Quem se compraz com estes oxímoros, fá-lo por se sentir encurralado. Como não temos religião alguma, não podem acusar-nos de seguir a religião errada, e por isso preferem renunciar ao rigor conceptual e proclamar que não ter religião é uma religião. Não compreendem que é um perfeito absurdo chamar fé à ausência de fé, como é outro disparate dizer que rejeitar a tradição é uma tradição, ou que a saúde é uma doença.
E logo a seguir:
Paul Touvier esteve envolvido na luta contra a Resistência francesa, incluindo a deportação de judeus e a pilhagem dos seus bens. Dirigiu pessoalmente o fuzilamento de sete judeus, e provavelmente também as execuções do presidente da Liga dos Direitos do Homem e da sua mulher.
Em 1946, é condenado à morte por traição. No entanto, consegue fugir em 1947 (após uma detenção por assalto à mão armada) e esconde-se sucessivamente em várias igrejas e mosteiros. Sempre em fuga, começa por casar-se tranquilamente numa capela de Paris em Agosto de 1947, e em seguida tem dois filhos. Este assassino, ladrão e esbirro fascista passará mais de 40 anos da sua vida sempre em fuga, de igreja em igreja e mosteiro em mosteiro, protegido pela sua Santa Madre Igreja Católica Apostólica e Romana.
As condenações prescrevem em 1967 e Pompidou concede-lhe um perdão presidencial em 1971. O escândalo é tal que, perante as queixas de associações de antigos resistentes, Touvier e a sua família voltam novamente à clandestinidade (conventos e igrejas) em 1973. Será condenado por crimes contra a humanidade em 1981. É detido apenas em maio de 1989, num priorado de Nice pertencente aos integristas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Morre em 1996, na prisão. Na missa católica em sua honra, o padre diz que Touvier era «uma alma delicada e sensível».
Quem gosta de filmes policiais, com perseguições de carro, pistolas apontadas, enigmas em série e actores competentes, não ficará decepcionado com «O Código Da Vinci». Quem é ateu e espera um manifesto anti-cristão (eu não esperava) sairá defraudado: perto do final, Robert Langdon diz algo como «não interessa se Cristo foi humano ou divino, o importante é que inspirou as pessoas», e recomenda os efeitos tranquilizantes da oração independentemente de se crer ou não. Pressiona ainda Sophie Neveu, que no início era ateia, a seguir esta espiritualidade, no fundo semelhante à de muitos grupos cristãos ditos «liberais», como os quakers ou os unitários. Tudo muito «cristianismo light», portanto.
Então, porquê a polémica? Pelo pouco que sei, por três razões. Primeira, o filme atribui uma descendência a dois personagens do Novo Testamento, «Jesus Cristo» e «Maria Madalena». Talvez por nunca ter sido cristão, não compreendo a aflição que a hipótese de que o semi-deus dos cristãos tivesse tido relações sexuais provoca. O «Deus» cristão em forma humana teria necessariamente que ser um castrado ou um impotente? Ou será a contradição com a misoginia doentia de Paulo de Tarso que incomoda?
Segunda razão para a polémica, o filme refere alguns factos históricos genuínos mas inconvenientes para a religião cristã, como a existência de evangelhos «não canónicos» que contradizem os evangelhos escolhidos no Concílio de Niceia, no ano 325 da nossa era, existência e escolha estas que são desconhecidas pela esmagadora maioria dos católicos. (Creio que o livro, que não li, se alarga mais sobre os evangelhos «não canónicos».)
Terceira razão de polémica (e talvez a mais importante), o filme mostra as auto-flagelações corporais praticadas no Opus Dei, embora com algum exagero (como as cicatrizes e o sangue a escorrer). No entanto, em boa verdade não se pode condicionar comunidades inteiras de pessoas numa cultura de auto-agressão e esperar que nem uma única pessoa exagere (particularmente quando circulam rumores, dentro da própria organização, de que Escrivá se flagelava até deixar as paredes da casa de banho esguichadas com sangue). Mas o nervosismo de certos sectores era desnecessário. Afinal, tanta publicidade até atraiu masoquistas à Obra…
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