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Autor: David Ferreira

2 de Fevereiro, 2014 David Ferreira

Jesus, esse revolucionário incompreendido

Esqueçamos a metáfora. Ponhamos de parte a subjectividade interpretativa de textos avoengos que o passado e os adeptos da sua eternização nos legaram como herança. Tomemos como real a romantizada história dessa enigmática personagem que uns misóginos psicopatas utilizaram como pilar mor para a fabricação da mais poderosa instituição a que a humanidade alguma vez se viu subjugada. Façamos de conta que Jesus, mais tarde Cristo, de facto existiu e que disse precisamente o que vem relatado nos evangelhos sinóticos, numa época primitiva em que o plágio intelectual e a pirataria cultural eram o único meio de passar informação ou de subtrair reconhecimento.

Esqueçamos, disse, o obscurantismo metafísico urdido para controlar a excessividade exibicionista e controladora da testosterona ou os estouvados impulsos púberes do estrogénio. Jesus de Nazaré, a personagem vagamente histórica que as mentes mais perversas e conservadoras preferem cultuar no auge da decadência e do sofrimento foi, sobretudo, e muito mais do que lhe acrescentaram postumamente, um revolucionário, um humanista dedicado, um iluminado precoce, apesar de atormentado pela compreensível crendice mais desesperada, um placebo antidepressivo numa época enclausurada pela selvajaria mais descontrolada.

Nos dias que correm, Jesus seria catalogado como um fanático e perigoso ideólogo de esquerda, um anarquista pós-punk, um yuppie pacifista adepto da contraceção e das praias de nudismo, um alienado rastafári a declamar poemas de amor em pelo no alto de uma montanha após incendiar uma plantação de cannabis, ou quiçá, benzei-vos, um comunista militante, porque ateu para com os antiquados, sádicos e narcisistas deuses capitalistas, excessivamente neoliberais. Apoiaria a Greenpeace, lutaria pelos direitos dos animais, seria membro do movimento LGBT, lutaria pela igualdade da mulher, estaria sempre do lado das minorias castradas de voz e sempre contra as vozes autoritárias do poder hereditário ou ilicitamente açambarcado. Um verdadeiro homem do povo, para o povo e com o povo. Não por ser igual a tantos, mas por a tantos reconhecer a diversidade e as fraquezas. E por a tantos vislumbrar o potencial. E porque a todos Deus criara. Tal como eram. Fossem como fossem. Porque tudo criara, afinal. E quem são os homens para questionar a criação de Deus?

Pasme-se pois, porque creiam que de pasmo aqui se trata, que, volvidos dois milénios (mais ano, menos ano), sejam precisamente os avatares das personagens que Jesus criticou veementemente, os espíritos mais conservadores, elitistas, reaccionários, calculistas e oportunistas, ou simplesmente insensatos, os que mais aguerridamente lhe usurpam o imaginário procurando impor aos restantes um tipo de mundividência em nome de quem categoricamente se entregou à morte para a achincalhar.

Estes que em seu nome falam são os que insistem em misturar o seu abastardado sistema de crenças, impregnado de uma idolatria que os antigos mandamentos já haviam condenado, com o governo dos homens, esquecendo o que ele disse, antecipando em séculos a laicidade: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”

Estes são os que falam da necessidade de uma interpretação metafórica para tudo o que à luz do pensamento moderno possa parecer descabido, mas que continuam sem compreender a simbologia bem atual do episódio dos vendilhões do templo; ou que ele entraria em Fátima (um exemplo entre tantos) não de mãos postas e olhar de celibatário sensaborão, mas de cajado em riste, pronto a escavacar a gigantesca tabanca comercial com que os vendilhões do templo atestam os cofres do Vaticano com os parcos tostões que os vendilhões da banca caridosamente permitiram poupar.

Estes são os que no novo oeste negam a ciência e a evolução e lançam guerras santas contra outras de igual índole em terra deserta, e para muitos ainda plana, esquecendo que todos os rostos têm duas faces. E que estas faces, apesar de opostas, são semelhantes e completam o todo.

Estes são os que julgam quem nasce diferente, quem pensa diferente, apenas por não serem iguais à maioria, e se esquecem que o homem aconselhou a não julgar, para não se ser julgado, porque com o juízo com que se julga assim também se será julgado. Ou que atire a primeira pedra o que não tiver defeitos ou não tenha cometido erros. Ou que quem violar os mandamentos será declarado o menor no Reino dos Céus, o que engloba a totalidade da espécie humana.

A história da humanidade é tantas vezes feita de incongruências… Como é possível que alguém que hoje seria visto como um revolucionário de esquerda, passe o cunho ideológico, alguém que lutou pelos mais básicos direitos humanos,  tenha sido utilizado após a sua morte como símbolo para a implementação de sequiosos, torpes e retrógrados valores clericais e da frívola ideologia da direita mais reacionária?

A segunda vinda de Jesus Cristo está prevista na sua biografia não autorizada. Talvez seja por isso que os usurários do seu pensamento insistem em mantê-lo pregado na cruz. Não vá ele próprio tecê-las…

Esqueçamos, então, o obscurantismo. E façamos de conta que tudo isto é real.

3 de Janeiro, 2014 David Ferreira

Carta aberta de um ateu ao Papa Francisco

Vossa Santidade,

Permita-me a cortesia de um cordial tratamento pelo sublime, mas exigente, axiónimo pelo qual passou a ser intitulado após a recente promoção, designação essa que pressagia a seguinte distinção, a póstuma, que, não duvido, se concretizará por intermédio de uma inexplicável violação das peculiares leis naturais que regem tão somente os processos biológicos dos anhos que se apascentam exclusivamente de fé católica.

Saiba V.S. que, como ateu, tenho assistido com curiosidade ao seu ainda breve papado. Não porque tenha particular interesse no modelo de marketing governativo por que optou pastorear, nem porque esperasse algo de admiravelmente novo, fresco que fosse, dos seus discursos. Estes apenas suscitam inconscientes murmúrios de espanto às persuadidas bocas abertas que o adulam de baixo para cima na praça de S. Pedro. Mas esses passeriformes e insaciáveis filhotes que recusam abandonar o ninho abririam sempre a boca a qualquer ave que os sobrevoasse com sustento, fosse incenso, mirra ou larva do pinheiro.

Dirijo-me a si porque teve a amabilidade de publicamente mandar reservar uma parcela de céu a todos os que, dotados de razão ou inato bom senso, por norma não negoceiam desígnios de férias em locais paradisíacos com agências de viagem duvidosas. Reserva essa, note-se, que um subalterno de V.S. prontamente se encarregou de rescindir, desautorizando-o à revelia, alegando para tal cometimento a falta de idoneidade moral dos interessados. Saiba que não apreciei o gesto, embora outros o tenham enaltecido. E não o prezei pela discriminação e preconceito implícitos para com todos os hereges que, como eu, não se deixam levar pelo consumismo desenfreado que a publicidade enganosa engendrada pela instituição que comanda por norma despoleta. Tive a desconfortável sensação de que o local que me fora outorgado teria demasiadas semelhanças com os lugares de estacionamento reservados a deficientes… Com sinalização a condizer! Entenda por isso o motivo do meu desagrado quando a meliantes, loucos, cegos e surdos lhes vejo atribuídas as bem-aventuranças de um terreno virgem de sinalização mediante o pagamento vitalício de periódica benzedura ou genuflexão, obrigação que a condição de evoluído e entufado bípede me dificulta amiúde.

Sei que manifestou intenção de visitar esta pobre República com o intuito de venerar a sorumbática estatueta dessa senhora que uma irrefletida visita noturna a angelical legionário romano converteu, muito a posteriori, em miraculosa artista do Cirque du Soleil, por obra e graça do espirito espanto. Coroada Rainha de Portugal na cova em que iria obrar vasta multinacional de culto, tal é a magnificência com que atua na copa das árvores que secundariza todas as aspirantes a atrizes a quem o infalível espírito crítico de V.S. continua a impedir o protagonismo na representação das homilias. Por mim atribuiria o Óscar de 2013 a Malala Yousafzai, essa sim uma real, enérgica, credível e corajosa representante de todas as mulheres que sabem não estar mortas. Mas gostos são gostos. Saiba ainda V.S. que da monarquia apenas nos resta sonâmbula hereditariedade, Dom Duplo Pio, tão Pio de linhagem como de devoção, mas cuja dicção se desarticula irremediavelmente perante a sobriedade das pouco castas glândulas mamárias da República, implantadas a 05 de outubro de 1910, que lhe surripiaram a mama e o reinado.

Saiba V.S. que será muito bem recebido, como é apanágio deste catolaico povo. É que somente as reses mais estonteadas carecem de pastor do berço ao féretro e nós, infelizmente, ainda o aguardamos, desnorteados, por entre um nevoeiro que nem vai nem sai de cima.

 

Atenciosamente, disponha sempre deste simples ateu que não o venera.

9 de Dezembro, 2013 David Ferreira

Jurisprudência islâmica

O India Today, uma publicação semanal indiana, divulgou em 28 de novembro a compilação de algumas das mais puritanas fatwa islâmicas emitidas no Egipto durante a presidência do deposto líder Mohamed Morsi, uma listagem de verdadeiros atentados à dignidade humana a que a radicalização islâmica infelizmente nos vai acostumando.

Durante o curto mandato presidencial de Morsi, a Irmandade Muçulmana, uma organização fundamentalista que pretende estabelecer a sharia rejeitando o islamismo mais moderado, assim como alguns grupos igualmente violentos e fanáticos de salafistas, emitiram regularmente aguerridas fatwa contra as mulheres. Uma das que sobressai, indiscutivelmente, é a que refere que, uma vez que o género do vocábulo “mar” em árabe é masculino, se e quando a água do mar entrar em contato com a região pélvica da mulher, esta estará a cometer literalmente adultério, pelo que deverá ser punida. Nunca será demais realçar que, de acordo com a sharia, o corpo da lei religiosa islâmica, a pena padrão imposta a uma mulher por adultério é a lapidação, uma das formas de execução de condenados mais bárbara que a humanidade já concebeu.

De acordo com o relatório, as fatwa emitidas por ambos os grupos radicais referiam as mulheres como estranhas criaturas, criadas apenas para o sexo. Consideravam as vozes das mulheres, o seu aspeto e a sua presença fora de casa como ofensivas, algumas ao ponto de considerarem a própria condição de mulher como uma ofensa.

Algumas das fatwa emitidas oficialmente incluíam:

– A proibição de a mulher comer determinados vegetais ou, inclusive, de tocar em pepinos e bananas, uma vez que o seu formato fálico lhes poderia despertar inconvenientes desejos sexuais;

– A ordem para as mulheres desligarem os sistemas de ar condicionado de suas casas na ausência dos maridos, uma vez que mantê-los ligados poderia indicar a um qualquer vizinho que estas se encontrariam sozinhas em casa, pelo que qualquer um deles poderia ser acometido do desejo de cometer adultério;

– O dever de casar após atingirem a provecta idade de dez anos, como forma de prevenir o desvio do “caminho certo”;

– A anulação do matrimónio se um casal for apanhado a praticar o coito em nudez integral;

– A autorização para o uso de mulheres como escudos humanos em períodos de confrontação violenta;

– A destruição das pirâmides e da esfinge, por serem imagens pagãs;

– A sanção da execução de todos os que se manifestassem contra o então presidente Mohamed Morsi;

– A proibição de cumprimentar cristãos a qualquer cidadão muçulmano.

Recordo o discurso do presidente norte-americano Barack Obama proferido durante a 67ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, onde referiu que o futuro não deve pertencer aos que difamam o profeta do Islão mas que, para se ser credível, também não deverá pertencer aos que assistem à profanação das imagens da figura de Jesus cristo sem condenar igualmente tal prática. Percebe-se a diplomacia e vislumbra-se o corretivo. Mas não podemos senão lamentar que em pleno séc. XXI figuras tão proeminentes da nossa sociedade se vejam obrigadas a ter que moderar publicamente comportamentos repugnantes por parte de organizações radicais cuja mundividência está tão afastada dos mais básicos direitos humanos como a sonda Voyager 1 do planeta Terra. E tudo graças a esse potente veneno esotérico que pode ser a religião quando a alienados paladinos da fé, tenha ela a proveniência que tiver, é reconhecido o direito de eternizarem crenças de sistemas culturais primitivos que, ungidos de um cunho divino socioculturalmente aceite, impõem a obrigatoriedade moral de um respeito muitas vezes imerecido, ao mesmo tempo que repelem a crítica demasiadas vezes manietada.

O Islão fundamentalista avança, como outrora avançou o cristianismo mais escorbútico. A princípio dissimulado, impudente logo que o consiga. Nem todo o Islão é radical, dirão uns. Sabemo-lo. Mas o futuro não pode pertencer a quem cobardemente o tolera com receio de ferir um segmento das suas próprias convicções.

25 de Novembro, 2013 David Ferreira

Humano, demasiado humano

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigénito, para
que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.”

João 3:16

 

São demasiado evidentes as crises de Transtorno Bipolar do Deus de Abraão enunciadas nos escritos que os seus seguidores consideram sagrados. Nestes se anuncia um Deus cujas metamorfoses existenciais são tão incompreensíveis à luz da razão como as metáforas que os apologistas lhes atribuem e os crentes acolhem indulgentemente. E mais incompreensíveis se tornam pelo facto de estarmos perante a descrição de uma alegada entidade infinitamente perfeita e poderosa. Porque, não obstante toda esta perfeição, não há doença do foro psiquiátrico que não lhe possamos diagnosticar, não há imperfeição que não lhe possamos encontrar. Assim como também não há virtude que não lhe possamos atribuir. E não poderia ser de outro modo uma vez que o resultado da construção simbólica de uma entidade criadora de toda a realidade percetível nunca poderia ser desconforme à predisposição interpretativa e analítica do órgão humano que a executa, mesmo que extrapolada para um plano distinto e puramente quimérico.

Não há deus ou divindade, seja antropomórfica, zoomórfica ou mero fenómeno natural personificado ao qual o método da ignorância atribuiu qualidades sobrenaturais, que não possua características humanas. No seu apogeu, são todas tirânicas e narcisistas, nunca prescindindo de oferendas ou sacrifícios, tanto físicos como espirituais, para apaziguar uma necessidade de veneração excessivamente doentia para seu próprio bem.

Mas talvez nenhuma outra entidade consiga ser tão maquiavélica como este Deus do deserto que surge pela calada a Moisés no Monte Sinai a proibir e a caluniar outros deuses, requerendo no mesmo sussurro transcendente permanente sacrifício e mortificação. Um Deus bipolar capaz de uma birrenta carnificina diluviana com que brinda a sua criação, incapaz de a moderar ou ajuizar, para permitir mais tarde um repovoamento à custa da consanguinidade (o que poderia explicar muito do que se passou a seguir). Um Deus capaz de dar em sacrifício o seu único filho para que todo o que nele venha a crer possa conquistar a vida eterna, mas que não deixa provas credíveis da sua passagem pelo mundo físico, afogando novamente a humanidade, desta vez em obscurantismo e especulação.

Entre apresentar-se à humanidade e revelar o grandioso mistério ou manter-se intangível e inatingível, escolhe precisamente a opção que permite a subjetividade interpretativa e alimenta o egocentrismo doutrinário, perpetuando a confusão de Babel. Este é um Deus que prefere dividir para reinar. Um Deus, diria, quase humano, demasiado humano.

4 de Novembro, 2013 David Ferreira

Por nossa grande culpa!

Os artigos semanais de João César das Neves são tão prazenteiros e coerentes como a leitura de qualquer página do Malleus Maleficarum. Fantasiosos na interpretação da realidade, ambíguos na significância, devotos até à medula doutrinária e repugnantes até ao vómito existencial. Não há como tentar sequer ser condescendente com a sua ulcerosa linha de pensamento. Ignorar JCN seria, porventura, um ato terapêutico, mas nunca analgésico.

O artigo desta semana dedica-se ao achincalho dos que reclamam em nome dos pobres e da própria pobreza para seu benefício, sobretudo os que representam essa impúdica classe média que se auto agraciou com lascivas e imorais regalias ao longo dos últimos e férteis anos de fartar vilanagem; esses gananciosos que tiveram o desplante de ousar o direito à conquista de uma dívida vitalícia para compra de habitação própria, meio de transporte particular, educação para os filhos e saúde para todos, essa classe que atrai “naturalmente a graça dos eleitos”!…

Andamos todos equivocados. Porque, a fazer fé em JCN, a finalidade imediata da retórica desses hipócritas não é aliviar os pobres mas atacar o neoliberalismo, rejeitar a troika, essa filantrópica senhora, derrubar o governo, combater a reforma do Estado, o orçamento com letra maiúscula ou outro qualquer decreto particular que particularize a complexidade burocrática da questão. Porque não são os pobres que inundam as ruas com manifestações. São os que usurpam a sua condição! Os pobres, esses miseráveis, não têm voz ou influência e como captar auditório é um ativo que falta aos indigentes… (aos indigentes, note-se!), a miséria só pode servir como pano de fundo para manifestos doutrinais. Não, os irritantes oportunistas panfletários que se manifestam pelos seus direitos não conhecem a indigência, não lhe sabem o sabor, não lhe conhecem a cor. Apenas se servem dela como desavergonhado veículo de transporte para os seus egoístas objetivos, dos quais só eles parecem beneficiar… Resta-nos então a caridade, a sucursal canonizada da solidariedade, para amenizar o estrago e alimentar a plebe a restolho. Palavras leva-as o vento e barrigas cheias de ar não falam, roncam.

Mas chega de masoquismos que nem a ironia aqui serve como antidepressivo. Lá para o fim da homilia, JCN consegue sossegar-nos o espírito e mortificar-nos a vontade, a mim pelo menos que vislumbrei a carapuça a pairar-me o cocuruto… Diz que há muito que é a Igreja, não o governo, a tratar dos necessitados. E eu compreendo. Dos pobres de espírito há muito se encarrega a Santa Madre Igreja e indigência é substância que abunda nos seus comedidos templos de bajulação metafísica. Mas é precisamente neste ponto que o discurso de JCN nos deveria fazer soar todos os sinais de alarme. Sobretudo se o anexarmos às palavras proferidas ultimamente pelos cardeais na nossa praça. Tal como o conceito do pecado original, estes ideólogos, elaborados nas entranhas das sacristias e na disciplina conservadora dos colégios católicos, querem à viva força que toda uma determinada classe que sustenta uma vacilante balança social se culpabilize (por minha culpa! por minha grande culpa!…), por todos os males que nos afligem, a uns mais que a outros. Esquecem estes estultos filósofos opinantes que o Estado, ao alienar-se das suas funções sociais basilares, das quais a mais primária é sem dúvida o apoio aos mais carenciados, perde todo o seu sentido ao abrir mão da essência que lhe deu origem. Por isso organizam de forma subliminar uma nova caça às bruxas. As bruxas têm sempre muitos nomes, por norma os nomes dos que não se conformam e não aceitam a servidão.

Não, JCN, mantendo o desnível a que já nos habituou, não é de facto deste mundo. Nem do outro. Habita num limbo elitista que se constitui um insulto a todos os que diariamente labutam por um país mais justo e desenvolvido, sejam crentes ou descrentes, de direita ou de esquerda, destros ou canhotos e que sofrem diariamente na pele o resultado das patifarias que aqueles que agora os querem ver silenciosos, encarneirados, provocaram, esses sim para seu único e cego proveito. Ao que parece, o mundo ideal de todos os JCN reflectir-se-ia numa disforme e desequilibrada tríade social (indigentes, pobres e ricos) comandada por uma liderança bicéfala repartida entre uma banca especuladora que privatizaria até a respiração e a liberdade e uma Igreja manipuladora que alimentaria a espiritualidade o que da culpa das sobras sobrasse. Até lá vai JCN continuando a dizer que “entretanto, os verdadeiros desgraçados, mudos como sempre, ainda têm de ouvir os muitos aproveitamentos do seu nome”.

E tudo por nossa culpa. Por nossa grande culpa!

6 de Outubro, 2013 David Ferreira

Hóstia dominical – XII

Guardarei o meu ateísmo para mim próprio assim que mantiveres a tua
religião dentro da tua igreja. Depois de lançados ao ar, todos os conceitos
estão sujeitos ao vento e às tempestades e os teus não são diferentes de outros
quaisquer.

30 de Setembro, 2013 David Ferreira

Teísmo, ateísmo e agnosticismo

Um crente, um ateu e um agnóstico decidem organizar um jogo de futebol com fins caritativos. O agnóstico, que não gostava de desporto competitivo por ter receio de se lesionar, resolve ser o árbitro.

No início da partida, juntam-se os três no centro do relvado para sortear a bola e o campo. O crente, com o peito inchado de fé e esperança, olha o ateu nos olhos e diz, esfregando as mãos:

– Está no papo!

O ateu, mirando o crente de alto a baixo, retorque, condescendente:

– Tu estás mas é maluco. Como podes tu ganhar? Tu és só um e eu tenho 11 jogadores na minha equipa. Para além do mais tu só tens uma perna!

Ao que se interpõe o agnóstico:

– Prognósticos só no fim do jogo! Prognósticos só no fim do jogo! Enquanto a bola rolar, não se pode conhecer o resultado…

28 de Setembro, 2013 David Ferreira

A César o que é de César

Não sei o que mais me aborrece no abominável César das Neves. Se aquele ar insosso de cordeiro manso desmamado a hóstia e água benta, se o seu discurso bolorento impresso em pergaminhos que o progresso civilizacional se encarregou de apodrecer. Ambos me provocam uma náusea profunda e, a julgar pela avalanche de insultos com que as suas crónicas são mimadas, sou apenas um de muitos.

Em longa entrevista ao Jornal de Notícias de hoje, a personagem revela toda a sua ideologia reaccionária, que impressiona não tanto pela incapacidade de análise objetiva e lúcida sobre as realidades sociais, mas sobretudo pelos motivos que levam a que seja dado tanto relevo a esta caricatura antropóide nos meios de comunicação social.

Abstenho-me de comentar as suas análises académicas acerca de economia, as quais, não tendo formação ou conhecimentos que considere consistentes nesta área, e sendo mantido, como a maioria dos cidadãos, num permanente limbo inconclusivo pelo excesso de propaganda política e opinião ideológica facciosa que deliberadamente minam o juízo e confundem o espírito crítico, deixo à consideração de quem domina a matéria.

É em todo o esplendor que o pusilânime vaticinador se solta por momentos da cruz, oxigena as chagas e dá folga ao cilício, para se apresentar à nação como o profeta do retrocesso civilizacional, redimindo-se, como sói, em nome da salvação a que tanto aspira. Critica o que ele designa de certas elites que se manifestam nas ruas única exclusivamente por interesses partidários e institucionais, onde se incluem professores, funcionários públicos e, pasme-se, até médicos, esquecendo-se que faz parte de uma obscura elite fidalga que perdeu significância após abril e que tem vindo, aos poucos, a conquistar terreno, em estreito conluio com uma determinada hierarquia católica, alcançando um peso enorme durante a década de noventa do século passado e cuja ideologia é hoje em dia transversal a todas as mais importantes instituições nacionais, com tiques tirânicos mas sempre abençoados, das forças de segurança às faculdades, dos tribunais à comunicação social.

Revela ao mundo que nestas hipócritas manifestações de indignação social não estão presentes os verdadeiros pobres (e como gostam os senhores, ele e o seu dono, dos pobres!), seja qual for o critério que o Espírito Santo que lhe anima a caixa craniana utiliza para definir a pobreza, mas apenas os que ficaram com a barriga um pouco menos cheia, esses que, imbuídos do intrínseco espírito parolo nacional, aceitaram compulsivamente, salivando, a galinha mais gorda que a da vizinha, que lhes ofereceram com um verdadeiro e honesto sorriso capitalista.

Um bom reaccionário, saudosista do sal e do azar e da vergastada no lombo com verga de cerejeira, não dispensa a caridade com que alivia o peso da consciência, por isso gosta tanto de pobrezinhos, mas dos que não se manifestam nem se revoltam, por tal ser pecado aos olhos de quem faz criação de carneiros obedientes, alimentados a esperança e a “Sim, senhor! Ai, senhor!”. Por isso propõe, inteligentemente, mais um resgate, que é como quem diz, mais uma fornada de pobres para alimentar as pias almas caritativo dependentes, assim como as filas de bocas cariadas que se acotovelam, à míngua de sopa, em frente às igrejas, a ver a cruz ao fundo da fila.

Já em final de entrevista, a ressacar as dores da crucificação, prega-se de novo à cruz e sangra as chagas, preparando-se para traduzir a mensagem da pomba que, entretanto, lhe voltara a pousar no leigo frontispício por escanhoar.

Interrogado sobre as observações do novo Papa relativamente ao aborto e à homossexualidade, opina, como bom apologista cristão, que tem que se saber interpretar bem o sentido das coisas e que este Papa vem de paragens diferentes, de uma cultura diferente. Vê-se, e sabemo-lo, que não partilha da mesma opinião, mas um bom carneiro nunca critica o pastor. Então divaga. Aceita a descarga teológica, mas não engole. Cospe e deita fora, ficando apenas o sabor a incenso e mirra a escorrer-lhe dos beiços.

Continua para bingo e doutrina que matar uma criança no seio da mãe não é uma coisa que possa ser boa em qualquer circunstância. Como se as próprias mães não o soubessem ou o não sentissem. Como se as mulheres abortassem alegremente e por prazer. Como se o ato medicamente assistido fosse pior que o alguidar de uma qualquer vidente ou bruxa em part time de parteira. Remata forte, em jeito de remissão dos dislates, e marca golo na própria baliza: “Que essa desgraçada, depois de ter feito isto, tenha de ser acolhida e acarinhada, com toda a certeza.” Essa desgraçada!… Diz essa, a distanciar-se, logo a julgando como desgraçada, a substituir-se ao Mestre. Sabemos hoje que o excesso de benzeduras conduz à artrose cerebral…

Para finalizar, diz que a homossexualidade é um desvio sexual que está a tentar fingir que não é… E que fosse? Que tem esta gente contra quem nasce diferente? Ou contra quem escolhe ser diferente? Não são estas pessoas dignas do amor do seu Senhor que dizem ser o amor em estado puro, seja lá o que isso for? Ou do respeito dos seus concidadãos e semelhantes? Que medo reprimido afeta assim tanto esta gente ultraconservadora? E porque não os vejo serem tão diligentes na crítica aos pederastas que abundam na instituição que tanto defendem cegamente? Não considerarão eles a pederastia um desvio sexual? Ou será que somente dentro de uma sotaina se pode aceitar a lascívia, porque santificada?

Dizem que disseram, que disseram, que alguém disse, que Jesus disse: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Demos, pois, nós também, a César o que lhe pertence – um profundo e gigantesco desprezo.

26 de Setembro, 2013 David Ferreira

Deus num tubo de ensaio

Deparo-me amiúde com a afirmação falaciosa de que os sentimentos não são susceptíveis de demonstração ou de aferição, tal como Deus. Não creio que a afirmação seja deliberadamente falaciosa com o intuito de justificar um conceito improcedente, mas apenas o resultado de uma análise superficial e dedutiva, um mero erro de perspectiva.

De facto sabemos hoje que os sentimentos são o produto das reacções químicas que ocorrem no sistema límbico, região do cérebro responsável pelas emoções e pelos comportamentos sociais, e que não são exclusivos à nossa espécie. Sabemos, de igual modo, que toda esta maravilhosa obra da engenharia do acaso não é, nem nunca foi, uma construção definitiva, mas sim a consequência de um longo processo de evolução biológica que nos foi apurando até ao estado em que nos encontramos. Toda a intrincada panóplia de componentes químicos que compõem o nosso sistema nervoso não é mais que um complexo mecanismo organizado de modo a permitir-nos a ilusão de um formato de realidade ao qual nos adaptámos e nunca o contrário, evoluindo para sobreviver. O que nos permite concluir, com toda a certeza, que o conceito de Deus apenas surgiu com o advento do aparecimento dos seres que agora designamos como espécie humana, tendo essa conceção sofrido, de igual modo, um processo evolutivo intrinsecamente relacionado com a evolução sociocultural da humanidade desde o seu estado mais primitivo, iniciado em África há aproximadamente 200 mil anos.

Habitamos um insignificante planeta que se formou há 4,54 biliões de anos perdido num Universo que surgiu há mais de uma dezena de biliões de anos. Existimos num Universo inefavelmente gigantesco, quiçá apenas um de uma infinidade de outros universos paralelos. Não obstante estas medidas astronómicas de tempo e espaço, somos menos que um grão de areia nesta imensidão de matéria e energia e um evento demasiado recente para que possamos concluir de ânimo leve que fomos criados por uma entidade infinitamente grandiosa e absoluta com algum hipotético objetivo. Quem aceitar o conceito de um criador omnipotente, e se for intelectualmente honesto e saudavelmente lúcido (excluo, à partida, todos os criacionistas), não pode fugir ao quesito pertinente que surge, inevitavelmente, após uma simples reflexão: que andou essa inexprimível entidade a fazer durante tanto tempo? Ou, para ser mais categórico, porque demorou essa entidade tanto tempo para se decidir a criar vida, ou seja, matéria consciente de si própria, e com que propósito? Obviamente não existem respostas válidas, teológicas ou filosóficas (a distinção é propositada), que satisfaçam a pertinência destas questões. E eu também não tenho respostas para propor. Só que o motivo por que não tenho respostas para elas é o mesmo que me faz ser ateu e não agnóstico. Pura e simplesmente não coloco essas perguntas. Não porque não tenham valor intelectual, mas por não serem conformes à própria realidade, uma vez que partem de conjeturas que considero surreais e não de premissas conformes à natureza dessa realidade que conseguimos apreender, seja pela razão, pela observação ou pela possibilidade de experimentação. Se divagássemos constantemente por todas as possibilidades que conseguimos imaginar de modo a responder a todos os porquês que pretendemos alcançar, desperdiçaríamos uma vida inteira sem esgotar uma ínfima parte dessas possibilidades e sem obter resultados satisfatórios.

Dirão os crentes numa realidade metafísica, imaterial, que sou eu que estou errado, que sou eu que cometo um elementar erro de análise. Mas a pergunta que lhes coloco é com que autoridade, base ou princípio me podem eles apresentar uma justificação que eu possa aceitar como credível para a existência desse mundo paralelo e inexplicável que eu afirmo apenas existir na sua imaginação? Seja qual for a resposta, ela residirá nesse incompreendido órgão que é responsável pela consciência que designamos por espírito ou alma, o nosso cérebro evoluído. É nele que todos os deuses se inventam, sempre por necessidade e sempre como solução para as questões que não sabemos responder, sobretudo porque as colocamos de uma forma errada. É nesse órgão, que existe por si próprio, que se manifestam todas as emoções e sentimentos de que necessitamos para sobreviver como espécie social, interagindo produtiva e eficazmente. E no entanto…

No entanto o conhecimento que colecionámos ao longo da nossa curta existência já nos permite responder a muitas das questões que assolam as nossas mentes constantemente em busca de se compreender, quase sempre com resultados desastrosos ou enganadores. O que me leva a não perceber o porquê de continuarmos a colocar tais interrogações, sobretudo quando muitas delas já o deixaram de ser.

Enchamos um tubo de ensaio com uma dose excessiva de dopamina e teremos um cálice de esquizofrenia; retiremos uma grande quantidade dessa dopamina e tomaremos um shot de ansiedade; enchamo-lo de novo com uma boa dose de serotonina e brindemos, inebriados de felicidade; com pouca quantidade de serotonina e dopamina sofreremos uma ressaca de depressão; façamos então um explosivo cocktail com grandes quantidades de serotonina, dopamina e oxitocina e embebedemo-nos de amor; soframos um acidente que danifique alguma área desse magnífico órgão e não seremos mais os mesmos, mudaremos existencialmente; nasçamos com algum defeito congénito cerebral e a realidade terá outro sentido; soframos agressividade externa e extrema na infância e todo o potencial que teríamos como adultos se distorcerá; tomemos qualquer tipo de droga química que não a produzida naturalmente pelo corpo e a realidade apresentar-se-á completamente distinta à nossa percepção, enquanto se mantem, no mesmo período espácio-temporal, igual ao que sempre foi para quem não a tomou; encerremo-nos numa gruta de um qualquer deserto, em pura meditação, abstendo-nos de qualquer estímulo sensorial ou da satisfação de necessidades básicas, e veremos deuses, anjos imateriais que necessitam de asas para voar no mundo material, demónios hediondos a espicaçar pecadores que se contorcem num fogo eterno, exibindo expressões de dor só possíveis na física da carne – um mundo material a materializar-se num mundo metafísico porque a entidade responsável por o elaborar evoluiu nesse sentido.

Sobre Deus nada se sabe pois nunca se apresentou à humanidade, apesar de insistentemente ouvirmos quem afirme saber o que ele pretende. E esqueçamos todas as visões transcendentais, as experiências místicas, os milagres que curam doenças curáveis ou rearranjam desordens mentais. Todos não passam de grandes embustes, de erros de interpretação, de alucinações, de acidentes químicos. Já quanto aos sentimentos, não só sabemos como e onde se originam, como sabemos o porquê de existirem. E podem perfeitamente demonstrar-se ou aferir-se. Uma vez que eles existem como reguladores de interacção social, podemos observar o resultado que as acções que eles produzem provocam nos outros, assim como podemos senti-los e geri-los a nosso bel-prazer, da forma que nos for mais conveniente. Quando não o conseguimos fazer, isso significa que ainda não atingimos a maturidade ou que algo interferiu com o normal funcionamento da máquina biológica, transtornando a experiência existencial. É nessa altura que quem se sente incompleto ou deslocado procura ajuda ou salvação, porque não compreende ou não se compreende.

Podemos não ter todas as respostas, mas as que temos são suficientes para solucionar muitos dos problemas que apenas existem porque insistimos em colocar questões que há muito estão respondidas, tendo por isso deixado de o ser. E é uma pena que nem toda a gente tenha acesso a elas ou que não as saiba compreender e, muitas vezes, aceitar.

Quer queiramos quer não, não passamos do resultado da interação de complexos processos químicos que ocorrem dentro do tubo de ensaio craniano e que nos dão a noção de ser. Deus, como qualquer sentimento, sonho, ilusão ou suposição, apenas se manifesta nesse espaço restrito e confinado. Mas se o sentimento tem um resultado prático, já Deus é apenas uma questão que se vai sumindo aos poucos à medida que a respondemos, tornando-se desnecessária tanto para explicar como para compreender.

12 de Setembro, 2013 David Ferreira

11 de Setembro de 2001 – In memoriam

As memórias são como os vinhos. Evoluem com o passar do tempo. As boas apuram-se, tornando-se inesquecíveis, e as más avinagram-se, tornando-se igualmente inesquecíveis. Ambas são fruto de condições particulares. E só prevalecem as que se extremam porque fogem à norma.

11 de Setembro de 2001. O calor de Díli envelhece prematuramente o corpo e a vontade. Os corpos, moldados às diferentes estações europeias, soporizam. Tolda-se o juízo que o ai-manas* se encarrega de espevitar, acicatando a língua e espevitando a libido. O excesso de humidade sufoca e a pele é um filtro em permanente sudação.

O restaurante City Café é um dos locais mais “in” da capital de Timor Leste, local onde diariamente se reúnem as tribos de burocratas das Nações Unidas, civis e militares, para destilar a fadiga da rotina extenuante em que se tornara a construção de um novo país. O dono, um português que não resistira às maravilhas do oriente, um simpático anfitrião sempre disponível a receber quaisquer convivas provenientes de países tão distantes como distintos, partilha um sorriso amistoso e jovial, mesa a mesa. Como denominador comum da satisfação geral, uma cozinha aportuguesada, que tem tanto de saudade na apresentação como de deslumbre no tempero.

Celebrávamos a partida antecipada para o “puto” de uns camaradas nomeados para a frequência inadiável de um curso profissional. Na sala privada exibe-se uma enorme tela, fixada, ao fundo. Um quadro branco, inexpressivo, a diluir-se no branco da parede que parece fundir-se com ela ao fim de uns quantos copos de uma boa cepa lusitana. E eis que, por entre brindes de despedida e a mastigação de inesquecíveis crustáceos pincelados a fogo terrestre oriental, entra repentinamente no animado cubículo reservado o dono do restaurante, visivelmente perturbado.

– Liguem a televisão!

– Que se passa?

– Está a acontecer um ataque aos Estados Unidos da América!

– O quê?

– Isso mesmo. É o que parece.

A empregada timorense liga a televisão e a tela exibe uma das torres do World Trade Center a fumegar profusamente, como um gigantesco fósforo aceso que o vento soprara. E com o fumo se foi o jantar, perante o olhar boquiaberto dos comensais.

Haveria de passar o que restava da noite a digerir o faustoso jantar em frente a um ecrã convencional, a descrer do que via, qual crente. Há realidades que nem o sonho mais maquiavélico pode antecipar.

Recordo o meu pensamento após a queda da primeira torre: “Isto é uma implosão!” Recordo o que senti após a queda da segunda torre e, sobretudo, após a queda matematicamente simétrica do edifício anexo que não tinha sido atingido por nenhuma aeronave: “ Não me lixem! Isto são implosões!”

Sem o antecipar, a humanidade tomava um novo rumo. Assim de rompante, entre um trago de Grão Vasco e um ardor a sol na língua. Entre o agridoce sabor do fruto da terra e a amargura de um fruto desidratado que o fanatismo semeou nos céus para colher no paraíso.

Regressado à reconfortante pacatez da Pátria Mãe, haveria de saber mais tarde que a verdade nunca nos é servida de bandeja. Que aquilo que julgamos saber é, muitas vezes, apenas aquilo que outros pretendem que saibamos. Mas também que as verdades paralelas que teorizamos como aparentemente óbvias podem não ser mais que uma bandeja cheia de enganos com que alimentamos a insatisfação de não conseguirmos saber tudo o que esses outros não pretendem que saibamos na totalidade.

A vida é como um jogo de xadrez que todos intentam ganhar. E sempre que um jogador oferece a rainha em sacrifício, tanto desconfia o adversário das reais intenções do estranho ardil com que se depara, como desconfiam as peças do jogo que, surpresas mas condicionadas pela bidimensionalidade do tabuleiro onde peleiam, apenas conseguem vislumbrar a sombra do inimigo a movimentar-se em direção a elas e nunca o gesto da mão que, por cima, noutra dimensão, o movimenta , engendrando planos para o futuro de ambos.

A verdade do jogo, essa, será sempre a do vencedor. Mesmo que seja mentira.

 

* Picante timorense