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Perigo da religião na política

No rescaldo da vitória eleitoral de Bush (Diário as Beiras, 04-11-2004), o pio colunista Joaquim Cardoso Duarte (JCD) reincidiu numa homilia mansa, contra o laicismo, no artigo «A importância da religião na política». Importância ou perigo?

Ao regozijar-se por Bush e Kerry serem ambos crentes, assinala que «o grau de pertinência e de conformidade com a fé é claramente maior em G. Bush (…) nomeadamente (…) no aborto». Podia referir que outros americanos, cujo grau de pertinência e de conformidade com a fé é mais exuberante, não hesitam em matar médicos e enfermeiros que trabalham em clínicas que procedem a práticas abortivas.

A explicitação da fé, comum nos políticos americanos e que tanto satisfaz JCD, não contém Bush no entusiasmo pela pena de morte, no gosto por guerras preventivas, na complacência pela tortura nem no desprezo pelo direito internacional. O cristianismo ficaria melhor servido se ele calasse as suas convicções religiosas.

«Os americanos não têm vergonha nem preconceitos sobre a religião e essa é certamente uma das marcas da sua grandeza» – escreve JCD. Com este argumento teremos de concluir que a demência do fascismo islâmico pede meças, na sua grandeza, ao ar beato alardeado por Bush. Os muçulmanos têm ainda maior orgulho na religião e assassinam com mais fé. As religiões, que se odeiam entre si, não admitem o ateísmo. Por que razão Bertrand Russell foi impedido de leccionar nos EUA, onde as pessoas, ainda hoje, temem confessar-se ateias?

Liberdade religiosa é o direito de praticar qualquer religião ou de não praticar, de mudar de credo ou de prescindir dele. É esse o direito em França, que JCD abomina, e nas outras democracias.

Deixou-me perplexo a referência a «uma Europa que não deixava lugar para a expressão das suas convicções religiosas». Quando existiu essa Europa? Houve, isso sim, um tempo em que quis submeter todos à religião única e impor o Papa como chefe indiscutível. Com excepção do Vaticano há hoje algum Estado europeu sem liberdade religiosa?

O que parece incomodar JCD é o direito à heresia, à apostasia e ao ateísmo, sem que o braço secular submeta os réprobos ao conforto das masmorras e ao aconchego das fogueiras mas, por muito que lhe custe, nas democracias a excomunhão e a fatwa perderam valor jurídico e todos são livres de terem a religião que quiserem, de a abandonarem ou substituírem e de prescindirem de qualquer uma. Reside aí a base das sociedades laicas e tolerantes da União Europeia.

Apostila: Este texto foi enviado ao Diário as Beiras em resposta ao artigo referido.