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Carlos Esperança

8 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Notas Piedosas

Holanda – O realizador Theo van Gogh foi sucessivamente baleado, esfaqueado e degolado como represália pelo documentário em que denunciou o tratamento bárbaro a que os muçulmanos do Magreb sujeitam as mulheres. O islão é uma religião de paz.

Évora – A abertura do ano escolar contou com um colorido travesti – o bispo da diocese -, que, com as vestes talares, deu um toque de exotismo às cerimónias fúnebres do início do ano lectivo. O que faz um bispo, numa universidade do Estado, sem estar matriculado?

Bíblia manuscrita – Os presidentes da República, da A.R. e do Tribunal Constitucional acolitaram o patriarca Policarpo na promoção comercial do maior êxito editorial de sempre, embora com poucos leitores. Os copistas, em vez dos 35.700 versículos, não fariam melhor em divulgar Camões, Aquilino ou Saramago?

Evangelização – Um crente entrou dentro de uma jaula de leões para lhes garantir: «Jesus irá salvar-vos». As feras, com pouca fome e menos fé, limitaram-se a arranhar o piedoso pregador, deixando-o nas mãos dos funcionários do zoo em vez de o enviarem directamente para o Paraíso.

7 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Deus está em parte incerta

Deus, cansado das asneiras que fez, das maldades que praticou ou envergonhado dos seus preconceitos, afastou-se para lugar incerto e, depois da invenção da escrita, nunca mais deu sinais de vida. A Revolução Francesa veio criar um habitat incompatível com a presença divina. O sufrágio universal reduziu-o à sua insignificância e, por não se ter inscrito nos cadernos eleitorais, passou a valer menos do que qualquer eleitor.

Aqueles truques que fazia no Mar Vermelho, as brincadeiras com que embasbacava os primitivos, contrariando as leis da Física, os milagres que exibia para estupefazer os terráqueos, tudo isso foi sendo desmascarado pela ciência ao mesmo tempo que o progresso criou espaços de liberdade que um Deus violento e autoritário não podia suportar. Tal como o patrão que arruinou a fábrica, desapareceu, indiferente à sorte dos operários e fiéis servidores, e nunca mais foi visto nem levado a juízo.

Claro que os empregados mais devotos, os espíritos mais timoratos e os oportunistas mais descarados continuaram a garantir a sua existência e a ameaçar com os castigos de que ele era capaz. Procuram fabricar indigentes mentais como os que em Portugal esperam por D. Sebastião ou aliciar oportunistas com benefícios garantidos, mas sem grandes resultados práticos.

A excomunhão e a fatwa são duas armas que permanecem carregadas de ódio, o Inferno é ainda um destino com que os clérigos assustam os incréus, a penitência e a oração continuam a fazer parte das penas suaves, sempre que meios mais expeditos não são consentidos: a lapidação, a fogueira, a decapitação, a amputação de membros, a explosão bombista e outras manifestações da justiça, aviadas a mando de clérigos com procuração divina, para supremo deleite do Todo-Poderoso.

Ultimamente Deus começou a imiscuir-se, em rigorosa clandestinidade, nos processos eleitorais. Em países democráticos faz pender o prato da balança eleitoral para o lado pior, nos outros vai impedindo eleições com o argumento de que a lei divina não é passível de julgamento pelos homens. Há suspeitas de que Deus visitou recentemente os EUA, passa largas temporadas no Médio Oriente, percorre os países mais pobres de África e anda em campanha por algumas repúblicas da antiga URSS. Onde lhe cheirar a sangue, Deus não falta, para dilatar a crueldade.

Há, contudo, um método, destinado à multiplicação da espécie humana, que lhe saiu mal – a reprodução por estaca (usou um ramo «costela» de um indivíduo para o duplicar). Os humanos descobriram outro método muito mais fácil e imensamente mais agradável. Dizem os beatos que é um método obsceno, apenas tolerável para fazer filhos e nunca para obter o mais leve prazer. Pensa-se que este método tinha-o Deus reservado para o fabrico de tractores mas os humanos apropriaram-se dele muito antes de os tractores terem sido inventados sem ajuda divina.

6 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

O Presidente da República e a Bíblia

A Sociedade Bíblica de Portugal tem um marketing agressivo cuja legitimidade se não contesta. Tentar atrair patrocinadores e figuras de destaque para a promoção do seu único produto – a Bíblia – é um direito que lhe assiste.

Há, todavia, dois aspectos que me repugnam:

– que o projecto tivesse sido declarado como sendo «de superior interesse cultural» pelo ministério da Cultura embora, neste caso, fosse uma forma de ter ficado a saber que o actual Governo tinha um ministério com esse nome;

– a presença do Presidente da República, bem como dos presidentes da A. R. e do Tribunal Constitucional constituem um lamentável patrocínio a uma actividade privada, com grave prejuízo da ética republicana e do princípio da separação das Igrejas e do Estado.

Quanto ao PR, por quem nutro grande estima pessoal, e sem quebra do respeito que lhe é devido, fico perplexo com a sua presença. Também não gostaria de o ver no lançamento de um projecto ateísta, igualmente respeitável, e muito mais adequado às suas convicções.

A vitória de Bush, que prometeu apelar à fé (espera-se que com entusiasmo equivalente ao de Bin Laden), vai contaminando o mundo onde a interferência das igrejas na política se manifesta cada dia mais perigosa.

4 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Perigo da religião na política

No rescaldo da vitória eleitoral de Bush (Diário as Beiras, 04-11-2004), o pio colunista Joaquim Cardoso Duarte (JCD) reincidiu numa homilia mansa, contra o laicismo, no artigo «A importância da religião na política». Importância ou perigo?

Ao regozijar-se por Bush e Kerry serem ambos crentes, assinala que «o grau de pertinência e de conformidade com a fé é claramente maior em G. Bush (…) nomeadamente (…) no aborto». Podia referir que outros americanos, cujo grau de pertinência e de conformidade com a fé é mais exuberante, não hesitam em matar médicos e enfermeiros que trabalham em clínicas que procedem a práticas abortivas.

A explicitação da fé, comum nos políticos americanos e que tanto satisfaz JCD, não contém Bush no entusiasmo pela pena de morte, no gosto por guerras preventivas, na complacência pela tortura nem no desprezo pelo direito internacional. O cristianismo ficaria melhor servido se ele calasse as suas convicções religiosas.

«Os americanos não têm vergonha nem preconceitos sobre a religião e essa é certamente uma das marcas da sua grandeza» – escreve JCD. Com este argumento teremos de concluir que a demência do fascismo islâmico pede meças, na sua grandeza, ao ar beato alardeado por Bush. Os muçulmanos têm ainda maior orgulho na religião e assassinam com mais fé. As religiões, que se odeiam entre si, não admitem o ateísmo. Por que razão Bertrand Russell foi impedido de leccionar nos EUA, onde as pessoas, ainda hoje, temem confessar-se ateias?

Liberdade religiosa é o direito de praticar qualquer religião ou de não praticar, de mudar de credo ou de prescindir dele. É esse o direito em França, que JCD abomina, e nas outras democracias.

Deixou-me perplexo a referência a «uma Europa que não deixava lugar para a expressão das suas convicções religiosas». Quando existiu essa Europa? Houve, isso sim, um tempo em que quis submeter todos à religião única e impor o Papa como chefe indiscutível. Com excepção do Vaticano há hoje algum Estado europeu sem liberdade religiosa?

O que parece incomodar JCD é o direito à heresia, à apostasia e ao ateísmo, sem que o braço secular submeta os réprobos ao conforto das masmorras e ao aconchego das fogueiras mas, por muito que lhe custe, nas democracias a excomunhão e a fatwa perderam valor jurídico e todos são livres de terem a religião que quiserem, de a abandonarem ou substituírem e de prescindirem de qualquer uma. Reside aí a base das sociedades laicas e tolerantes da União Europeia.

Apostila: Este texto foi enviado ao Diário as Beiras em resposta ao artigo referido.

3 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

História do Diário Ateísta

Em 29 de Julho de 2003 o Ricardo Pinho (RP) escreveu um texto a manifestar dúvidas, que partilhava com o Cachapa, sobre a bondade da ideia de um blog de ateus.

Escreveu então que «é fundamental que os blogs não sejam um espaço onde não se venham a escrever textos». Era a resposta ao entusiasmo do Aires, da Mariana e do Miguel Duarte que pretendiam partir para a nova aventura.

Em 20 de Novembro RP escreveu um texto com as regras de candidatura a «participante do blog». No dia 30 de Novembro o João Vasco anunciou a chegada dos ateus à blogosfera com este segundo e último texto do mês.

Em Dezembro, primeiro mês de experiência, a Mariana, o João Vasco, o Hugo Charneca e o Ricardo Pinho publicaram 17 textos e a foto do 1.º Encontro Nacional de Ateus. Daí para cá é conhecido o percurso.

Penso que podemos considerar o dia 30 de Novembro de 2003, anunciado então pelo João Vasco, como o 1.º dia do Diário Ateísta cujo 1.º aniversário e a respectiva comemoração se aproximam.

3 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Filhas mortas à facada

Abdel Nasser Ibrahim Mahmud, um homem a quem Deus outorgou o privilégio de se tornar «muezin» (uma espécie de tocador de sinos da ICAR, ou seja, o muçulmano que do minarete da mesquita anuncia o horário das orações), esfaqueou até à morte quatro das suas sete filhas e deixou seriamente feridas as restantes três, depois de ter expulsado de casa, um mês antes, a mulher que em 18 anos só lhe deu filhas.

O piedoso muçulmano terá confessado aos vizinhos: «eu matei-as porque não queria meninas, queria um menino». A piedosa selvajaria aconteceu numa das regiões mais retrógradas e piedosas do Egipto (185 km. a sul de Sohag), uma região onde é considerada uma humilhação a ausência de um herdeiro do sexo masculino.

Perante um Deus misógino e cruel, para os crentes cuja demência acompanha a devoção, o crime é um acto de fé, uma forma extrema de busca da santidade e do martírio.

1 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Agradecimentos

O Diário Ateísta agradece a todos os amigos e inimigos que o visitaram o sucesso para que contribuíram.

1 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

Charlatanismo legal

Se um homem, sem emprego nem poiso certo, estaciona a mala numa praça e começa a fazer propaganda a umas caixas de pomada que tira do interior, se diz que o unguento cura o reumatismo e a ciática, regulariza os intestinos e alivia as dores de cabeça, protege os rins e baixa a tensão, cura os diabetes e evita as artroses, esse homem que vende duas caixinhas por metade do preço de uma única, em qualquer casa da especialidade, é um aldrabão.

Se uma cigana, carregada de filhos, de netos e de fome, lê a palma da mão a um casal de namorados e lhes anuncia três filhos e muitas felicidades, um ou outro contratempo e uma longa viagem, largos períodos de muita paixão e curtos amuos, os adverte contra os maus olhados e a inveja, lhes pede um euro por cada linha da sorte que percorreu e acaba por se contentar com uma moeda, reduzindo o número de filhos e o grau de felicidade, é uma aldrabona.

Se um clandestino lhe quer vender um Rolex em platina, mais falso do que um clérigo romano, desviado da alfândega por um larápio em desespero, cheio de fome e medo da polícia, merece ser preso e deportado porque é um vigarista.

Se uma empresa domiciliada num apartado postal põe um anúncio a solicitar-lhe o envio de cinquenta euros, em cheque ou vale de correio, e, em troca, lhe promete um emprego que lhe permite ganhar até cinco mil euros mensais, sem sair de casa, é uma associação especializada no conto do vigário e que deve ser denunciada à polícia como criminosa.

Mas, se uma organização internacional, com rede de vendedores, comercializa indulgências e transportes para o Paraíso, transforma água vulgar em água benta, purifica pecadores com borrifos de hissope, limpa os pecados da alma usando como benzina sinais cabalísticos e ladainhas, distribui rodelas de pão ázimo e diz que contêm o corpo e o sangue de um pregador desaparecido há dois mil anos, fabrica milagres e cria santos, é a ICAR, igreja cujos bispos, padres, monsenhores, cardeais, diáconos e o próprio Papa só pensam na paz e no bem da humanidade. É respeitável e tem direito à protecção e preferência nos seus produtos, através de um convénio comercial a que se chama Concordata. A sede é no Vaticano.

Apostila – Para a ICAR, hoje é dia de todos os santos mas, com o fabrico em série, até o ano inteiro começa a ser curto para caberem tantos.

31 de Outubro, 2004 Carlos Esperança

Crónica piedosa


O Cume: miséria e cinco orações diárias



A aldeia tinha água e luz, a primeira provinda exclusivamente de uma fonte de mergulho, donde jorravam excedentes para o bebedoiro do gado e para a presa onde as mulheres lavavam roupa, e a segunda, do Sol e das estrelas, reflectida pela lua, ou nascida na torcida dos candeeiros a petróleo ou no pavio de candeias de azeite. Mesmo à Sagrada Família que todas as noites viajava de uma casa para outra vizinha, em perpétuas voltas pela aldeia, era o azeite que lhe iluminava as formas e a virtude que as famílias contemplavam através do vidro da caixa de cerejeira. No verão as coisas complicavam-se, tendo as mulheres que deslocar-se à ribeira, para lavarem a roupa, a dois bons quilómetros de distância. Quanto ao gado lá se ia repartindo a água da fonte, bebendo de um balde, à tardinha, primeiro as pessoas que o quisessem e, a seguir, os animais, balde de novo mergulhado para trazer nova água que ora uma burra, ora uma vaca, sobretudo esta, rapidamente esvaziava. Se entretanto acontecia alguém mais querer dessedentar-se, o balde era primeiro enxaguado, essa água vertida numa pia para galinhas, para aproveitar, e, só depois, outra vez cheio, posto à disposição do sequioso que ali mergulhava a boca e o nariz, até mais não querer, dispensado do assobio que estimulava as vacas. As pessoas tinham precedência sobre os animais.

O forno cozia uma vez por mês, desamuado sucessivamente por todos e com a quantidade de lenha fornecida num sistema que sempre funcionara, na razão directa do número de pães de cada família, marcados para evitar confusões. Os tabuleiros vinham de casa onde fora peneirada a farinha, feito o fermento e amassada. Chegados ao forno abendiçoava-se a massa que o fermento e a oração fariam crescer, fingia-se, tendia-se e punha-se a cozer.

A criança que eu era no fim da década de quarenta recorda três homens a quem reconhecia importância – o presidente da Junta, o senhor do Correio e o sacristão. Hoje havia de julgar o alfaiate ou o merceeiro de maior relevância social mas, então, no meu reduzido universo de valores, com o senhor pároco a viver noutra freguesia, sem a obrigação de pedir a bênção a quem quer que fosse, nem a de beijar mãos, por não ser hábito doméstico e gozar do privilégio de ser filho da professora e de um funcionário de finanças, eram eles os mais importantes.

O presidente da Junta era o sr. José Simão. Tratava da horta como os outros, mas era presidente, o primeiro que eu conhecera. A professora precisava da sua assinatura no recenseamento escolar, mas era ele a deslocar-se à escola, acompanhado da mulher, que lhe desenhava o nome pois ele não o encarreirava – segundo ambos alegavam -apesar do treino a que se submetera, começando a derrapar no José, a que sempre faltava o o ou o s e, invariavelmente, o acento, para depois se lhe varrer o i ou o m e aquele endiabrado til que exornava o complicado Simão. Pronto, assinava a mulher, arrumava-se a questão, faça favor de desculpar, minha senhora, o seu marido vem sexta-feira, ainda bem, nesta altura do ano sai da repartição a horas do combóio, são dezasseis tostões, não precisa de vir a pé, são para riba de duas léguas, ainda chega de dia, até amanhã minha senhora.

Um casal simpático aquele, o único que cultivava linho na aldeia e que me deu a oportunidade de ver como uma frágil planta se transforma em fio. Admirei a barrela e a cardação, vi o que fazia a espadela e contemplei a planta que fora a acabar fiada na roca e dobada.

O do Correio era o sr. António Bernardo a cuja casa eu ia levar as cartas e perguntar diariamente pelo correio. Era um camponês que tinha um braço aleijado a que devia uma pequena reforma e o retrato de um jovem de vinte e poucos anos vestido de sargento, como compensação do ferimento na primeira grande guerra. Era o único lavrador da aldeia com três vacas, integralmente pagas, uma burra e algumas ovelhas. Presidia por tradição, que o alvará da Câmara sempre confirmava, aos actos eleitorais.

Um dia acompanhei a minha mãe ao sufrágio durante uma forte chuvada, o que levou o sr. António Bernardo a perguntar respeitosamente por que se tinha incomodado, com um tempo daqueles, coitado do menino, se até já a tinha descarregado, informação cujo alcance me escapou, limitando-se a recolher o voto e a pousá-lo sobre a mesa. Percebi que já não era preciso introduzi-lo pois já lá estava, não aquele, que era impossível introduzir antes de chegar, mas outro igual, que tinha o mesmo valor e igual intenção. Disse mesmo que já estavam descarregados todos os eleitores mas que a lei obrigava a manter a porta aberta, e a lei é a lei, não acha Sr.ª professora, e para a respeitar e fazer respeitar ali estava ele, ninguém melhor que ele, até já fora presidente da Junta antes do José Simão, por isso só quando a hora canónica chegasse é que se fechava a porta e, nessa altura, é que pediria à Sr.ª professora para preencher uns papéis que era preciso, que ele não se ajeitava e os que estavam com ele ainda menos, no tempo deles não havia escola, o trabalho não era muito, todos tinham votado, graças a Deus, mesmo o Germano que Deus tem, se fosse vivo também não deixaria de votar ou, se o tempo estivesse assim e andasse com o gado, não se importava que nós o descarregássemos.

Era um bom homem, a quem o sr. Prior confiava a orientação do terço, designado por mês de Maria, que em Maio todos os dias tinha lugar na aldeia, a mando de Nossa Senhora e a rogo da irmã Lúcia, pela conversão da Rússia. Devia ser por igual delegação de poderes que lhe cabia a orientação da novena que todos os anos, quando a canícula fustigava o renovo, despovoava a aldeia para ser rezada junto a uma pia que ficava a mais de um quilómetro, na quinta do sr. Morgado. Lembro-me bem dessas peregrinações, que acompanhei várias vezes com devoção, e da eficácia demolidora de uma dessas novenas que transformou o normal pedido de chuva numa trovoada devastadora com os crentes a queixarem-se do excesso de fé, da molha e dos prejuízos.

O sacristão era coxo. O nome verdadeiro encontra-se, se acaso o soube eu, arquivado na desmemória de sexagenário. Todos o tratavam por Ti Mijinhas.Sempre julguei apanágio do múnus o cheiro dele, antes de saber que o efeito conjugado da incontinência urinária e da relutância ao banho era a causa necessária e suficiente de um odor que as pituitárias da época, muito mais conformadas e cristãs, assinalavam com nauseada tolerância.

Era ele que ajudava o sr. pároco a paramentar-se, cargo que à época conferia algum prestígio, se encarregava de agitar a campainha quando o sr. Prior passava com a hóstia em frente do Santíssimo, no sentido ascendente e no descendente, estridente toque que me levou muitas missas e cuidada averiguação a localizar. Eu julgava que era o efeito da passagem da hóstia à frente do sacrário que produzia o som, qual célula fotoeléctrica, antes de ter descoberto que o mesmo se devia à campainha com quatro chocalhos cruzados, agitada pelo sacristão, a razoável distância, no momento adequado das exéquias.

Mas era a eucaristia que enobrecia o homem pela singularidade das funções. Cabia-lhe acompanhar com a patena a trajectória das hóstias que do cálice eram transportadas pela mão do oficiante até à língua dos devotos, espécie de rede protectora a impedir que o corpo de Cristo caísse desamparado por alguma manobra mais infeliz ou desajeitada do oficiante, mera precaução para um eventual acidente nunca registado. Nesses momentos até parecia que a perna mais curta do coxo, que o sacristão sempre fora, se adequava melhor à função do que se ambas lhe tivessem crescido iguais.

Era ele que transportava a caldeirinha da água benta com o hissope mergulhado à espera que o sr. prior o sacudisse vigorosamente sobre os paroquianos para os aspergir e abençoar. Cabia-lhe ainda acender as velas e apagá-las, guardar as alfaias, dobrar e arrecadar os paramentos. Os trabalhos menos nobres, a limpeza da Igreja, o tratamento dos paramentos, a mudança da roupa aos santos e outras tarefas menores, de grande interesse para o culto e razoável benefício para a alma, eram destinados a mulheres que disso se encarregavam em obscura dedicação.

Já depois de dita a missa, enquanto se rezavam as últimas orações, uma espécie de IVA para prolongar o santo sacrifício, lá ia o Ti Mijinhas de bandeja em punho pedir para vários fins, conforme o domingo. O mais usual era o «costolado da oração» que anos depois a minha mãe me esclareceria tratar-se do «apostolado da oração», o que não alterava o valor do óbolo nem confundia a devoção daquela gente pobre.

Fica fora desta crónica a Ti Ismelindra, corruptela de Ermelinda, nome que ela própria desconhecia ter, parteira voluntária a cujo currículo adicionou dois irmãos meus que naquela aldeia encontraram a nossa mãe na altura de virem ao mundo.

Mas é sobretudo uma pequena população analfabeta que resistia à miséria e a cinco orações diárias, que circulava descalça sobre a neve e a geada, por cima de silvas e tojos, que nunca usou relógio ou tomou banho, que pedia brasas para acender o lume, cujas casas eram muitas vezes de terra batida e de paredes sem reboco, que, para se poder vestir, vendia os presuntos do porco que criava, os queijinhos que fazia, pequenos rolos de manteiga que enfeitava com o cabo de uma colher, os molhos de agriões e meruges colhidos nos regatos, os ovos, e calcorreava duas léguas, para percorrê-las de novo no regresso com o pecúlio rendido na praça da Guarda, é essa população que um dia hei-de recordar, menos na fome que a consumia e nas carências proteicas que lhe dilatavam o ventre dos numerosos filhos, mas na sua solidariedade inexcedível e no espírito esmoler que a exornava. Talvez um dia.

Publicado em 21-03-03 no JF, tendo destacado a negrito: «O Cume é uma pequena aldeia, sede da freguesia de Vila Garcia que forma com as anexas Cairrão e Carapito. Tem (ou tinha) um apeadeiro de comboio no troço da linha da Beira Alta que liga Guarda a Vilar Formoso, precedido pelo da Gata e tendo a seguir o de Vila Fernando».

30 de Outubro, 2004 Carlos Esperança

Sequestrados em nome de Deus

Em numerosos países há casas sombrias, de débil transparência, habitadas por criaturas de um único sexo, com actividades e costumes suspeitos. A singularidade sexual e o aspecto soturno distingue-as dos bares de alterne, com muito maior transparência e alegria. Refiro-me aos conventos. Uns, são de freiras, vestidas com uma espécie de burkas brancas ou azuis; outros, habitam-nos os frades, com trajes aligeirados, preferindo a cor castanha e o burel. Todos têm como autoridade suprema o bispo da diocese, excepção feita ao Opus Dei, cujas actividades clandestinas reportam apenas ao Papa. A todos são exigidos directores espirituais, que orientam os reclusos no caminho da salvação, celebram a santa missa, ouvem os pecados, impõem penitências e aterrorizam com o Inferno.

Sabe-se que faz parte da vida parasitária dedicarem-se à contemplação mística, à oração, aos jejuns e a receber visitas esporádicas da fauna celeste. A Lúcia, por exemplo, foi visitada várias vezes pela senhora de Fátima, num tempo em que os transportes eram baratos, e uma vez pelo próprio Cristo, cansado do Céu e da coroa de espinhos.

Se os países se regessem por sãos princípios da laicidade, na defesa dos direitos, liberdades e garantias, certamente que assistentes sociais, autoridades policiais, psiquiatras e psicólogos, além de agentes responsáveis pela higiene e sanidade, visitariam esses antros, onde há fundadas suspeitas do exercício de cárcere privado, fenómenos de coacção psicológica e vítimas de depressões profundas. No entanto, a influência política da ICAR e de outras religiões ainda menos recomendáveis, impedem que as autoridades zelem pela defesa dos direitos humanos na totalidade do território dos diversos países onde as vítimas se encontram. Em nome de Deus, há sofrimentos que o sadismo religioso cultiva por maldade, entre os enclausurados, sob o alibi de interpretar a vontade de Deus e de realizar vocações.

Uma investigação independente às restrições de direitos, liberdades e garantias de que são espoliados os frades e as freiras, bem como às eventuais sevícias e às precárias condições de higiene a que estão sujeitos, é uma necessidade urgente. Em nome da democracia, da liberdade e da dignidade humanas.