser o melhor aluno da catequese, mas pareceu-me que os menos preparados se deram melhor com a sagrada partícula de que se aliviaram mais cedo do que eu e, de qualquer modo, não tinha havido reprovações.

Não sei se a comunhão me purificou a alma, mas sei que me estimulou o apetite. Foi com uma fome imensa que assisti ao fim da cerimónia da santa missa sem me dar conta que a gula, que começava a devorar-me, era obra do demo que aguardava, para tentar-me, provavelmente possesso, se é que o demónio pode estar possuído dele próprio, ou talvez desesperado na luta quotidiana entre o bem e o mal, qual lutador que não se resigna a atirar a toalha ao ringue, mesmo quando o combate é desigual, quando a alma se tonifica pela oração, penitência e comunhão que são poderosos demonífugos que obrigam o mafarrico a redobrados trabalhos para não perder a quota de mercado a que se julga com direito.

Antes de correr para casa em busca de vitualhas com que pudesse saciar a fome de dezasseis horas de jejum não me esqueci de me persignar, depois de ter molhado de água benta os dedos, mergulhados na pia de pedra que saía da parede ao lado da porta da igreja, água que, apesar do aspecto, pelas propriedades intrínsecas, havia de ser um poderoso desinfectante para as moléstias da alma e um profiláctico precioso para as tentações que o demo, na sua permanente vigilância e incansável dedicação ao trabalho, não deixaria de fazer.

E eu conhecia o segredo da água benta por tê-la visto preparar pelo Sr. Padre que se paramentou de propósito e transformou um cântaro de água vulgar na dita água benta através das modificações induzidas pelas rezas que acompanharam os sinais cabalísticos, cruzes imaginárias desenhadas no ar, por cima do dito cântaro, enquanto alguns garotos seguíamos com o olhar os tais sinais para ver quando se dava o salto dialéctico, isto é, a mudança da quantidade em qualidade, ou seja a mudança da água vulgar em benta, sem sabermos ao tempo o que era isso de salto dialéctico, mas sabendo reconhecer a diferença entre uma e outra, o que era muito mais importante para a eternidade a que não podemos fugir, e bem mais decisivo para a salvação da alma, que estas sociedades modernas querem fazer crer tratar-se de anacronismo, mas que não é, que o diga a Irmã Lúcia que na opinião do Prof. João César das Neves é uma intelectual que os outros intelectuais, que o não são, não aceitam, por arrogância ou despeito, por não terem sido chamados à santidade, vá-se lá saber o motivo, o Professor também não explica lá muito bem, mas sabemos que tem razão, pois até já escreveu vários livros e foi consultor do Prof. Cavaco e não se cansa em meios bastante hostis de alertar para a salvação que hoje, tal como no meu tempo de criança, devia ser um objectivo primordial, mas as pessoas estão menos interessadas no que diz o Papa que nos livrou do comunismo do que na Televisão, que só diz mentiras, e no que afirmam os políticos que são todos uns corruptos e mentirosos que dizem coisas diferentes do que vem na santa Bíblia e, por isso, não podem dizer verdades, e só falam no bem estar material, como se o bem estar material interessasse alguma coisa, como se a alma não fosse o bem mais precioso que as pessoas têm, mas, enfim, estamos a chegar ao fim do mundo e as pessoas não acreditam, a mensagem de Fátima é bem explícita, mas as pessoas não a compreendem, nem sequer compreenderam Sua Santidade quando anunciou o terceiro segredo, mesmo os peregrinos estavam desatentos e não compreenderam, vá-se lá pedir aos outros que compreendam, para isso é preciso ter sido tocado pelo dom da fé que cada vez falta mais, bem pode esforçar-se Nosso Senhor, se os homens não quiserem, depois não digam que não foram avisados.

23 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

O exorcismo da Celeste_1 (Crónica)

Em terras da Beira, depois da guerra, a gratidão para com a senhora de Fátima, pela afeição a Portugal, estendia-se ao senhor presidente do Conselho por nos ter livrado do conflito. No Cume sobrava piedade e faltava comida. Estavam no fim os anos quarenta e os portugueses  longe de começarem a ser gente.

A Celeste morava ao cimo do povo, sozinha, e cismava que se matava. Via-se que não regulava bem da cabeça e adivinhava-se a fome que a apoquentava. Suspeitaram os vizinhos de mau olhado e a ti Catrina, calhada nas benzeduras para tal moléstia, já a tinha ido visitar com outras mulheres embiocadas no xaile e os rostos sumidos na copa de enormes lenços pretos. Das conversas delas nada se disse mas ouviu-se na rua a ladainha:

«Dois to deram, três to tirarão,
foi S. Pedro e S. Paulo e o apóstolo S. João
Sant’Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus,
assim como isto é verdade,
livre este corpo de ares, olhares e todo o mal
em louvor de Sant’Ana e Santa Iria…
padre nosso, ave-maria…»

Muitos padre-nossos e ave-marias depois, sem abrandar o mal, as mulheres mais velhas concluíram que deviam ser espíritos que atenazavam a bendita alma da Celeste, tão temente a Deus que ela era, mas nestas coisas de espíritos ruins são estes que escolhem a morada e, embora a oração lhes dificulte a entrada, está provado que não é intransponível a barreira.

A adensar a suspeita ouvia-se na habitação, durante a noite, o barulho de máquina de costura, que não havia, a trabalhar, a perturbar o sono e a aumentar a angústia. À porta juntavam-se pessoas vindas da igreja a ouvir o som que os espíritos produziam. Os poucos que não ouviram, apesar da atenção e do silêncio, conformaram-se com a deficiência auditiva e renderam-se à maioria.

O senhor padre pode ter desconfiado do diagnóstico, o sr. António Bernardo dizia que ela não batia bem da bola, podia até ser dos espíritos, a senhora professora aconselhou um médico, que disparate, o que sabe um médico destas coisas e onde é que o há, mas o povo na sua infinita sabedoria já tinha o veredicto, eram espíritos, só podia ser, falava-se de uma avó falecida há muitos anos, a voz tinha sido reconhecida, faltaram-lhe algumas missas ao trintário na encomendação da alma, não se perde nada em benzer a casa e deixar algum latim – conformou-se, acossado, o padre Pires –, dizem-se as missas em dívida e logo se verá.

A Celeste é mulher e o destino das mulheres serem possuídas, os espíritos malignos aproveitam e, depois de entrarem, são difíceis de expulsar. É um combate para senhores párocos, ou mesmo para um reverendíssimo bispo se as posses da vítima e a malignidade o aconselham. Pouco avezado a tais pelejas, mas com habilitações canónicas e compleição adequada à luta, bem se esforça o padre a desalojá-los. Quem julgue que a força da cruz e do divino devem bastar não conhece os espíritos e o furor que transmitem às mulheres possuídas, levando à exaustão o exorcista que não raro precisa de várias tentativas para se fazer obedecer. Fracassa e fica extenuado, à primeira, o padre Pires, valendo-lhe a gemada que o aguarda com vinho e açúcar, enquanto a ceia e o breviário lhe não retemperam as forças e devolvem a serenidade.

A Celeste não melhora. Continua a ouvir vozes que desconhece, definha. Alguns dias após, no regresso do Carapito, onde tinha ido levar o viático a um moribundo, volta o padre Pires à peleja com o maligno. Pode ser que na vez anterior se tenha entupido o hissope, avariado o crucifixo ou faltado à água a bendição, quem sabe, o senhor prior não costuma partilhar as dúvidas, se dúvidas assaltam o ministro de Deus, isto é um incréu a pensar, a força da fé move montanhas, sempre ouvi dizer, a Celeste pode ter perdido a fé com a fraqueza, e sem fé não adianta, é um esforço inglório, o certo é que o senhor padre volta a entrar naquela casa, se pode chamar-se assim ao sítio, mal nunca faz, senhor eu não sou digna de que entreis na minha morada, isto é uma forma de dizer, a Celeste refere-se a Deus que está em toda a parte, mas quando vem acompanhado do seu representante há-de infundir maior respeito, as pessoas humildes dizem estas coisas, o senhor padre mergulha bem o hissope, asperge-o com vigor, desenha cruzes, vai-se ao demo com o latim e as mãos, põe as pessoas a rezar o terço que a irmã Lúcia recomenda contra o comunismo, que também resulta com os espíritos, tudo obra do demo, deixa a reza para os paroquianos e sai da refrega exausto à procura da gemada com vinho, açúcar e nódoas para a batina, sem saber se os espíritos encurralados no corpo frágil obedeceram à ordem de expulsão, onde resistiam acossados à parafernália de alfaias sagradas e pias intimações.

As pessoas esperam na rua alheias ao perigo de serem apanhadas para refúgio dos espíritos em fuga. Nessa noite a máquina de costura inexistente permanece silenciosa e quieta, calam-se as vozes das almas penadas, a Celeste dorme bem pela primeira vez em muitos dias, depois da canja que lhe levaram. Se os espíritos não saíram estão debilitados.

A Celeste, com pouco alento, é certo, volta à horta e à igreja, o exorcismo resulta. Finou-se algumas semanas depois, completamente curada e liberta de espíritos malignos.

22 de Outubro, 2010 Carlos Esperança

No início da década de sessenta, ali na Covilhã (Crónica)

Não sei como era a Covilhã em 1186, elevada a vila por foral de D. Sancho I, nem em 1763 quando o Marquês de Pombal ali criou a Real Fábrica de Panos que havia de lhe traçar o perfil industrial e torná-la um local de misérias e grandezas conforme as crises cíclicas a que ficou condenada. Das grandezas fruíam os industriais que, duas gerações depois, abriam falência enquanto outros surgiam para recomeçar o ciclo. Das misérias foram vítimas gerações de assalariados que ora fugiam das aldeias em busca do magro salário na indústria, ora regressavam à fome e às courelas em Boidobra, Peraboa, Ferro, Verdelhos, Orjais, Canhoso, Cortes, Teixoso ou Casegas.

Era este revezamento entre o campo e a fábrica que não deixava enraizar a consciência proletária mas atraía para a política alguns rurais feitos operários. Descrito por Ferreira de Castro, em «A lã e a Neve», não creio que Horácio, pastor, fosse o paradigma dessa alternância que dos rurais fazia operários têxteis e os reenviava para as aldeias e para a enxada quando a crise de novo se instalava. Não era o amor à terra que os movia, eram as fábricas que os expulsavam.

As pessoas fazem as cidades mas estas são as suas circunstâncias, que as moldam e lhes imprimem o carácter, os hábitos e o gosto. Na cidade não havia a courela que dava aos operários a ilusão de terem garantidos os alimentos e a casa de telha vã que os abrigava da chuva e da neve, e a vida na cidade é sempre cara para quem não lhe pode fazer face. Por isso caminhavam horas antes de iniciarem longos turnos em alguma das numerosas fábricas, que seguiam o leito das ribeiras Carpinteira e Degoldra, que enchiam de ruído a cidade que sobe pela encosta no sueste da serra da Estrela.

Em 1961arrastava-se no Tribunal da comarca a falência da Fábrica Alçada, outras agonizavam, e preparava-se para laborar a Nova Penteação que, com a evolução dos teares mecânicos e a consequente redução de mão de obra, havia de durar décadas até seguir o destino a que, também ela, não seria poupada.

A Covilhã reciclava o trapo e tecia com fios de lã o estambre, com variados padrões e cores, saído da arte e engenho dos debuxadores. O delegado do Instituto Nacional de Trabalho nunca negava aos patrões o aumento das horas de laboração, se as encomendas cresciam, nem as autorizações para despedir, quando diminuíam, nem as prendas que, em qualquer caso, sempre recebia.

O Têxtil e o Avante acusavam o delegado do ministério das Corporações dos subornos e acicatavam a revolta, a polícia espiava, o tenente Gaspar assustava a pequena burguesia na esquadra da PSP, a PIDE prendia os comunistas, mas era no interior das fábricas que a revolta crescia, abafada pelo ruído dos teares e pelo medo da polícia e do desemprego.

Foi nos dois anos lectivos, de 1961/63, que me fiz assinante do Jornal do Fundão, onde a coragem de António Paulouro fez a pedagogia democrática que manteve a esperança num 25 de Abril que ainda vinha longe.

Nas fábricas, o PCP lutava para se impor e nos cafés conspirava a burguesia mais culta.
No Montalto, onde pontificava o distinto advogado Guilherme Raposo de Moura, fiz o meu tirocínio político com o João Heleno, ecónomo do sanatório, o médico Sá Lima, o bibliotecário da Gulbenkian, Abel Leite da Silva, o Ernesto da Farmácia, o professor primário Barata, futuro deputado constituinte, e o Ribeiro dos Tabacos a quem a PIDE mandou retirar a representação das cervejas, primeiro, e a dos tabacos, depois, sem nunca se render. Nos anos que vieram chegaram novos democratas que o tenente Gaspar se encarregou de intimidar, os bufos de denunciar e a PIDE de prender.

Um pouco abaixo do Largo do Pelourinho, no Café Solneve, o Jerónimo dos Santos, o Patacho e o Teixeirinha, que a democracia viria a fazer presidente da Câmara, eram o núcleo de outro grupo anti-salazarista ligado ao primeiro por grande cordialidade a que não eram alheias as qualidades de Raposo de Moura, uma referência na cultura, no foro e na política, personalidade de cativante simpatia e enorme prestígio.

A escola técnica, o liceu até ao 5.º ano e o colégio Moderno, até ao 7.º, dirigido por um grande democrata, Castro Martins, constituíam a escassa oferta de ensino que contava ainda com 45 professores do ensino primário.

Na Covilhã, nos dois anos que ali vivi antes de rumar ao distrito de Lisboa, ameaçado de demissão pelo Director Escolar, Silva Mendes, se não abandonasse a cidade ou as companhias, com dois polícias a seguirem-me e o padre Morgadinho a denunciar-me à PIDE, apercebi-me dos mecanismos de repressão da ditadura, da cumplicidade do clero com o fascismo e da dureza da vida dos operários.

Da Covilhã, trouxe a enorme carga afectiva que dos 18 aos 20 anos moldaram o homem e o cidadão que jamais deixei de ser. Saí da Covilhã compelido pelos biltres da ditadura mas a Covilhã nunca mais saiu de mim. Ainda hoje, quase meio século volvido, recordo numerosos amigos, muitos já falecidos, mestres da escola técnica, docentes de todos as instituições de ensino, taxistas, prostitutas, barbeiros, engraxadores, o Artur Campos, proprietário do Montalto que mandava ao primeiro andar um empregado avisar-nos da presença da polícia, e, sobretudo, os meus alunos que apareciam na escola dos Penedos Altos, com sono e fome, vindos das Lameirinhas, Borralheira e Lameirão.

Recordo o Leal, o ardina que uma noite me guardou, sob a camisola, o jornal habitual que, à largura de toda a primeira página, anunciava em letras garrafais um título em caixa alta: «Ontem reuniu a Assembleia Nacional para apreciar as contas gerais do Estado relativas ao ano findo». A ausência de um «t», nas contas, pôs o país a rir e a polícia a confiscar o diário mas o Leal, fiel e cúmplice, guardou um exemplar para o cliente de todos os dias.

A Covilhã, urbe que 350 metros de altitude separam da base até ao topo, a caminho das Penhas da Saúde, ansiosa por chegar à Torre, a serpentear a Serra da Estrela, tem velhas tradições democráticas. Foi um alfobre de gente que aprendeu na ditadura os caminhos da resistência, é hoje uma cidade de 140 anos na vanguarda do progresso a desafiar a interioridade e a vencer a batalha do desenvolvimento.

27 de Setembro, 2010 Carlos Esperança

A visita pascal_1 (Crónica)

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia o mesmo, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão enquanto o padre se ocupava da cruz e recolhia-a depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protector das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.
Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros para depois os revezarem. Genuflectiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e regada a fé a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.