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Autor: André Esteves

2 de Maio, 2005 André Esteves

Um obituário para dois modestos gigantes

Dois dos homens que mais influência tiveram nas nossas vidas, morreram nos últimos dias.

Um deles carregava com o fardo de ter construido as primeiras bombas atómicas e foi o primeiro observador informado no local, da destruição atómica em Hiroxima e Nagasaki. Foi um dos primeiros homens a propor o controle dos arsenais nucleares e a propor a observação do espectro dos microondas à procura de sinais de vida extraterrestre. O outro, sobrevivente de uma família destroçada pela pobreza e pelas doenças infecto-contagiosas, ao descobrir uma cópia escondida da «Origem das espécies» de Charles Darwin, encontrou o estímulo para estudar e tornar-se um dos maiores microbiologistas do século XX.

Falo de Phillip Morrison e Maurice Hilleman.

Talvez o leitor não os conheça, mas o facto de hoje estar vivo talvez se deva aos dois.

Phillip Morrison iniciou a crítica inteligente e informada dos cientistas atómicos (os mesmos que construiram a bomba) ao complexo político-religioso-militar-industrial americano que via a bomba como uma benção de Deus à américa e assim ajudou a afastar o espectro da guerra nuclear global. Maurice Hillerman criou mais de 20 vacinas ao longo da sua carreira como microbiologista. Salvaram, não-linearmente, centenas de milhões de pessoas ao longo da segunda metade do século XX.

Eu conheci Phillip Morrison a partir das páginas da Scientific American, e tive a oportunidade de seguir a sua excepcional série de divulgação científica, «The Ring of Truth».

Numa altura em que se glorifica e mistifica a imaginação do público pela ciência com a última masturbação da física teórica, Phillip Morrison conseguia tornar entusiasmantes e óbvios conceitos e experiências basilares da física.

É inesquecível o episódio em que o átomo é nos revelado. Como usando um lago e uma colher de óleo de cozinha conseguimos obter uma estimativa do tamanho dos átomos e sempre insatisfeitos, vamos de descoberta em descoberta até vermos, literalmente, os átomos á nossa frente.
Ou outro episódio, dedicado à natureza do método científico em que nos são apresentadas as duas faces da mesma moeda: a percepção e a ilusão. Recorrendo à magia e ao ilusionismo somos introduzidos à teoria dos erros e aos cuidados que temos que ter ao percepcionar o mundo que nos rodeia. Ainda hoje, a maioria dos divulgadores científicos foge desse assunto com preconceito, tratando-se na verdade, uma das maiores lições de vida que a ciência nos pode dar.

Apesar de ter passado a vida diminuído pela doença e preso a um carrinho de rodas, Phillip Morrison transbordava de uma sede de conhecimento e felicidade em explorar tudo, que lhe preenchia a vida e contagiava quem o podesse ouvir e conhecer.

Maurice Hilleman nunca se alardeou dos frutos do seu trabalho. Fazia-o porque estava apaixonado por ele. Criou as técnicas modernas de produção de vacinas em massa, bem como a forma liofilizada das vacinas modernas que podem ser guardadas durante longos períodos de tempo em segurança.
Em 1957, antecipou e eliminou uma pandemia global de gripe, tornando-se o primeiro homem a criar uma vacina para uma forma mutante futura de um vírus. Estima-se que o último surto equivalente, a gripe espanhola, matou pelo menos 100 milhões de pessoas.

Hoje, estamos vivos graças ao seu trabalho.
Vivos porque, algures em Montana, uma biblioteca salvou uma cópia da «Origem das Espécies» de Charles Darwin das leis de censura da cidade, fundamentalista cristã. O então adolescente Maurice Hilleman encontrou aí a sua paixão pela biologia, ao descobrir uma outra maneira de ver o mundo com que lidava como míudo do campo. E utilizou o que aprendeu com Darwin para prever e antecipar a evolução de vírus e salvar vidas.

Sem seguidores, crentes e máquinas de propaganda para enganar os homens, sem báculos e tiaras, eram luzes na escuridão. Modestos gigantes desconhecidos.

Humanos como nós, eu vos saúdo.

Links:
– Obituário no The Guardian de Hilleman
– Obituário no MIT de Morrison
– Morrison na Wikipedia
– Hilleman na Wikipedia

18 de Abril, 2005 André Esteves

O Kitsch da Fé

A minha avó materna morreu na passada semana.

A morte não me é estranha. Conforme os anos vão passando, inevitavelmente o número de féretros vai aumentando, até que culmine no nosso. Ser ateu e olhar a morte nos olhos dá-nos uma perspectiva diferente dos outros. Não nos enganamos a nós próprios acerca do destino final do nosso eu. Isso aumenta a intensidade com que vivemos a vida e ao mesmo tempo, dependendo do homem, faz crescer em nós um certo grau de desprendimento com o que outros consideram importante.

Velei o corpo da minha avó. Ao contrário do que a propaganda e educação religiosa envenenam na percepção comum, um ateu não é um abjecto niilista (coitado do niilismo) em relação às cerimónias à volta da morte. Pelo contrário, apercebemo-nos de nuances práticas, da história e necessidades que aos olhos dos outros se encontram escondidas pelo seu medo.

Velamos o corpo, por tantas razões práticas… Ao vermos o corpo à nossa frente, hirto, a demonstrar os sinais ocultados da decomposição, somos confrontados com a inevitabilidade da morte do nosso ente querido. À memória do vivo é associada a memória do morto. Isso ajuda-nos a avançar no processo do luto. Há outras consequências práticas: a comunidade certifica-se que o morto não será enterrado vivo, bem como posso imaginar, no dealbar da humanidade protegia-se o corpo dos animais selvagens, antes de ser sepultado, em segurança, durante o dia. A necessidade do luto, a consciência da morte, e podemos ver isso pelos vestígios arqueológicos, pelo tratamento dado aos mortos, é a marca do nascimento da noção do tempo e da mudança no cérebro humano. As ofertas de flores, por exemplo, são uma tradição já de si paleolítica. Afastam o mau cheiro, bem como permitem demonstrar o nosso apreço pelo falecido.

Mas há mais pormenores locais e das culturas que se vão acumulando. Por exemplo, a minha avó foi a enterrar num caixão, mas envolvia-a uma mortalha branca. Um pormenor característico do Alentejo e que é herdado da cultura semita judaica ou muçulmana.

Mas considerando tudo isto, o que me veio à mente quando olhei para aquele Cristo de plástico na tampa do caixão, a velar, indeciso, pelo morto foi isto: indo às raízes da história da humanidade e eliminando os sucessivos aculturamentos impostos por missionários e conquistadores, o que sobra do catolicismo e do cristianismo?

O Kitsch…

Fui para fora da sala, fumei um cigarro e dei uma gargalhada.
Foi com o que fiquei da minha avó: ainda se ria do absurdo da vida com 84 anos.
Um sentido de humor imperdoável.

6 de Abril, 2005 André Esteves

Homopapa, o superpapa

Chega-nos da Colômbia a notícia de que, aproveitando todo o momento mediático, um artista de banda desenhada arrancou com a publicação de uma BD do papa.

Ilustrando a sua vida? – perguntará o leitor.

Não. O papa será um super-herói. Ressuscitado da morte para combater satanás. E como qualquer leitor de quadradinhos sabe, um super-herói, neste caso o «homem-papa», «Homopapa» ou «Homopater» não dispensa toda uma parafernália de equipamento com poderes especiais no combate do mal.
É a capa anti-satânica, o ceptro energético, são as calcinhas da castidade, os bolsos cheios de imagens menoritas, àgua benta e uma bíblia sagrada. Um bom super-herói não dispensa nenhuma ferramenta para um trabalho bem feito! Afinal, os seus arqui-inimigos muitas vezes nem usam calcinhas.

Segundo o autor, o homopapa irá ter crossovers (expressão do meio, que descreve histórias onde vários super-heróis se encontram) com o super-homem e o batman. Com os quais, o homo papa irá aprender a lutar contra o mal.

O autor, católico não praticante, nega qualquer oportunismo e declara-se um grande admirador de sua santidade, aprestando-se a dizer que esta é a sua maneira de o homenagear.

O que é que querem que eu diga?! O circo começa e o homem nem sequer está enterrado. De um lado temos os católicos de elite com voos místicos e apocalípticos, passando pela numerologia barata, do outro os católicos não praticantes cheios de esperteza saloia.

E ainda querem que não se ligue ao kitsch e aos fait divers? Como haviamos de nos rir de nós próprios e da humanidade? A realidade será sempre mais estranha que qualquer ficção…

P.S-> O autor será publicado pela DC Comics e já planeiam a distribuição no México e na Polónia, para além da Colômbia natal. Pelo andamento da carruagem ainda se publica em Portugal.

5 de Abril, 2005 André Esteves

RTP1 mantem as católicas aparências

São 1:41 da manhã e a RTP1 está a passar um telefime sobre o famoso «julgamento dos macaquinhos» em 1925 no Tennesse. John Scopes, um professor de uma escola primária foi preso por explicar a evolução aos seus alunos, contrariando a famosa lei Butler que proibia o ensino da evolução nas escolas do estado de Tennesse.

Já tive a oportunidade de ver o telefilme e trata-se, na minha opinião, de mais uma lavagem de um clássico de Hollywood, em que o politicamente obrigatório hollywoodesco pinta, como de costume para não desagradar demais os seus espectadores fanáticos, os ateus como nihilistas psicóticos que procuram perseguir a religião, na figura do jornalista Hornbeck.

Mesmo assim, o filme original é considerado um dos filmes melhor realizados de todos os tempos e produziu uma peça para a broadway que hoje é representada, algures no planeta, todos os dias.

A escolha da RTP não é inocente. Tratam-se de migalhas para manter as aparências. Tendo-se embrenhado na orgia mediática à volta da morte de Karol Wojtila que o lobby católico preparou nos meios de comunicação social, tentam com esta gotinha acalmar críticas que provavelmente têm sentido por toda a parte…

Querem queixar-se? O número da linha de Atendimento ao Espectador da RTP1:

707 789 707 (horário: das 9 ás 24 horas)

Chega da/do papa que nos querem fazer comer!!!
Chega de pintarem os ateus e agnósticos como o bicho papão!!!
Se não for a constituição, também pagamos impostos!!!