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  • 25 de Novembro, 2013
  • Por David Ferreira
  • Ateísmo

Humano, demasiado humano

“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigénito, para
que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.”

João 3:16

 

São demasiado evidentes as crises de Transtorno Bipolar do Deus de Abraão enunciadas nos escritos que os seus seguidores consideram sagrados. Nestes se anuncia um Deus cujas metamorfoses existenciais são tão incompreensíveis à luz da razão como as metáforas que os apologistas lhes atribuem e os crentes acolhem indulgentemente. E mais incompreensíveis se tornam pelo facto de estarmos perante a descrição de uma alegada entidade infinitamente perfeita e poderosa. Porque, não obstante toda esta perfeição, não há doença do foro psiquiátrico que não lhe possamos diagnosticar, não há imperfeição que não lhe possamos encontrar. Assim como também não há virtude que não lhe possamos atribuir. E não poderia ser de outro modo uma vez que o resultado da construção simbólica de uma entidade criadora de toda a realidade percetível nunca poderia ser desconforme à predisposição interpretativa e analítica do órgão humano que a executa, mesmo que extrapolada para um plano distinto e puramente quimérico.

Não há deus ou divindade, seja antropomórfica, zoomórfica ou mero fenómeno natural personificado ao qual o método da ignorância atribuiu qualidades sobrenaturais, que não possua características humanas. No seu apogeu, são todas tirânicas e narcisistas, nunca prescindindo de oferendas ou sacrifícios, tanto físicos como espirituais, para apaziguar uma necessidade de veneração excessivamente doentia para seu próprio bem.

Mas talvez nenhuma outra entidade consiga ser tão maquiavélica como este Deus do deserto que surge pela calada a Moisés no Monte Sinai a proibir e a caluniar outros deuses, requerendo no mesmo sussurro transcendente permanente sacrifício e mortificação. Um Deus bipolar capaz de uma birrenta carnificina diluviana com que brinda a sua criação, incapaz de a moderar ou ajuizar, para permitir mais tarde um repovoamento à custa da consanguinidade (o que poderia explicar muito do que se passou a seguir). Um Deus capaz de dar em sacrifício o seu único filho para que todo o que nele venha a crer possa conquistar a vida eterna, mas que não deixa provas credíveis da sua passagem pelo mundo físico, afogando novamente a humanidade, desta vez em obscurantismo e especulação.

Entre apresentar-se à humanidade e revelar o grandioso mistério ou manter-se intangível e inatingível, escolhe precisamente a opção que permite a subjetividade interpretativa e alimenta o egocentrismo doutrinário, perpetuando a confusão de Babel. Este é um Deus que prefere dividir para reinar. Um Deus, diria, quase humano, demasiado humano.