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Da Caixa de Pandora sai um Cavalo de Troia

De acordo com a Constituição da República portuguesa, é inviolável a liberdade de consciência, de religião ou de culto. Esta determina ainda que ninguém possa ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou práticas religiosas.

A recente decisão do Tribunal Constitucional que deu razão à magistrada cuja pretensão de isenção de trabalho aos sábados devido a convicções religiosas pessoais tinha anteriormente sido recusada por duas vezes, uma pelo Supremo Tribunal Administrativo e outra pelo Conselho Superior do Ministério Público, para além de ter originado um aceso debate na opinião pública, abriu uma Caixa de Pandora cujos demónios libertados prometem vir a ser um verdadeiro Cavalo de Troia colocado bem no centro da laicidade do Estado à custa de uma pretensa justiça que se propôs repor.

Já noutro acórdão recente o Tribunal Constitucional tinha dado razão a uma funcionária que recorrera à justiça após a empresa em que trabalhava há 21 anos a ter despedido por faltar ao trabalho aos sábados devido a questões confessionais. Apesar de quatro processos disciplinares, a funcionária deu preferência aos preceitos da sua religião em detrimento das suas obrigações contratuais. Casos semelhantes já tinham levado um ex-Provedor de Justiça a defender que a dispensa de trabalho por motivos religiosos se deveria estender a todos os trabalhadores. Um conceito de justiça fomentador de um regime de exclusividade com laivos de nepotismo.

Foram publicados recentemente dois textos neste Diário nos quais foi abordada esta questão e que suscitaram uma série de comentários onde cada um procurou manifestar a sua opinião de acordo com a interpretação particular que fizeram tanto da decisão do Tribunal Constitucional como do próprio conceito de liberdade religiosa. Como seria de esperar, e descartando as consuetudinárias e ternurentas desavenças, assim como os extremosos e militantes insultos de longa data, as opiniões divergem. Outra coisa não seria de esperar uma vez que o tema levanta uma série de questões a situações que poderão potenciar futuros conflitos entre entidades empregadoras e trabalhadores.

Não colocando em causa a decisão do tribunal, que deve ser respeitada, resta-me apenas discordar dela como cidadão, um direito que me assiste. Como se não tivesse antecipado o oportunismo que ela despoletaria!

Segundo os juízes do TC, “O Estado não assegura a liberdade de religião se, apesar de reconhecer aos cidadãos o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar.” E é esta interpretação particular da Constituição e da liberdade religiosa que me incomoda porque a interpreto como a subjugação dos direitos e deveres colectivos dos cidadãos e do próprio Estado, ou seja, da sociedade, aos caprichos individuais dos crentes mais devotos de cada uma das inúmeras religiões registadas.

Se tivermos em conta que cada uma destas religiões se reveste de idiossincrasias desconformes ao nível de desenvolvimento civilizacional em que nos encontramos neste período da história da humanidade, só me resta concluir que medidas ou interpretações excessivamente progressistas apenas contribuem para o retrocesso das sociedades (aliás, vemos os seus resultados negativos por toda a Europa no que se refere à tolerância ao Islão fundamentalista), sobretudo se tivermos em conta a questão religiosa num Estado cuja administração se pretende imune e isenta das pretensões quiméricas de uma governação alicerçada em preceitos doutrinários e filosóficos surrealistas que o conhecimento científico se encarregou de desmantelar peça a peça.

Ao Estado deveria competir a garantia da liberdade de prática ou da escolha de culto dos seus cidadãos, não o empenho em assegurar que a sociedade se adapte a conflituosos e condicionantes caprichos que resultam de obstinações privadas e pias de quem professa um credo específico.

Foi aberta uma caixa de pandora. Os ventríloquos de Deus agradecem. Haverá alguém no mister da justiça capaz de fazer de advogado do diabo? A laicidade agradece. Ou não será mais a laicidade suficiente para conter as aspirações dos filhos de um pai ausente?