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Categoria: Literatura

9 de Julho, 2015 Carlos Esperança

Poesia e filosofia

Divina Comédia

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N’um turbilhão cruel e delirante…

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»

Antero de Quental, in “Sonetos”

5 de Julho, 2015 Carlos Esperança

Primeira comunhão (Crónica)

Meio século depois vêm-me à memória as doces catequistas da minha infância. A menina Aurora e a sua Tia Ricardina ambas solteiras de muitos anos e beatas de quase tantos outros. Lembro-me do fervor com que me ensinaram a odiar os judeus porque mataram Cristo, os maçons porque perseguiam a igreja e os comunistas porque eram ateus. Recordo o entusiasmo que punham nas orações para que Deus iluminasse os nossos governantes e lhes desse longa vida, apelos ouvidos apenas no que diz respeito à segunda parte.
Nas aulas de doutrina explicavam-me a cor do firmamento, ao pôr do sol, como sendo o sinal de que os comunistas iam matar os cristãos, conforme a Irmã Lúcia tinha revelado, e eu, tão estúpido, que não deixava de ser cristão, com maior medo do Inferno e das suas labaredas, onde apenas se ouviam gritos e ranger de dentes, do que da morte que os ditos comunistas me preparavam.

Penso que era o medo da revelação do 3.º segredo de Fátima que me toldava a razão e me deixava manietado para outras reflexões. Sabia que Deus estava muito zangado, do mesmo modo que toda a gente o sabia, por ouvirmos dizer, bem entendido, e que devíamos rezar o terço para lhe aplacar a ira contra os que não eram crentes mas, não sei porquê, quem pagava éramos nós, talvez por Ele não ter jurisdição nos que não acreditavam, mas isso não podia ser porque Deus era omnipotente, eu só não percebia a obsessão da nossa parte em assumirmos culpas alheias e fazer pagamentos por conta, o motivo de termos de expiar os pecados alheios, isso na época não me admirava, havia muita solidariedade, eram grandes os sentimentos que nos animavam e nobres as devoções a que nos dedicávamos. Assim salvássemos a nossa própria alma de ser frigida no azeite das profundezas, combustível de sabor mediterrânico que alimentava os meios de produção da eterna justiça a cujo suplício estavam destinados os condenados.

Valia-me a certeza de fazer parte dos poucos, poucos é a gente a falar pois na aldeia eram todos, que podiam aspirar à bem-aventurança eterna. A nossa religião era a única que conduzia à salvação, todos os outros estavam errados e faziam muito mal em não se converter. A Santa Madre Igreja, Católica, Apostólica, Romana, estava aberta, nunca compreendi como é que podia haver quem se negasse à conversão e ao caminho da santidade que lhe eram oferecidos, como é que alguém podia duvidar de que o papa fosse o sucessor de Pedro e o representante de Cristo na Terra bem como serem os Senhores Bispos os sucessores dos Apóstolos! Como era possível que os judeus se não arrependessem de ter assassinado Jesus Cristo e persistissem no erro, que os moiros teimassem em permanecer infiéis, vá-se lá perceber a razão de ser mais fácil persistir no erro do que aceitar a salvação. Era tão difícil o entendimento, sobretudo a quem não conhecia a outra parte, e ainda bem, pois era dever de um cristão converter os outros ou, se eles o não quisessem, usar meios adequados para livrá-los do erro.

Por sua vez o Sr. Padre, depois da me ter examinado e aprovado no exame da catequese, declarou-me em condições de iniciar os preparativos para a primeira comunhão. De novo as catequistas se encarregaram de me preparar para a desobriga que a precedia. Foi durante a confissão que, genufletido, depois de uma oração preliminar, me convidou a contar-lhe os pecados. Esforcei-me por recordar as vezes que tinha posto o dedo na malga da marmelada sem saber se de um só pecado, repetido, se tratava ou de tantos quantas as incursões no vaso onde se guardava uma guloseima castanha e muito doce à espera de tentar uma criança. Dava voltas à memória para saber se tinha alguma vez mentido, se tinha maus pensamentos – e isso tinha –, pensava em partir o pião dum colega acertando-lhe com o ferrão do meu, se tinha pecado por palavras ou obras, indiscutível matéria de reflexão e arrependimento, pois eu conhecia palavras feias que não cabia a um cristão pensar e muito menos pronunciar. Mas não era disso que cuidava o Sr. Prior na longa confissão, que eu entendi como proporcional à dimensão dos pecados ou, na melhor das hipóteses, como deferência para com o filho da Sr.ª Professora, mas eu não pensava nesta possibilidade, pois as crianças não são sensíveis à deferência nem à divisão em castas. O reverendo cuidava saber se eu praticava o pecado solitário, maldade de cujo ensinamento o medo que as outras crianças tinham da professora me havia até então livrado, e, perante a minha ignorância, preveniu-me piedosamente por antecipação, antes é que vale a pena não é depois do mal feito, preveniu-me – dizia – dos riscos da cegueira a que podia conduzir-me esse pecado, risco que me afligia bastante, bem como da tuberculose que, apesar da gravidade à época, eu não estava em condições de avaliar.

Perguntou-me ainda se eu fazia marranices, palavra com que acabava de me enriquecer o léxico, o que me deixou perturbado por ser um pecado que eventualmente eu cometesse sem saber, possibilidade de elevado grau de probabilidade pois aos pecados confessados não fora dada importância e aos pecados desconhecidos era dada uma particular e desvelada atenção, aumentando-me a ansiedade e sentimento de culpa, tanto maior quanto mais profunda era a minha ignorância. Explicou-me que o dito pecado era pôr-me em cima das raparigas e fazer zumba, zumba, zumba… e ficou ali a repetir a palavra algum tempo, como se tivesse esquecido o que estava a dizer, até ter recuperado a tranquilidade e ter-me mandado rezar o ato de contrição, que eu tinha na ponta da língua, completamente desinteressado já dos pecados de que eu carecesse de aliviar-me para salvação da alma.

Levei ainda de penitência uns tantos pai-nossos e ave-marias, coisa de pouca monta que me levou a acreditar que os pecados não eram tão pesados nem difíceis de expiar como eu tinha imaginado. A penitência foi cumprida nessa noite antes de adormecer, ansioso pela chegada da meia-noite, hora canónica a partir da qual não podia tomar qualquer alimento sólido ou líquido antes da comunhão onde ia receber pela primeira vez o corpo de Nosso Senhor que, não sei como, cabia numa rodela finíssima de pão ázimo sem fermento nem sal, ainda por cima partida em pedacinhos de que só me coube uma insignificância, de paladar péssimo, que não podia tocar com os dentes, não fosse morder o Senhor, e aquilo colou-se-me ao palato e eu tinha medo de levar lá a língua que podia incomodar Nosso Senhor, que devia ser muito suscetível, e eu a debater-me com aquele pedacinho de farinha que teimava em não se desfazer, mais parecia borracha com cola, mas que eu bem sabia que tinha um alto valor nutritivo como alimento da alma, embora me não desse conta, mas disso estava prevenido pela menina Aurora e pela sua Tia Ricardina, bem como pelo Sr. Prior que na véspera veio pela segunda vez examinar-nos e confirmar a nossa preparação para recebermos Nosso Senhor. Quem não estivesse preparado não era digno, eu era, por ser o melhor aluno da catequese, mas pareceu-me que os menos preparados se deram melhor com a sagrada partícula de que se aliviaram mais cedo do que eu e, de qualquer modo, não tinha havido reprovações.

Não sei se a comunhão me purificou a alma, mas sei que me estimulou o apetite. Foi com uma fome imensa que assisti ao fim da cerimónia da santa missa sem me dar conta que a gula, que começava a devorar-me, era obra do demo que aguardava, para tentar-me, provavelmente possesso, se é que o demónio pode estar possuído dele próprio, ou talvez desesperado na luta quotidiana entre o bem e o mal, qual lutador que não se resigna a atirar a toalha ao ringue, mesmo quando o combate é desigual, quando a alma se tonifica pela oração, penitência e comunhão que são poderosos demonífugos que obrigam o mafarrico a redobrados trabalhos para não perder a quota de mercado a que se julga com direito.

Antes de correr para casa em busca de vitualhas com que pudesse saciar a fome de dezasseis horas de jejum não me esqueci de me persignar, depois de ter molhado de água benta os dedos, mergulhados na pia de pedra que saía da parede ao lado da porta da igreja, água que, apesar do aspeto, pelas propriedades intrínsecas, havia de ser um poderoso desinfetante para as moléstias da alma e um profilático precioso para as tentações que o demo, na sua permanente vigilância e incansável dedicação ao trabalho, não deixaria de fazer.

E eu conhecia o segredo da água benta por tê-la visto preparar pelo Sr. Padre que se paramentou de propósito e transformou um cântaro de água vulgar na dita água benta através das modificações induzidas pelas rezas que acompanharam os sinais cabalísticos, cruzes imaginárias desenhadas no ar, por cima do dito cântaro, enquanto alguns garotos seguíamos com o olhar os tais sinais para ver quando se dava o salto dialético, isto é, a mudança da quantidade em qualidade, ou seja a mudança da água vulgar em benta, sem sabermos ao tempo o que era isso de salto dialético, mas sabendo reconhecer a diferença entre uma e outra, o que era muito mais importante para a eternidade a que não podemos fugir, e bem mais decisivo para a salvação da alma, que estas sociedades modernas querem fazer crer tratar-se de anacronismo, mas que não é, que o diga a Irmã Lúcia que na opinião do Prof. João César das Neves é uma intelectual que os outros intelectuais, que o não são, não aceitam, por arrogância ou despeito, por não terem sido chamados à santidade, vá-se lá saber o motivo, o Professor também não explica lá muito bem, mas sabemos que tem razão, pois até já escreveu vários livros e foi consultor do Prof. Cavaco e não se cansa em meios bastante hostis de alertar para a salvação que hoje, tal como no meu tempo de criança, devia ser um objetivo primordial, mas as pessoas estão menos interessadas no que diz o Papa que nos livrou do comunismo do que na Televisão, que só diz mentiras, e no que afirmam os políticos que são todos uns corruptos e mentirosos que dizem coisas diferentes do que vem na santa Bíblia e, por isso, não podem dizer verdades, e só falam no bem estar material, como se o bem estar material interessasse alguma coisa, como se a alma não fosse o bem mais precioso que as pessoas têm, mas, enfim, estamos a chegar ao fim do mundo e as pessoas não acreditam, a mensagem de Fátima é bem explícita, mas as pessoas não a compreendem, nem sequer compreenderam Sua Santidade quando anunciou o terceiro segredo, mesmo os peregrinos estavam desatentos e não compreenderam, vá-se lá pedir aos outros que compreendam, para isso é preciso ter sido tocado pelo dom da fé que cada vez falta mais, bem pode esforçar-se Nosso Senhor, se os homens não quiserem, depois não digam que não foram avisados.

In Pedras Soltas (Esgotado) – Ed. 2006.

21 de Junho, 2015 Carlos Esperança

O Hissope – Conto pio (10.092 caracteres)

Corria tranquila a vida no convento, cumprido o tempo com orações e refeições frugais a horas certas. Da missa diária encarregava-se o padre Agostinho, confessor e diretor espiritual, com descrições do Inferno, pormenorizadas e convincentes, e de horrores ainda maiores do Mundo, criado por Deus e abandonado nas mãos dos homens. Falava de um ror de pecados inenarráveis que faziam zangar muito Nosso Senhor, cabendo às monjas recuperar-lhe o humor pela oração e sofrimento.
Nas longas horas de meditação, nas rezas coletivas ou individuais, davam-se graças por não partilharem esse espaço que o Diretor Espiritual e a Madre Superiora eram os únicos a ter de transpor, protegidos pelas orações aflitas com que o convento inteiro os acompanhava.

Nessas horas de vigília mística transferiam a intenção habitual para a proteção dedicada e rezavam com a mesma acendrada devoção com que pediam pelas intenções do Santo Padre, sem se interrogarem que intenções eram, pelo cumprimento da vontade divina se é que depois de tantos anos de Mundo ainda há vontade que resista, mas isto são pensamentos ímpios, reflexões de quem julga inútil a vida monástica e considera a oração mera ociosidade, sem lhe atribuir a eficácia e bondade sublinhadas por milagres que crentes de todas as religiões confirmam.

Agostinho, tal como o Santo de quem tomara o nome, possuía a mesma vontade e determinação de ser casto, esperando também que a idade lhe apaziguasse os desejos. Nutria igual desprezo pelas mulheres que lhe incendiavam os sentidos, tinha a mesma certeza de que eram uma encarnação do diabo, cujo cabelo e voz eram obscenos, inteligente reparo do santo, verdadeiras fontes de pecado que só a oração e o sofrimento podiam evitar. Talvez por isso era tão apreciado pelo prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, de quem tinha o privilégio de receber bênçãos especiais por altura das festividades canónicas.

Às vezes, enquanto administrava a sagrada partícula, adivinhava os corpos que os hábitos escondiam, os desejos que as orações atenuavam e atormentavam-no pensamentos pecaminosos de que os jejuns e a oração o libertavam. Mas era durante a confissão onde, por dever do múnus, perscrutava até ao mais íntimo da alma, que a efervescência o apoquentava sabendo bem que a culpa cabia às filhas de Eva que ali se genufletiam carregando o desejo que os seus conselhos e as regras monásticas reprimiam para maior glória divina.

O Padre Agostinho já durante as confissões da Irmã Maria Imaculada tinha indagado dos pecados cometidos, ao menos por pensamentos e, perante o total desinteresse da penitente pelos ditos pecados, a tinha advertido que devia estar vigilante, que Satanás manifestava particular predileção pelos pensamentos, janela de oportunidade para tresmalhar a alma de uma devota, mesmo, ou sobretudo, sendo freira e estando particularmente devotada à castidade. De resto, o convento não era refúgio seguro das arremetidas do demo, antes pelo contrário. Ele próprio era testemunha, com o sangue a ferver-lhe perante o louvável desinteresse de Imaculada pela luxúria. E tudo isto apesar de o convento albergar uma relíquia tão rara e cobiçada pelos outros mosteiros – uma pena do arcanjo Gabriel muito bem conservada num relicário de ouro cinzelado com pedras incrustadas, proteção de efeitos comprovados à honra do convento.

A Irmã Maria Imaculada do Sagrado Coração de Jesus Santíssimo, ou Irmã Maria Imaculada, ou Imaculada, simplesmente, deixados cair os apelidos e reduzida a um só nome dos que no ato de professar serviram para sepultar os profanos, rezava abundantemente. Sob os olhos indiferentes de um Cristo cansado das orações e da cruz dependurada num prego periclitante entalado na ranhura dos blocos de granito, rezava diariamente o terço, absorta e genufletida, sem pressa de concluir o rosário que a Virgem recomendara à Irmã Lúcia, em Fátima, para conversão da Rússia e salvação do mundo.

Uma tarde, igual a tantas outras, Imaculada, enquanto rezava, através dum ligeiro vaivém da porta sem trinco apercebeu-se da sombra que penetrara a cela, de uns braços potentes que a agarraram por trás, da mão que lhe esmagou os lábios, dum corpo que se colava ao seu enquanto a outra mão lhe percorria o hábito e lhe devassava a orografia do corpo esquecido.

Debateu-se em silêncio, esquecida a voz de que já se desabituara, incharam-lhe os olhos, acudiu-lhe o sangue à face, quando descobriu na estranha criatura que a enlaçava a figura do padre confessor que, num ápice, lhe despia apressadamente o hábito a caminho da satisfação das necessidades próprias sem cuidar das alheias. Despojada do hábito e reduzida aos hábitos menores, precária resistência à lascívia reprimida, em estado de estupor, suportou a arremetida. Apercebeu-se do corpo a ser derrubado sobre o leito, sentiu a arremetida ignóbil, a violência gratuita, a sanha animal, como quem aceita a penitência, como quem se resigna ao isolamento, ao silêncio e à oração, com o mesmo desprendimento da vida sem sentido que é fardo virado desejo, que é morte de que se faz a vida monástica, que é renúncia a pretexto da salvação.

Debateu-se primeiro, sim, mas quedou-se depois, desinteressada, com uma dor intensa a penetrá-la, um ferro em brasa a percorrer-lhe as entranhas, imobilizada por uma força imensa – como se pudesse fugir, primeiro, ou o quisesse tentar, depois. O ódio que a clausura sublimara foi o sentimento primeiro, logo seguido da indiferença que os movimentos alheios poderiam ter conquistado para a cumplicidade. Não teve tempo. Pela primeira vez o olhar se detivera no teto da cela para voltar à enxerga onde jaziam fluidos cujo sangue não podia provir das chagas do Cristo metálico e indiferente, imobilizado na cruz da parede.

Na violação da freira pôs o padre a mesma violência perversa do proselitismo. Desta feita não foi a fé que procurou impor, apenas buscou aliviar o cio. Na metamorfose do êxtase esqueceu a alma cujo destino incerto e distante não interfere na pacificação espiritual que os corpos conquistam na tumultuosa explosão dos sentidos. Mas ali não houve arrebatamento, apenas conquista e saque dum corpo devastado, espada enterrada em bainha que a fúria abriu e devassou, um corpo esmagando a alma de outro na pressa de servir-se.

O abuso sexual foi o resultado das pulsões primárias dum indivíduo anacrónico que não fizera a catarse da violência.
Agora até o místico tugúrio da anacoreta tinha virado palco de profanas fantasias que o carácter confessional dos parceiros transformara em incestuosas investigações eróticas da geografia de um corpo flagelado. O êxtase parece tanto mais sublime quanto maior tiverem sido a dor, a abstinência, o desejo e o recalcamento. Mas na circunstância faltou o tempo, a sabedoria e a sedução. Não foi a mulher que o sevandija procurou mas o vaso em que se aliviou.

A SIDA, o medo que lhe infundia, foi o pretexto que a si próprio o padre ofereceu para buscar na freira o consolo cujas consequências temia nas rameiras, a violação o prémio que se atribuiu pelos longos meses de castidade sofrida. Ao menos não adicionou à fraqueza da carne o pecado suplementar do preservativo. Desagradara igualmente a Deus mas não ofendera tanto o Santo Padre.

Apaziguados os desejos, libertos os humores, a freira pensou arrancar a lâmina que a rasgou e acabou guardando entre as mãos, essa arma que a ofendera, inútil, pegajosa, mole, onde adivinhava um hissope fundido pelo vigor da aspersão. E nem sentia sequer revolta, medo ou vergonha. Começava a deixar-se percorrer por uma estranha sensação de prazer igual à flagelação, parecida com a do cilício, mas sem dor, sem sofrimento, sem necessidade de se imobilizar. Ousou mesmo uma discreta massagem como se de uma relíquia se tratasse, relicário igual, quem sabe, a outro muito jovem donde foi extraído o santo prepúcio.

Deixou vaguear os olhos pelo próprio corpo que há muito não via, pousou-os no outro corpo de que sempre afastara os pensamentos, deteve-se nas diferenças de ambos e pensou que tudo poderia ter acontecido sem violência, devagar, como quem reza, com gestos ritmados como se batesse no peito em ato de contrição. Mas o ímpeto que a magoou foi talvez o tributo indispensável à tranquilidade que agora sentia. Quem sabe se não devia ao tumulto o prazer que experimentava! Não era violenta a clausura que extasiava? Não embriagavam os jejuns? Não fazia a dor dos cilícios percorrer o corpo, todo o corpo, de um doce calor de inebriante felicidade?

A dor que inicialmente sentira, a humilhação que sofrera, a vergonha que a prostrara, foram a fonte donde começou a jorrar uma ponta de felicidade. Estranhos caminhos da natureza, complicadas formas de ventura, a escrava conformada a procurar o caminho do perdão.

Continuou a segurar a arma que a trespassara, tomava-lhe o peso, acariciava-a e sentiu que a coisa mole ganhava dureza, assumia forma, tomava cor. Sentiu-se confusa, fechou os olhos, deixou-se escorregar para o chão e aguardou. Outra vez a dor e o fogo a percorrerem-lhe as entranhas, agora já sem violência, um corpo sobreposto em movimentos ritmados, a dor a esbater-se, o próprio corpo a ensaiar o acompanhamento do outro, uma indizível felicidade a percorrê-la, uma sensação idêntica à da libertação do cilício, sem pensar em intenções do Papa, contrações incontroladas, prazer a jorros, um êxtase sublime, como se naquele momento, sozinha, tivesse libertado o mundo de todos os pecados.

Perdeu a noção do tempo. Ao ver o seu Diretor Espiritual abandonar a cela sem uma explicação, sem uma palavra, confusa, esmagada, teve ainda forças para lhe sussurrar: venha mais vezes, volte…

Na manhã seguinte seguiu com o costumado interesse a santa missa que o mesmo padre celebrava. Sentia os olhos dele cravados em si e, à força do hábito, continuou a olhar o chão. Doía-lhe o corpo cansado de todos os esforços da véspera acrescidos com a dificuldade de disfarçar da cela os sinais de sangue e outros fluidos.

Na confusão do cérebro todos os movimentos eram agora, não para glorificar Deus e o seu divino nome, mas gestos de estimulante lubricidade. Mesmo o turíbulo, no seu vaivém, lembrava-lhe o corpo cujos movimentos esmagaram o seu, mais lentos é certo e, talvez por isso, Imaculada sentia percorrer-se duma estranha sensação de felicidade, dum calor deslumbrante que a transportava ao êxtase. Lembrou-se das descrições de Santa Teresa e sentiu em si as mesmas emoções, a mesma onda de felicidade que a inundava, duvidosa de ser ou não ser o Divino Mestre que a percorria nas fantasias bem humanas que haviam despertado de forma incontrolável.

Enquanto o oficiante celebrava não eram já as palavras pronunciadas que lhe ouvia mas a língua que as articulava que sentia. Os conselhos de sempre traziam apenas o bafo quente que lhe envolvia o pescoço. A bênção que lançava devolvia-lhe os dedos que a descobriram. Imaculada sentia-se transportada ao céu por que tanto tinha implorado. Rezava agora com paixão, sem intenções prévias, cada vez mais convicta de que esse dia traria de novo a visita privada do confessor que, talvez, passasse a confessado.

E assim foi. A cela deixou de ser o espaço de reflexão sem sentido para se converter na antecâmara do desejo. Perdeu o ar frio e funesto para ganhar a dimensão dum ninho fofo e proporcionar a visão duma centelha do paraíso.

À mesma hora do dia anterior, a preceder as vésperas, Imaculada viu claramente que não era uma sombra que penetrara a cela. Era o homem que esperava. O ascetismo místico tinha ganho uma nova dimensão e ia ser temperado pela explosão simultânea dos fluidos em reparadores espasmos fruídos sofregamente, sobre o catre, ou no chão, no exíguo espaço de uma cela.

E não mais pediu ao Padre Agostinho para voltar. Dia após dia o hissope vinha mergulhar suavemente na caldeirinha para aspergi-la vigorosamente no momento certo, enquanto ambos, à medida que exultavam com as delícias da alcova, se foram esquecendo do martírio do seu Deus.

In Pedras Soltas, pág. 155-181 (ortografia atualizada)

24 de Maio, 2015 Carlos Esperança

SODOMA – Crónica de fim de semana

Naquele tempo, andava Deus na divina ociosidade a que se remeteu depois de ter criado o Mundo, quiçá arrependido da forma inventada para que os animais se multiplicassem, a ruminar desculpas por ter incluído a macieira quando fez as plantas, sabendo que sem Eva e sem maçã estaríamos todos, ainda hoje, condenados ao Paraíso e ao tédio.

Tinha acontecido o dilúvio e a engenharia ousado construir a torre de Babel. O primeiro foi um susto bem pregado e uma experiência radical e a segunda um enorme fracasso e uma extraordinária confusão.

Pelo Vale de Sidim, próximo do Mar Morto, estendiam-se cinco cidades com diferentes níveis de progresso, riqueza e bem-estar. Sodoma e Gomorra eram mais desenvolvidas e tinham um invejável nível de vida, graças ao sector terciário que, então, não tinha ainda designação adequada por não haver economistas encartados. As outras, Admá, Zebolim e Bela eram menos importantes, a acreditar no Génesis, o primeiro livro do Pentateuco.

Vinha do Norte o ar quente que, depois de percorrer e acariciar as águas do mar, entrava suavemente em Sodoma para animar os corpos, inebriar a alma e soltar a fantasia de que o mundo era capaz, na sua difícil infância, e produzir um indizível arrebatamento.

Homens e mulheres contavam instantes do tempo breve que o expediente dos escritórios lhes tomava, para cultivarem, a seguir, todos os prazeres febrilmente sonhados. Mesmo nas horas de trabalho não se coibiam de ser felizes e soltarem a imaginação. Os afazeres que o desenvolvimento tecnológico se tinha encarregado de aliviar eram cada vez mais um mero resquício para justificar a maldição bíblica que viria a ser criada com efeitos retroativos. O trabalho era um bem muito escasso e, dele, ninguém se quisera apropriar.

Como os livros ainda não tinham sido inventados, todos liam o livro da vida através dos sentidos. Tinham-se habituado a usar o corpo e a dar-lhe alma. Eram desmesuradamente felizes a ponto de esquecerem Deus e os seus ensinamentos, as ameaças e maldições, o sofrimento e a cultura que o inventara. E, porque eram felizes, não os atingia a doença, a fome, o medo ou a guerra.

Imagina-se o seu grau de felicidade pela intensidade da cólera divina, que enviou o fogo que destruiu Sodoma e, com ela, as outras cidades, e, com os adultos que se divertiam, as crianças, que ainda não sabiam folgar, e também os velhos que tinham esquecido já os divertimentos, se algum dia os conheceram, e, talvez, algum anjo que tivesse tentado pôr termo ao pecado e acabou violado, chamuscadas as penas no desejo e esturricado, também ele, nas labaredas, vitima do “fogo e enxofre descido do céu”.

Ao longe, Abraão assistira ao espetáculo que o seu Deus pirómano lhe serviu à hora da sesta, tirando moncos do nariz, enquanto Loth, seu sobrinho, por bambúrrio da sorte ou por morar nos subúrbios, se esgueirava com as filhas e a mulher, tendo esta olhado para trás, apesar da recomendação divina em contrário, e sido transformada em estátua de sal, por ser nela maior a curiosidade do que a obediência.

Para dizer alguma coisa ou por se ter arrependido do fogo que ateara ou, somente, para criar factos que dessem conteúdo ao Êxodo, ao Levítico e a outros escritos, fez Deus, a Abraão, umas promessas que acabariam por dar origem a Israel, muito tempo depois, e dado a Jacob e aos seus 12 filhos o Egipto para se instalarem e cumprirem uma profecia.

Sodoma ficou na memória oral dos povos pelos hábitos sexuais de uma escassa minoria. Conhecendo-se hoje melhor Deus e os seus humores, a fé e os preconceitos, a devoção e a sua intolerância, somos levados a crer que seriam deliciosas as vitualhas, capitosos os líquidos, refinados os hábitos, agradáveis as relações, enfim, felizes os seus habitantes, a ponto de Deus perder a paciência e ter sido tomado por aquela cólera que o celebrizou.

Terá sido Loth o autor do boato a que se deve o verbo criado a partir do nome da cidade perdida ou um qualquer viandante, saído antes do fogo, ávido de agradar ao algoz.

15 de Janeiro, 2015 Carlos Esperança

O homem era um santo (crónica)

A mulher, que chegava do trabalho antes dele, chegou ao ponto de lhe dizer que não era sua criada, que um dia acabava o hábito de ser ela a única a cozinhar, a lavar e a passar a ferro a roupa, a fazer a cama e a limpar a casa.

O homem, um santo, aguentava a desfaçatez, suportava a sopa, a que faltava ou sobrava sal, sem um queixume, a salada que estava mal temperada, o peixe mal grelhado e ainda a ouvia resmungar enquanto lia o jornal e ela arrumava a mesa e lavava a louça.

Casados há mais de vinte anos, a mulher queria agora gozar dos mesmos direitos, exigir iguais deveres para ambos, depois de ter criado dois filhos sem que o marido soubesse o que era mudar uma fralda ou onde era a creche ou a escola.

Suportou ao longo dos anos que a mulher tivesse um vencimento maior que o seu, sem mostrar a irritação que isso lhe causava, ouvia-a cantar quando queria silêncio e sentia-a emudecida na altura em que queria conversar. Começou a arremessar para a roupa suja as camisas onde via uma ruga, o homem era um santo mas não podia aguentar mais.

Um dia, estava ela na lide da casa, depois de um dia de trabalho de que viera exausta, o homem não podia adivinhar, fez-lhe uma pergunta e não obteve resposta. Nesse dia, depois de anos a aguentar aquela mulher, agarrou na faca da cozinha e deixou-a a esvair em sangue, enquanto se foi entregar à polícia.

No tribunal, presidiu ao coletivo de juízes uma mulher, sem capacidade de compreensão para a bondade do homem que, naquele dia, se excedeu. As testemunhas eram unânimes a denunciar os maus tratos de que o santo homem fora vítima, mas poderia uma mulher compreender o tormento de um homem!? Na sua beca, imaculadamente passada a ferro, a juíza acusou-o de crueldade, violência gratuita e amoralidade, enfim, um exagero que as mulheres cometem, sem se esquecer de o acusar de ter repetido as facadas 12 vezes.

Quando a morta devia ter sido condenada foi o pobre do viúvo que ouviu um longo e penoso acórdão que o condenou a 18 anos de prisão. Já não há justiça. Essa defunta foi uma das 40 de que os companheiros, fartos de tanto sofrimento, acabaram por matar no ano que há pouco findou.

Não sei porquê, lembrei-me da perseguição dos polícias franceses aos que piedosamente executaram os desenhadores do Cahrlie Hebdo. Mataram os santos homens que rezavam cinco orações diárias e só queriam uma assoalhada no Paraíso recheada de 72 virgens.

Já não há justiça!

25 de Setembro, 2014 Carlos Esperança

O Catur e o funeral do Martins (Crónica)

Em defesa da civilização cristã e ocidental, como dizia Cerejeira da guerra colonial.

Numa placa de bronze da estação do Caminho de Ferro estavam gravadas em relevo, em letras maiúsculas, as seguintes palavras: «Aos 12 dias do mês de Abril de 1964, Sua Ex.ª o Governador Geral de Moçambique, Contra Almirante Manuel Maria Sarmento Rodrigues, deu início aos trabalhos de construção do último troço do Caminho de Ferro para a cidade de Vila Cabral», com letras destacadas para o Governador e a cidade.

Era do Catur, onde chegavam de comboio, que partiam as tropas, em viaturas militares, para o distrito de Niassa, rumo a Malapísia, Massangulo e Leone ou, com passagem por Vila Cabral, para Meponda, Litunde, Cantina Dias, Unango, Chiconono, Maniamba, Metangula, Nova Coimbra, Lunho, Miandica, Cobué, Macaloge, Valadim, Luatize e, no extremo norte, Pauíla e Olivença.

Colunas de viaturas levavam as Companhias cujos militares aguardavam o paludismo, a morte e os aleijões, do corpo e da mente, na guerra inútil e criminosa que uma ditadura quis, até ao golpe de misericórdia, de um punhado de heróis, numa madrugada de abril.

Em finais de 1967 havia mais meia dúzia de quilómetros de carris e a terraplanagem que se dirigia a Nova Guarda, um acampamento a meio caminho de Vila Cabral, a cerca de 40 km de cada lado. O Santos e o Martins eram dois capatazes que vigiavam os negros, os únicos a quem o trabalho duro na via férrea era destinado.

O Santos era solteiro. O Martins vivia com a mulher e a filhita de tenra idade quando ali chegou o Batalhão de Caçadores n.º 1936. Ambos frequentavam livremente a cantina do aquartelamento onde arranjavam parceiros para jogarem à malha na «avenida», o largo caminho de terra batida que as chuvadas convertiam em lamaçal até voltar a ser avenida depois de uma hora de sol.

Numa madrugada de finais de 1968 ou início de 1969, a memória já não recorda a data e quanto desejaria esquecer os factos, o quartel acordou com o estrondo de uma explosão a cerca de três quilómetros. O Torres, despertado pela detonação e vestido à pressa, não se atrasou a partir com uma secção reforçada a verificar a ocorrência, seguindo a picada que ladeava a linha do caminho de ferro. Minutos depois viu o guarda-costas do Martins, ferido sem gravidade, e dele colheu as primeiras informações. Restou seguir o rasto de sangue depois de os soldados terem procedido à macabra recolha de despojos humanos, pedaços de corpo espalhados, incluído o dedo que guardou a aliança.

Algumas centenas de metros depois, quando os carris tomavam a inclinação ascendente, lá estava, imobilizada, a zorra. No lugar do condutor estava sentado o que restava de um corpo, aquilo a que ficou reduzido o Zé Martins. Uma granada de bazuca atingiu-o em cheio na espera que lhe fizeram, obra da Frelimo, execução ou vingança, já não importa.

A granada decepou literalmente o corpo, desde o ombro esquerdo, levando o mamilo direito, num tétrico plano oblíquo que espalhou pedaços em redor. Os restos do Martins foram transportados, com lágrimas e terra, por soldados que os juntaram à parte inferior do corpo, num saco de plástico opaco, antes de acabarem na urna que iria para a Missão de Massangulo, em cujo cemitério foram sepultados.

No dia do funeral o major Beirão pediu-me para comandar a escolta que lhe concederia honras militares, a salva de tiros que, em zona de guerra, equiparava civis caucasianos a soldados. Alegou que eu era visita de casa dele, era verdade, onde jantei várias vezes a seu convite. Não era difícil gritar as ordens em que a última seria: fogo! E assim foi.

Depois disso bastaria um olhar para que a urna descesse à cova e o coveiro lançasse a primeira pazada de terra antes de se ouvir o som cavo da pancada na madeira da urna. Só não contei que, antes disso, o pai do Martins, que viera de Lourenço Marques, dilacerado, se abeirasse de mim e, ajoelhando, com a voz embargada, suplicasse para deixar abrir o caixão. Para dar ao filho um último beijo, na testa.

Ficaram suspensos os que empunhavam as cordas que desceram a urna. O meu olhar ou alguma lágrima foi o sinal para continuarem.

Um «não» impercetível perdeu-se no espaço lúgubre do cemitério da Missão enquanto o padre cobria com orações o silêncio e a imagem de um homem dilacerado pela perda do filho.

7 de Agosto, 2014 Carlos Esperança

A Beira Alta e a fé, nos verões de outrora (crónica)

Não me matem a burra, por amor de Deus!

Na mitologia grega havia um deus que necessitava de mergulhar as mãos na terra para recuperar as forças. Eu, que não sou deus, nem crente, sinto a necessidade dos mitos e vou procurar nos sítios que agonizam o resto de vida que ali jaz e encontrar no húmus das minhas origens as forças de que careço.

Abalámos muitos dessas terras que eram viveiros de gente e são hoje a antecâmara da morte dos que regressam para ficar.

Já não se discute a água da presa com a sachola nem se guardam alfaias religiosas com a escopeta carregada e a navalha, de ponta em mola, à mão. A fé esvaiu-se, não se mede em decibéis, oferendas ou novenas, nem em quantidade de dias de exposição do Senhor.

Em tempos, quando o estandarte da igreja dormia nas fragas que separavam o Freixinho do Lamegal, a anexa que disputava à sede de freguesia a glória de exibir o seu pendão para proteger as searas, com moços possantes a defenderem a crença e o estandarte, que os costumes mandavam revezar, e que o impulso da fé desrespeitava, eram as procissões que tinham primazia sobre as outras manifestações litúrgicas. Hoje falo do concelho de Pinhel e podia falar do Sabugal, Almeida ou Figueira de Castelo Rodrigo, terras donde trouxe a força o menino que se fez velho.

O meu tio Manuelzinho contava-me coisas de estarrecer quando a fé ainda vicejava nas aldeias e os padres abundavam para a liturgia. Não mais esquecerei a graça com que me contava a procissão do Carvalhal da Atalaia, que acabou mal. Os andores, os devotos e a fé não cabiam nos limites do casario. Era preciso percorrer caminhos de terra batida, na peregrinação cuja distância estivesse à altura da piedade dos paroquianos.

Foi num mês de agosto, ainda não havia francos franceses, suíços e marcos a ostentar a competição dos emigrantes. A procissão saiu do povoado para a ronda tradicional do Senhor dos Passos, com o padre sob o pálio, a resguardar a tonsura e a custódia, com os mordomos aprumados e a população em filas, separada por género e alinhada por escala etária. Rezava-se e cantava-se, alternado com algum latim para fazer sobressair o pároco enquanto os anjinhos eram admoestados, para não falarem, pela catequista que os guardava.

Num desses verões, já a procissão tinha invertido a marcha a caminho da aldeia quando, inopinadamente, se armou uma trovoada que parecia o dilúvio, sem a arca de Noé, para se recolherem nela os bons, enquanto a terra se inundava.

Os mancebos pousaram o Senhor dos Passos, enquanto os andores pequenos seguiram o exemplo, e os guiões foram encostados à árvore mais próxima. O padre, com a custódia, fugiu e manteve a proteção do pálio com os que empunhavam as varas a esticar o pano, transformado em guarda-chuva coletivo. Os anjinhos, na pressa, perdiam as asas e cada paroquiano procurava uma árvore de copa ampla com a população dispersa pelo campo e a parafernália pia abandonada no caminho.

Já se clamava «milagre!» quando o sol, de repente, substituiu de novo a chuva que se afastou a desgraçar videiras e a tornar inútil a vindima. Os paroquianos lá voltaram ao sítio donde fugiram e, ao chegarem, o horror deixou-os apopléticos.
Com a chuva esboroou-se o Senhor dos Passos que alguns fiéis haviam de julgar sólido, quiçá com músculos e ossos, desfeita a farpela puída pelo tempo, onde o manto refulgia. Do interior saiu a palha que lhe dava forma e uma burra, atraído pelo cheiro, mastigava, com os cascos sobre o manto e a pachorra de quem nasceu sem entendimento para a fé.

Descoroçoados, atiraram pedras ao animal, que insistia em mastigar a palha tantas vezes benzida, com tal sanha, que, da multidão, uma mulher implorou, por amor de Deus, que não lhe matassem a burra, enquanto esta se afastava a trote a mastigar o último naco do Senhor dos Passos.

Agosto_2014

7 de Maio, 2014 Carlos Esperança

A bruxa de Trevões (Conto)

Em qualquer história aparece sempre uma personagem que se destaca das restantes por uma qualquer saliência da personalidade ou por uma qualquer qualidade especial, seja ela de natureza comportamental, temperamental, anímica ou de uma outra variante psicológica, das muitas que compõem o tipo humano.

Neste caso, é o senhor F, um homem que, naquela aldeia duriense, situada na bordadura da fronteira com o planalto transmontano, sobressaía entre os demais, por ser muito esperto e matreiro e ter o olho muito fino para o negócio. Destemido, bem-falante, arrojado e possuidor de uma grande autoconfiança, seria assim que ele seria descrito por quem estivesse, fora da história, a observar-lhe o grau de superioridade que exibia, onde quer que se encontrasse. Apostou ele, numa roda de amigos, à volta de uma mesa de uma taberna da Carrapatosa – e já depois de ter dado as últimas notícias sobre a guerra do Hitler, ouvidas em outros sítios, das suas constantes andanças – que iria desmascarar o raio da velha bruxa de Trevões, cuja fama de advinha e de curandeira se espalhara por muitas léguas em redor.

Foi só descer, por um caminho de cabras, a íngreme ladeira do vale do Douro, contratar o serviço ao barqueiro da Valeira, para atravessar o rio, subir a encosta até o Santo Salvador do Mundo, possivelmente um antigo local de culto celta, recuperado depois pelo cristianismo, que ali ergueu doze capelinhas, tantas quantas são as estações da Via Sacra, mas que agora estava votado ao abandono, devido à concorrência de outros santuários mais sumptuários e bem situados estrategicamente em lugares de acesso fácil, e ei-lo a apanhar a nova estrada de maquedame, que o levaria, já depois de uma légua a andar a pé, à aldeia de Trevões.

Quando a velha o mandou franquear a porta que dava para uma salinha, onde recebia os clientes, já ele tinha mudado de semblante, agora carregado de fingida tristeza e de recatada humildade. A tal personagem, fora da história, que o visse agora, poderia dizer que o senhor F já não era o mesmo homem exuberante, que vira na Carrapatosa, cabisbaixo, tímido e exibindo até uma certa dificuldade em falar.

Feita a saudação do costume, com muita reverência de parte a parte, e depois de ambos se sentarem à volta de uma mesinha, coberta por uma camilha vermelha, a velha, de olhos vivos e perscrutadores, à procura de um qualquer sinal importante, perguntou-lhe ao que vinha.

O senhor F torceu-se no assento, colocou no movimento das mãos, sobre o tampo da mesa, toda a sua encenada hesitação, e respondeu: sabe, minha senhora! O meu pai foi para o Brasil, quando eu era muito pequeno, ao ponto de nem sequer me lembrar muito da sua cara. Depois de algumas cartas, enviadas do Brasil, para a minha mãe, ele deixou de escrever e nunca mais soubemos nada sobre a sua vida. Não sabemos se é vivo ou se é morto.

A velha, depois de perguntar qual a terra do senhor F, e o que fazia, assim como o nome completo do seu pai e o ano em que ele emigrara para o Brasil, e dando sinal de estar satisfeita com as respostas recebidas, pediu licença para retirar-se por uns momentos e entrou para uma outra dependência da casa, fechando a porta, o que levou o senhor F a pensar que a bruxa deveria ter ido consultar os recortes necrológicos dos jornais, que ele sabia que ela guardava, só assim se explicando o facto de ela pedir o envio dos jornais de terras estranhas e longínquas, a quem decidia ir para o Brasil ou para África, depois de ouvirem o seu vaticínio.

Uma vez regressada à sala, e compenetrando-se na solenidade do momento do anúncio do augúrio, que, como se saberá, será infalível e irrevogável, a velha disse: Sabe, senhor F!… O seu pai está vivo, está com muita boa saúde e é um homem muito rico. Brevemente, ele regressará a Portugal, para se juntar à família.

Palavras não eram ditas, e já o senhor F, com um ar triunfalista, e batendo com os nós dos dedos no tampo da mesa, largou uma sonora gargalhada e retomou o seu ar altivo e descontraído. Oh, minha senhora! O meu pai já morreu há uns anos e nunca foi para o Brasil.

E, quando já se levantava, exibindo descarado desdém e dando mostras de que se iria embora, mesmo sem pagar o serviço, a velha, com uma serenidade profunda, adquirida nas catacumbas do tempo, por herança dos seculares segredos da profissão, travou-lhe o ímpeto e a afronta do escárnio: O senhor F está enganado! O seu pai, aquele que já morreu há uns anos, não era o seu pai…

Alexandre de Castro – Maio de 2014

bruxa

4 de Maio, 2014 Carlos Esperança

SODOMA – Crónica

Naquele tempo, andava Deus na divina ociosidade a que se remeteu depois de ter criado o Mundo, quiçá arrependido do estratagema que engendrou para que os animais se multiplicassem, a ruminar uma desculpa por ter incluído a macieira quando fez as plantas, sabendo que sem Eva e sem maçã estaríamos todos, ainda hoje, condenados ao Paraíso e ao tédio.

Tinha acontecido o dilúvio e a engenharia ousado construir a torre de Babel. O primeiro foi um susto bem pregado e uma experiência radical e a segunda um enorme fracasso e uma extraordinária confusão.

Pelas planícies do Mar Morto estendiam-se cinco cidades que tinham níveis diversos de progresso, costumes e interesses diferentes. Brilhavam Sodoma e Gomorra pela enorme riqueza, com um nível de vida de causar inveja, graças ao sector terciário que então não tinha ainda designação adequada por não haver economistas encartados. As outras eram menos importantes, a acreditar no primeiro livro do Pentateuco.

Vinha do Norte o ar quente que, depois de percorrer e acariciar as águas do mar, entrava suavemente em Sodoma para animar os corpos, inebriar a alma e soltar a fantasia de que o mundo era capaz, na sua difícil infância, e produzir um indizível arrebatamento.

Homens e mulheres contavam instantes do tempo breve que o expediente dos escritórios lhes tomava, para cultivarem, a seguir, todos os prazeres febrilmente sonhados. Mesmo nas horas de trabalho não se coibiam de ser felizes e soltarem a imaginação. Os afazeres que o desenvolvimento tecnológico se tinha encarregado de aliviar eram cada vez mais um mero resquício para justificar a maldição bíblica que viria a ser criada com efeitos retroativos. O trabalho era um bem muito escasso e, dele, ninguém se quisera apropriar.

Como os livros ainda não tinham sido inventados, todos liam o livro da vida através dos sentidos. Tinham-se habituado a usar o corpo e a dar-lhe alma. Eram desmesuradamente felizes a ponto de esquecerem Deus e os seus ensinamentos, as ameaças e maldições, o sofrimento e a cultura que o inventara. E, porque eram felizes, não os atingia a doença, a fome, o medo ou a guerra.

Imagina-se o seu grau de felicidade pela intensidade da cólera divina, que enviou o fogo que destruiu Sodoma e, com ela, as outras cidades, e, com os adultos que se divertiam, as crianças, que ainda não sabiam folgar, e também os velhos que tinham esquecido já os divertimentos, se algum dia os conheceram, e, talvez, algum anjo que tivesse tentado pôr termo ao pecado e acabou violado, chamuscadas as penas no desejo e esturricado, também ele, nas labaredas.

Ao longe, Abraão assistira ao espetáculo que o seu Deus pirómano lhe serviu à hora da sesta, tirando moncos do nariz, enquanto Loth, seu sobrinho, por bambúrrio da sorte ou por morar nos subúrbios, se esgueirava com as filhas e a mulher, tendo esta olhado para trás, apesar da recomendação divina em contrário, e sido transformada em estátua de sal, por ser nela maior a curiosidade do que a obediência.

Para dizer alguma coisa ou por se ter arrependido do fogo que ateara ou, somente, para criar factos que dessem conteúdo ao Êxodo, ao Levítico e a outros escritos, fez Deus, a Abraão, umas promessas que acabariam por dar origem a Israel, muito tempo depois, e dado a Jacob e aos seus 12 filhos o Egipto para se instalarem e cumprirem uma profecia.

Sodoma ficou na memória oral dos povos pelos hábitos sexuais de uma escassa minoria. Conhecendo-se hoje melhor, Deus e os seus humores, a fé e os seus preconceitos, a devoção e a sua intolerância, somos levados a crer que seriam deliciosas as vitualhas, capitosos os líquidos, requintados os hábitos, agradáveis as relações, enfim, felizes os seus habitantes, a ponto de Deus perder a paciência e ser tomado por aquela cólera que o celebrizou.

Terá sido Loth o autor do boato a que se deve o verbo criado a partir do nome da cidade desaparecida. Ou um qualquer viandante saído antes do fogo e ansioso de se pôr ao lado do algoz.

15 de Março, 2014 Carlos Esperança

Já copeiam, já devedem, o pior são os ivões (Crónica)

Alguém me contou que Carvalhão Duarte, o corajoso jornalista que foi diretor do jornal República e empenhado antifascista, foi um dia recebido por Salazar na qualidade de presidente do organismo de classe dos professores primários, profissão de que viria a ser demitido por motivos políticos.

Carvalhão Duarte queixou-se de que os vencimentos dos professores não correspondiam à categoria profissional, ao que o ditador respondeu que, não podendo elevar os salários ao nível da categoria dos reivindicantes, faria com que a categoria viesse a corresponder aos vencimentos que auferiam.

Não surpreende que tal possa ter acontecido pois o encerramento das Escolas Normais e a criação dos Postos Escolares e respetivas Regentes, a quem bastavam quatro anos de escolaridade, correspondeu ao desprezo que a instrução lhe mereceu. Deve-se à ditadura o retrocesso escolar de quem temia a cultura e a julgava prejudicial à doutrina cristã e ao cuidado das almas de que Cerejeira se encarregou.

Os anos 30 do século XX foram de uma enorme regressão na formação dos professores e nas importantes inovações da I República, tragédia que só seria alterada na agonia do regime fascista, com Veiga Simão, no consulado marcelista.

O ensino obrigatório era, no meu tempo de escola, a 4.ª classe para rapazes e a 3.ª para meninas. Recordo a minha mãe a entrar nas casas das pessoas da aldeia, a dizer às mães que já lhe tinha matriculado a filha na 4.ª classe, senhora professora não me faça isso, faz-me falta para criar os irmãos, é uma boa aluna merece ir mais além, quem me fica com os outros filhos quando tenho de ir para a horta, a professora a submeter a mãe da menina que gostava da escola, a mãe a lamuriar-se, e a professora a conseguir mais um ano de escolaridade para a menina que não podia ser criança e para quem a 4.ª classe era considerada supérflua.

Em 1963, as regentes ganhavam 600$00 mensais, vencimento igual para as agregadas e as efetivas, tendo estas direito a 12 meses de vencimento anual e as outras a 9 meses e 12 dias. Para se fazer ideia da exploração e miséria a que eram condenadas, vale a pena recordar os salários miseráveis dos funcionários públicos, em geral, e os dos professores primários, em particular: 1.600$00, agregados; 1750$00, efetivos; e 2.000$00, 2200$00 e 2.400$00, após 10, 20 e 30 anos de serviço, respetivamente.

Em 1963, quando, por ser o único professor, fui nomeado Delegado Escolar, encontrei 16 regentes escolares no concelho, todas mulheres, em pequenas aldeias. Sem elas, muitas crianças ficariam desobrigadas da escola porque uma residência superior a 3 km da escola era motivo legal para isentar as crianças da frequência escolar.

Contrariamente às anedotas e humilhações a que a condição as submetia, devemos-lhes a alfabetização de muitas crianças que, doutro modo, não teriam oportunidade de, mais tarde, obter um passaporte e emigrarem, para fugirem à fome e à miséria a que estavam condenadas.

As regentes eram frequentemente ridicularizadas pela escassez de habilitações literárias e rudimentares conhecimentos, objeto de anedotas, tantas vezes injustas, quase sempre racistas, e da arrogância de professores que presidiam às provas de passagem dos seus alunos.

Era vulgar atribuir-lhes redações de ofícios onde a sintaxe e a ortografia abalavam os mais rudimentares alicerces da ortodoxia gramatical. Apareciam datilografados e eram divulgados para gáudio de quem tinha aprendido um pouco mais e subido na hierarquia rígida da função pública.

Havia muitas histórias atribuídas a regentes, que, com a miséria do vencimento, sofriam o sarcasmo de quem se julgava superior. É dessa indigência, do quotidiano repisado de «um país em “inho”» que aqui deixo a suposta afirmação de uma regente para o inspetor que a visitou: «os alunos já copeiam, já devedem, o pior são os ivões…», 3 vezes 8, 24, ‘e vão’ 2; 9 vezes 8, 72, ‘e vão’ 7», malditos ‘ivões’, a conjunção e a conjugação do presente do indicativo do verbo “ir”, a tornarem-se o plural de um absurdo substantivo.