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  • 4 de Maio, 2014
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

SODOMA – Crónica

Naquele tempo, andava Deus na divina ociosidade a que se remeteu depois de ter criado o Mundo, quiçá arrependido do estratagema que engendrou para que os animais se multiplicassem, a ruminar uma desculpa por ter incluído a macieira quando fez as plantas, sabendo que sem Eva e sem maçã estaríamos todos, ainda hoje, condenados ao Paraíso e ao tédio.

Tinha acontecido o dilúvio e a engenharia ousado construir a torre de Babel. O primeiro foi um susto bem pregado e uma experiência radical e a segunda um enorme fracasso e uma extraordinária confusão.

Pelas planícies do Mar Morto estendiam-se cinco cidades que tinham níveis diversos de progresso, costumes e interesses diferentes. Brilhavam Sodoma e Gomorra pela enorme riqueza, com um nível de vida de causar inveja, graças ao sector terciário que então não tinha ainda designação adequada por não haver economistas encartados. As outras eram menos importantes, a acreditar no primeiro livro do Pentateuco.

Vinha do Norte o ar quente que, depois de percorrer e acariciar as águas do mar, entrava suavemente em Sodoma para animar os corpos, inebriar a alma e soltar a fantasia de que o mundo era capaz, na sua difícil infância, e produzir um indizível arrebatamento.

Homens e mulheres contavam instantes do tempo breve que o expediente dos escritórios lhes tomava, para cultivarem, a seguir, todos os prazeres febrilmente sonhados. Mesmo nas horas de trabalho não se coibiam de ser felizes e soltarem a imaginação. Os afazeres que o desenvolvimento tecnológico se tinha encarregado de aliviar eram cada vez mais um mero resquício para justificar a maldição bíblica que viria a ser criada com efeitos retroativos. O trabalho era um bem muito escasso e, dele, ninguém se quisera apropriar.

Como os livros ainda não tinham sido inventados, todos liam o livro da vida através dos sentidos. Tinham-se habituado a usar o corpo e a dar-lhe alma. Eram desmesuradamente felizes a ponto de esquecerem Deus e os seus ensinamentos, as ameaças e maldições, o sofrimento e a cultura que o inventara. E, porque eram felizes, não os atingia a doença, a fome, o medo ou a guerra.

Imagina-se o seu grau de felicidade pela intensidade da cólera divina, que enviou o fogo que destruiu Sodoma e, com ela, as outras cidades, e, com os adultos que se divertiam, as crianças, que ainda não sabiam folgar, e também os velhos que tinham esquecido já os divertimentos, se algum dia os conheceram, e, talvez, algum anjo que tivesse tentado pôr termo ao pecado e acabou violado, chamuscadas as penas no desejo e esturricado, também ele, nas labaredas.

Ao longe, Abraão assistira ao espetáculo que o seu Deus pirómano lhe serviu à hora da sesta, tirando moncos do nariz, enquanto Loth, seu sobrinho, por bambúrrio da sorte ou por morar nos subúrbios, se esgueirava com as filhas e a mulher, tendo esta olhado para trás, apesar da recomendação divina em contrário, e sido transformada em estátua de sal, por ser nela maior a curiosidade do que a obediência.

Para dizer alguma coisa ou por se ter arrependido do fogo que ateara ou, somente, para criar factos que dessem conteúdo ao Êxodo, ao Levítico e a outros escritos, fez Deus, a Abraão, umas promessas que acabariam por dar origem a Israel, muito tempo depois, e dado a Jacob e aos seus 12 filhos o Egipto para se instalarem e cumprirem uma profecia.

Sodoma ficou na memória oral dos povos pelos hábitos sexuais de uma escassa minoria. Conhecendo-se hoje melhor, Deus e os seus humores, a fé e os seus preconceitos, a devoção e a sua intolerância, somos levados a crer que seriam deliciosas as vitualhas, capitosos os líquidos, requintados os hábitos, agradáveis as relações, enfim, felizes os seus habitantes, a ponto de Deus perder a paciência e ser tomado por aquela cólera que o celebrizou.

Terá sido Loth o autor do boato a que se deve o verbo criado a partir do nome da cidade desaparecida. Ou um qualquer viandante saído antes do fogo e ansioso de se pôr ao lado do algoz.