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Autor: lrodrigues

11 de Julho, 2006 lrodrigues

Como um ateu vê um crente

Acho que uma pessoa que crê em Deus, chame-lhe Jesus Cristo, Alá ou qualquer outra coisa parecida, ou o sinta somente como uma «força superior inexplicável», não se apercebe verdadeiramente do que pensa um ateu sobre a crença numa qualquer divindade.

Ainda há poucos dias um piedoso seguidor das virtudes místicas do Papa Bento XVI me declarou, e muito convictamente, que não acreditava que nenhum ser humano poderia, por natureza, ser verdadeira e inteiramente ateu.
Vai para o Céu, coitado…

Mas talvez o consiga explicar através desta singela história:

Durante a 2ª Guerra Mundial os americanos ocuparam uma pequena ilha do Pacífico para ali instalarem uma base militar de abastecimentos.
A ilha era habitada por uma pequena tribo que vivia praticamente ainda na Idade da Pedra.

Mal chegaram, os americanos construíram uma pista de aviação, uma torre de controle, alojamentos, e instalaram toda a parafernália de equipamentos que é possível imaginar.
Como é de calcular, os habitantes da ilha conheceram com os americanos uma inesperada época de prosperidade e abundância.

Quando terminou a guerra, os americanos embalaram a trouxa e foram-se embora.
E lá terminou a Coca-cola e a abundância para aquela gente, novamente isolada do resto do mundo.

Meia dúzia de anos mais tarde, alguém regressou à ilha e constatou uma realidade curiosíssima:

Os nativos da ilha tinham desenvolvido um culto religioso a um Deus a que chamavam «Cágau» uma corruptela de «Cargo» ou carga, em inglês.
Mantinham a velha pista de aviação limpa, construíram uma espécie de torre de controle em canas e tinham criado uma casta de sacerdotes e uma complexa mitologia que explicava que um dia haveriam de descer dos céus uns messias, uns deuses de pele branca que viriam novamente trazer grande prosperidade ao povo.
E diariamente realizavam cerimónias religiosas conduzidas por sacerdotes na pista de aviação, em que apelavam à descida à terra daqueles entes misteriosos, supremos e omnipotentes.

Posto isto,
Que pensa desta história um qualquer cristão, muçulmano ou judeu?
Que pensará desta história, por exemplo, um católico?

Presumo, em primeiro lugar, que não lhe passará pela cabeça proibir os nativos da ilha de praticarem livremente o seu culto ao Deus «Cágau».
Aqui há uns anos atava-os a uns postes e deitava-lhes fogo. Mas (Deus o livre) agora não.
Quanto muito, pensará em enviar para o local meia dúzia de missionários para os evangelizar, mas isso é outra história.

Decerto olhará para aqueles nativos, antes de mais, simplesmente como uma interessante curiosidade antropológica.
Decerto os olhará, não com sobranceria ou superioridade, mas com um sensação mista de “diferenciação” intelectual e pessoal pelo curioso primitivismo daquela “pobre gente” da Idade da Pedra.
Terá até alguma pena pelo desperdício de tempo gasto com o culto a um Deus inexistente, como é o Deus «Cágau» (que toda a gente sabe que não existe).
E terá também pena pela certeza absoluta da inutilidade dos ritos religiosos que, por mais sentidos que sejam, que por muita fé e fervor que revelem por parte dos «fiéis», não trarão nunca de volta a prosperidade dos deuses de pele branca.
E terá também assim uma espécie, e sem qualquer conotação pejorativa, de sensação de quase… ridículo.
Estou até convencido que quando pensa na infantilidade daquela “pobre gente” esboça até um sorriso…

Pois bem:
Façam-me o favor de considerar que é precisamente assim que um ateu vê um cristão, um muçulmano, um judeu ou qualquer outro teísta, tenha ou não a sua fé uma designação atribuída, chame-lhe ou não «uma força superior inexplicável».

Vê-o exactamente, não com superioridade ou sobranceria, mas como uma mera e simples curiosidade antropológica, tão primitiva que é até oriunda da Idade da Pedra.
Vê os ritos e os cultos que o crente pratica como um lamentável desperdício de tempo e tem até pena daquela “pobre gente” pela infantilidade e completa inutilidade dessa prática.
Lamenta até as vidas humanas completamente perdidas e desperdiçadas em oração, em contemplação, em auto-amesquinhamento e em louvor do “Senhor” quando, de facto, não há “Senhor”, não há Deus «Cágau» nenhum.

É assim, tão simples como isso!

Nem sequer são necessárias quaisquer considerações filosóficas ou explicações muito elaboradas.
Como nem sequer são precisas teologias, teosofias, teodiceias e outras coisas começadas por “teo”, ao fim e ao cabo completamente inúteis, porque sob a capa de grandes lucubrações intelectuais, e até com alguma graça, diga-se, procuram unicamente justificar e explicar a existência de algo… que não existe.

Simplesmente porque o ateu vê a religião que o crente pratica, a «fé» que orgulhosamente exibe e os ensinamentos de Deus que apregoa, assim como uma espécie (e sem qualquer conotação pejorativa) de sensação de quase… ridículo.

E quando pensa nisso, e na infantilidade daquela “pobre gente”, o ateu muitas vezes esboça até um sorriso.

Mas não por muito tempo:
Porque pensar nos milhões de pessoas que ao longo dos tempos foram mortas em nome desse patético conto de fadas, desse culto ao nada, dessa mera curiosidade antropológica, inútil, mesmo infantil e até um pouco ridícula, não dá vontade de rir realmente nenhuma…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

24 de Junho, 2006 lrodrigues

Uma Mancha no Passado

O Papa Bento XVI nomeou como novo Secretário de Estado do Vaticano o Cardeal Tarcisio Bertone.

Bertone, que é também Arcebispo de Génova e tem 72 anos de idade, irá suceder neste cargo (que é assim uma espécie de Primeiro-ministro do Vaticano), ao Cardeal Sodano que aos 78 anos atingiu o limite de idade de 75 anos que está estipulado no Código de Direito Canónico.

O Cardeal Tarcisio Bertone parece indiscutivelmente ser a pessoa indicada para este cargo de altíssima responsabilidade.
De facto, Bertone foi de 1995 a 2002 o braço direito do Papa Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé, que como toda a gente sabe é o eufemismo actualmente utilizado para a Santa Inquisição.
Mais recentemente, Tarcisio Bertone ficou conhecido por ter dado a cara pela campanha desenvolvida pelo Vaticano contra a exibição do filme «O Código da Vinci».
É, na verdade, um currículo invejável.
Como é óbvio, o Papa está no seu pleno direito de nomear quem muito bem lhe apetecer e quem ache mais adequado para o desempenho dos mais diversos cargos no Vaticano.
Até porque a sua infalibilidade lhe garante sempre uma escolha acertada.
Mas há uma indelével mancha no passado do Cardeal Tarcisio Bertone, uma maldade por si impiedosamente praticada, que eu não posso de forma alguma tolerar, e muito menos entendo que tenha sido esquecida pelo Rotweiller de Deus, o Papa Bento XVI.
Foi no final dos anos 90:
O arcebispo de Lusaka, na Zâmbia, o Monsenhor Emanuele Milingo resolveu um belo dia aderir a uma seita animista e esotérica, com ligações à célebre «Igreja da Unificação», do famoso e inefável Reverendo Moon.
Vai daí, o bom do Emanuele Milingo largou a Igreja Católica e casou-se em Nova York, numa cerimónia religiosa colectiva, com uma grande-sacerdotisa da tal seita animista, uma senhora de nome Maria Sung Ryae Soon, tida como pessoa de grandes dotes e ainda por cima especialista em acupunctura.
Estava o Emanuele posto em sossego, a desfrutar os prazeres e colhendo o doce fruto do leito e dos conhecimentos esotéricos da sua nova consorte, e a preparar já a fundação de uma «Igreja Paralela» em África, quando a galhofa internacional obrigou o Papa João Paulo II a fazer alguma coisa.
Foi precisamente o novo Secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Tarcisio Bertone, quem na ocasião foi escolhido para a delicada missão de recolher a ovelha tresmalhada.
Então, apelando aos seus melhores dotes de argumentação, e certamente com a ajuda do Divino Espírito Santo, que sozinho não ia lá, Bertone lá conseguiu convencer o coitado do Emanuele Milingo a abandonar a seita animista, a desistir dos seus planos de criação de uma Igreja Paralela, a divorciar-se da grande-sacerdotisa e a abandonar o seu leito conjugal e os prazeres da carne e da acupunctura que ela lhe proporcionava e, pasme-se, a regressar ao seu cargo de arcebispo e ao seio da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.
– Ora, isto não se faz!!!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)


2 de Junho, 2006 lrodrigues

A Pergunta Certa

No passado domingo o Papa Bento XVI, visitou o campo de concentração de Auschwitz.

Foi neste campo de concentração, célebre pela ironia cruel das palavras «Arbeit Macht Frei» (o trabalho liberta) inscritas no alto do portão de ferro da sua entrada, que durante os anos de ocupação alemã foram praticados os mais horrendos crimes que a História da Humanidade já conheceu.
Decerto impressionado pelo tremendo peso histórico daquele local e tocado pela memória de quase dois milhões de seres humanos, a maior parte judeus, que ali morreram no meio do mais indizível sofrimento, o Papa Bento XVI perguntou, claramente comovido:
«Onde estava Deus naqueles dias? Porque ficou Deus silencioso? Como pode Deus permitir este infindável massacre, este triunfo do mal?»
Mas Bento XVI não fez certamente as perguntas correctas!
Visitando como Papa, enquanto líder máximo da Igreja Católica, um local de tanto sofrimento, talvez a pergunta mais adequada que Bento XVI deveria ter feito era:
– Durante os massacres de Auschwitz, onde estava Pio XII? Onde estavam todos os responsáveis do Vaticano? Como puderam eles ficar silenciosos perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
E então, talvez bem a propósito, lhe surgissem tantas outras perguntas, há tanto tempo ainda sem resposta.
Por exemplo:
– Durante os massacres de Lenine e Estaline, onde estava Pio XI? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
– Durante as ditaduras em Portugal e Espanha, durante as ditaduras militares da América do Sul, durante os massacres de Pinochet, Videla e outros que tais, onde estava Paulo VI? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
– Durante os massacres de Mao Tse Tung e de Pol Pot, onde estava João XXIII? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
– Durante os piores anos destas mesmas ditaduras, durante todos estes massacres em todos os continentes, onde estava João Paulo II? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
– Durante os mais negros anos da Inquisição, por exemplo durante Tomás de Torquemada, onde estava Inocêncio VIII? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
– Durante o processo de Galileu, onde estava Urbano VIII? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
– Durante a imolação pelo fogo de Giordano Bruno, onde estava Clemente VIII? Como pode ele ficar silencioso perante este infindável massacre, este triunfo do mal?
Ou seja:
A pergunta certa não é, pois, «onde estava Deus?».
Esse, como é hábito, tem as costas largas e nós já sabemos onde estava:
– Estava no sítio do costume!

Muito pelo contrário, a pergunta certa deveria antes ser:

– Onde estavam os homens?

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

11 de Maio, 2006 lrodrigues

O anti-boicote

Dentro de poucos dias estreará em quase todo o mundo o filme «O Código da Vinci», inspirado no romance do mesmo nome de Dan Brown.

Mas a estreia deste filme tem sido tudo menos pacífica:
Nas Filipinas, o ministro da presidência Eduardo Ermida afirmou que, como bom católico, não pode tolerar que o filme seja exibido em nome da liberdade de expressão, considerando-o blasfemo.
No Brasil, o piedoso deputado Salvador Zimbaldi procura impedir a exibição do filme através de uma providência cautelar que requereu nos tribunais brasileiros, e que já foi derrotada em primeira instância.
No Peru, o cardeal arcebispo de Lima, Juan Luis Ciprianim exortou os católicos a rechaçar o Demónio que atenta contra a fé e se manifesta nestes dias com uma versão que desmente a traição de Judas a Jesus, e que é precisamente esse mesmo Demónio, que está solto e cobiça as almas, quem está por trás do filme.
Na Inglaterra, a própria Opus Dei trava uma batalha judicial para evitar a estreia do filme, e insiste que a Sony Pictures deveria tomar a iniciativa de a cancelar ou, pelo menos, incluir no filme um aviso aos espectadores católicos mais atrasados mentais que o filme não passa de uma obra de ficção.
Numa ameaça perfeitamente explícita, esta ilustre organização de bons e fervorosos católicos parece querer fazer jus ao modo como é retratada no livro e, numa alusão à reacção muçulmana aos cartoons dinamarqueses, dá-se ao luxo de alertar para «as possíveis reacções que nestes tempos conturbados a exibição do filme pode ainda vir a causar».
Na Índia, o “Forum Social Católico” convocou uma cruzada de orações e também uma greve de fome por tempo indeterminado, como protesto pela estreia do filme naquele país.
Como se não bastasse, estes bons e piedosos católicos – e porque a fé move montanhas – oferecem ainda uma recompensa em dinheiro a quem capturar o escritor Dan Brown, vivo ou morto.
No Vaticano, três importantes cardeais lamentaram a ignorância religiosa que alimenta o interesse pelo romance. O próprio ministro da cultura do Vaticano, o cardeal francês Paul Poupard, dizendo que o livro distorce gravemente a história da Igreja e que as pessoas, coitadas, não têm conhecimentos religiosos suficientes para separar a realidade da ficção, apelou juntamente com outros cardeais e com o arcebispo Angelo Amato, a um boicote generalizado ao filme por parte de todos os bons católicos.
Pois bem:
Se é possível o apelo a um boicote, porque não será também possível o apelo a um “anti-boicote”?
Por mim, e independentemente da curiosidade que tenho de ver as interpretações de Tom Hanks e Audrey Tautou e de apreciar como Ron Howard transpôs para a tela a história de Dan Brown, irei logo que possa ver o filme.
Nem que seja só para marcar uma posição.
É esse precisamente o apelo que aqui deixo:
O “anti-boicote” ao filme «O Código da Vinci»!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

4 de Maio, 2006 lrodrigues

Um Mal Menor

Segundo o «Independent», a Igreja Católica poderá estar próxima de uma mudança histórica na sua atitude perante o uso do preservativo, «o que poderá trazer uma nova esperança para milhões de pessoas» de países subdesenvolvidos actualmente devastados pela SIDA.

Um responsável do Vaticano declarou mesmo que está a ser conduzido «um estudo científico, técnico e moral muito profundo».

Mas atenção:

A ser aberta uma excepção o uso do preservativo só será permitido para casais devidamente unidos pelo matrimónio católico, e em que um deles, ou ambos, estejam infectados com o vírus do HIV.
Nesta situação a Igreja Católica poderá vir a considerar o uso do preservativo «um mal menor».

Para os restantes casos não serão abertas excepções!

Ora bem:
Não quero aqui falar da interessantíssima forma como a Igreja, da escuridão fria dos corredores do Vaticano, continua a encarar a mulher e, sem sequer se aperceber daquilo que diz, declara com a certeza de um especialista na matéria: «se a sobrevivência de uma mulher estiver ameaçada pelos avanços sexuais do marido, ela terá a justificação de se defender a si própria, persuadindo o homem a usar um preservativo».
Absolutamente notável!

Também não quero falar da estupidez de uma instituição religiosa que nem sequer com os seus próprios erros aprende: ora queima Giordano Bruno ou excomunga Galileu, ora lhes pede desculpa séculos mais tarde.

Nem sequer da imbecilidade despropositada de meia dúzia de cretinos que se arrogam o direito de determinar a vida das pessoas – católicos e não católicos – e de friamente influenciar por esse mundo fora a sua vida e a sua morte.

Nem sequer quero falar do próprio reconhecimento de que a simples mudança da política da Igreja Católica perante o preservativo «poderia trazer uma nova esperança a milhões de pessoas», num planeta que conta já com 40 milhões de infectados e com 13.000 novas infecções todos os dias.

Mas é interessante realçar que para a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, e para os nababos de saias que vivem à sua sombra, os dogmas religiosos e uma encíclica anacrónica e imbecil continuam a ser mais importantes que as vidas dos milhões de seres humanos que «os restantes casos» não abrangidos pela «excepção» ainda representam.

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

19 de Abril, 2006 lrodrigues

O Pogrom de Lisboa

Foi exactamente há 500 anos.

O dia 19 de Abril de 1506 amanheceu pacífico e soalheiro.
Na igreja de São Domingos, em Lisboa, a missa dessa manhã decorria provavelmente com a calma modorra do costume.
Mas, de súbito, a placidez da missa foi interrompida por um estranho fenómeno que se oferecia perante os olhos de todos os fiéis: a imagem do Cristo pregado na cruz que se encontrava sobre o altar estava iluminada por uma estranha e misteriosa luz.
A superstição e a exacerbada crença dos fiéis imediatamente os fez acreditar estar na presença de um milagre: a imagem do Cristo parecia até que irradiava luz própria.
Todos se ajoelharam em fervorosas preces, em êxtase perante aquele milagre que se lhes oferecia, ali mesmo, à frente dos seus olhos.
Mas há sempre um desmancha-prazeres em histórias como estas: um dos fiéis mais afoitos logo se apressou a explicar aos seus colegas de missa que a luz nada tinha de misteriosa, pois provinha simplesmente do reflexo de uma candeia de azeite que estava ali próxima.
E pronto! Caiu o Carmo e a Trindade!
A primeira coisa que alguém descobriu foi que o chico-esperto era um cristão novo, um judeu convertido à pressa mas, pelos vistos, demasiado depressa.
Foi o suficiente para logo dali o arrastarem pelos cabelos para o adro da igreja, onde foi imediatamente chacinado pela multidão dos fervorosos tementes a Deus, e o seu corpo queimado no local.
O êxtase místico da multidão logo se propagou a toda a cidade.
Lisboa parecia ter ela própria enlouquecido.
Respeitáveis representantes do clero católico saíram dos seus pacatos refúgios de oração e percorriam as ruas de um lado para o outro empunhando crucifixos e gritando: «Heresia! Heresia!».
A multidão depressa foi engrossando e, ajudada até por marinheiros holandeses e dinamarqueses que se encontravam no porto, iniciou uma gigantesca rusga por toda a cidade.
Para evitar o caos e a anarquia, sempre más conselheiras, os padres e frades dominicanos tomaram a piedosa responsabilidade de organizar convenientemente o tumulto: judeu ou cristão-novo que era identificado ou apanhado, era imediatamente preso e levado para o Rossio e ali era queimado em gigantescas fogueiras que os escravos municiavam ininterruptamente de lenha.
Os judeus e os cristãos novos, homens e mulheres, que se refugiavam em casa eram arrancados à força dos seus esconderijos. Até as crianças de berço eram fendidas de alto a baixo ou esborrachadas de encontro às paredes.
Como mesmo nestas coisas da fé é sempre bom juntar o útil ao agradável, o misticismo assassino daqueles fervorosos e bons católicos não os impediu de pilhar as casas por onde passavam e de ajustar velhas contas com inimigos que muitas vezes nada tinham a ver com o judaísmo.
Mesmo os que se refugiavam nas igrejas e se agarravam desesperadamente às imagens dos santos eram levados e arrastados à força para o Rossio e queimados vivos.
A chacina durou dois dias e só terminou por puro cansaço da populaça.
Relatos da época falam no sangue que escorria pelas ruas abaixo no Bairro Alto ou na Mouraria.
Calculam os historiadores que nesta matança em nome dos mais sagrados princípios e da pureza do catolicismo morreram mais de 4.000 pessoas.
Tudo, claro, em nome dessa coisa extraordinária que algumas pessoas têm e que tanto se orgulham de ter, que se chama «Fé».
Tudo feito por bons católicos.
Tudo em nome de Deus.
Como não podia deixar de ser, adiro entusiasticamente ao extraordinário desafio lançado pelo Nuno Guerreiro:
Também eu irei hoje ao Rossio acender uma vela simbólica em memória destas vítimas do fanatismo religioso católico.

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

9 de Abril, 2006 lrodrigues

A Intolerância Cor-de-rosa

Fui na semana passada convidado pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas para participar num debate subordinado ao tema do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Um convite que, como é óbvio, não deixou de me honrar pessoalmente.

Foi um debate interessantíssimo, moderado por um professor cuja competência foi ainda mais realçada por ser de opinião manifestamente contrária à minha.
As perguntas dos alunos, no final, revelaram um interesse, um conhecimento e uma abertura intelectual no meio Universitário que não deixou de me surpreender, até pela juventude dos intervenientes.

Poderia a discussão ter sido, porventura, mais interessante e esclarecedora, não fora uma outra interveniente, igualmente convidada pela Universidade, ter declinado o convite por se recusar terminantemente a participar num debate… em que eu estivesse.

Trata-se de uma deputada, eleita pelo Partido Socialista, de nome Maria do Rosário Carneiro.

Claro que não sei nem faço a mínima ideia (e também, a bem dizer, não quero saber), porque motivo a senhora deputada não quis participar num debate em que eu estivesse presente.
Não terá sido, decerto, por qualquer tipo de temor intelectual.
Nem, com toda a certeza, por qualquer forma de discriminação.
Nem muito menos por pertencer à Opus Dei e estar a cumprir ordens do Papa Bento XVI, que ordena aos católicos que cortem qualquer comunicação com as pessoas que se tenham afastado da doutrina católica.

Mas não deixa de ser curioso que esta ilustre deputada (para além de ser professora na Universidade Católica e também da própria faculdade onde decorreu o debate), foi presidente da «Rede Europeia de Comissões Parlamentares para a Igualdade de Oportunidades» e pertence agora à «Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias» da Assembleia da República.

Pela firmeza das suas convicções, estou absolutamente persuadido da competência, da imparcialidade, do extremo rigor e da eficácia com que esta deputada exerce os cargos para que foi eleita…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

6 de Abril, 2006 lrodrigues

A Tentação

Era, na realidade, uma mulher muito bonita.

Procurara-me porque pretendia divorciar-se do marido.
Casada há pouco mais de seis anos e com um filho de cinco, a decisão do divórcio era irredutível e, disse-me, tomada há já longo tempo.
As negociações com o advogado do marido foram até invulgarmente simples, e em muito pouco tempo tínhamos conseguido o divórcio por mútuo consentimento.

No final, embora ela não tivesse de o fazer, penso que adivinhou a minha curiosidade e acabou por me contar o que tinha conduzido à ruptura do seu casamento.

Como o marido era um fervoroso católico, casara-se pela igreja muito nova e ainda virgem, numa cerimónia muito bonita e cheia de gente bem.
Ela e o marido tinham combinado “mandar vir” um filho logo após o casamento e, de facto, menos de um ano depois nascera o único filho do casal.

Só que, logo pouco depois do nascimento do filho, começou a notar um notório afastamento do marido. O sexo desapareceu subitamente das suas vidas e o marido passou até a dormir no sofá da sala.
A primeira coisa que pensou foi que o marido era afinal homossexual; mas o problema não era esse.

Ao fim de muitas insistências, repetidas até ao logo de vários anos, o marido acabou um belo dia por lhe contar toda a verdade:
Não só era um piedoso católico como era até membro da Opus Dei.
Ora, como tinha combinado com a mulher não terem por enquanto mais filhos, o marido não queria manter com ela um relacionamento sexual como uma frequência tal que pudesse ser interpretada como pecado ou que não tivesse a procriação como objectivo primordial.
A pílula, o preservativo ou qualquer outro método anticoncepcional estavam absolutamente fora de questão, porque, como é bom de ver, constituíam um pecado e estavam proibidos pela Igreja.

A sua decisão de dormir no sofá da sala tinha uma explicação muito mais simples: como reconhecia que a mulher era muito bonita, não queria dormir com ela para não cair em tentação.

Durante algum tempo a mulher tentou ainda lutar pelo seu casamento, mas há já um bom par de anos acabara por desistir, face à intransigente persistência do marido.

Pois é:
Estou absolutamente convicto que este piedoso e fervoroso católico, ainda por cima membro da Opus Dei e tão fiel às suas convicções, quando morrer vai entrar direitinho para o Céu.

Mas, pelo que a mulher me contou ainda, sei também que vai entrar, sim, mas com um grande par de cornos…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

11 de Março, 2006 lrodrigues

A Verdade dos Factos

A Conferência dos bispos católicos dos Estados Unidos criou um site na Internet com o objectivo de repor a verdade dos factos sobre a doutrina e a religião católicas.

Tratando de temas tão diversos como o celibato de Jesus e a sua divindade, os evangelhos, Maria Madalena e até a Opus Dei, este interessante site – «Jesus Decoded» – proclama-se “defensor da verdade” e indigna-se com aqueles que pretendem impingir crenças às pessoas sobre “coisas que elas nunca viram”.
Com uma linha editorial como estas, poderíamos ser levados a supor que este site tão piedoso clama contra a fraudulenta e miserável exploração da crendice e da fragilidade emocional das pessoas levada a cabo por tantos charlatães por esse mundo fora.
Por isso mesmo, poderíamos pensar que um site criado pelos próprios bispos dos Estados Unidos se indignaria contra o autêntico escândalo que a Igreja Católica promove em Fátima, em Lourdes e em tantos outros santuários por esse mundo fora, unicamente com o fito de angariar fundos multimilionários para os sapatinhos vermelhos e para as comodidades e mordomias do Papa e do seu séquito de ociosos nababos que com ele coabitam no Vaticano.
Poderia até falar de exorcismos levados a cabo por padres fanáticos que desgraçam a vida a pessoas inocentes, ou da invenção de milagres para impingir aos crentes mais débeis a santidade de um qualquer facínora para mais tarde o promover a semi-deus.
Poderia ainda desmascarar a forma simplesmente abjecta como a Igreja Católica tem procurado ocultar o escândalo da pedofilia praticada pelo clero por esse mundo fora.
Mas não!
O site tem como único objectivo, pasme-se, «desmascarar» um livro de segunda categoria, o «Código da Vinci», da autoria de Dan Brown.
Sem perceber que se trata de um simples romance de aventuras, e incapaz de o proibir e de o queimar como «nos bons velhos tempos», a Igreja Católica está tão apavorada com o conteúdo do livro que nem vê o ridículo em que cai, com tantos desmentidos e até ameaças à sua publicação e à sua produção cinematográfica..

Como se, de repente, a interpretação mais ousada que um romancista faz da vida de Jesus Cristo e de um quadro de Leonardo da Vinci estivesse a pôr em causa toda a estrutura e os próprios fundamentos básicos da religião católica.

É uma preocupação tão grande que parece mesmo que, de súbito, a Igreja Católica finalmente se apercebeu da fragilidade e da inverosimilhança das patranhas que anda a impingir às pessoas há quase dois mil anos…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

8 de Março, 2006 lrodrigues

A Mulher Católica

O dia 8 de Março é o «Dia Internacional da Mulher».

As principais religiões do mundo definem-se a si próprias como defensoras de princípios éticos de honestidade, de paz e de tolerância e amor ao próximo.
No entanto, o que é facto é que, na prática, TODAS ELAS – quer historicamente, quer ainda agora – acabam por ser acérrimas opositoras de quem não perfilha as mesmas ideias, ou de quem tão simplesmente pratica o culto ao seu Deus de modo distinto.
É mesmo das religiões que provêm os mais chocantes exemplos de intolerância e preconceito.
E, se a Igreja Católica Apostólica Romana não é excepção, ela caracteriza-se também pela mais profunda e abjecta homofobia e pela mais inqualificável misoginia.
Provavelmente mais ainda do que as restantes religiões.
Senão vejamos:
Logo nos princípios fundamentais das religiões cristãs, transmitidos directamente e sem intermediários pelo próprio Deus a Moisés, consta como mandamento: «não cobiçar a mulher alheia».
Ora, quer isto dizer que o próprio Deus reduziu a mulher a um mero e passivo objecto de cobiça, sem autonomia de vontade para a negar ou para lhe resistir.
E quer isto dizer que não resta ao homem outra alternativa para resguardar da cobiça alheia a mulher de que é “proprietário”, não a vontade da própria mulher (que a vontade da mulher não é para aqui chamada), mas somente o último recurso: a vontade divina.
E como a autoridade suprema só tem de legislar em função daquilo que é necessário e que é previsível que aconteça, nem sequer se deu ao trabalho de prever um mandamento que, reciprocamente, proíba a mulher de cobiçar o homem alheio.
Obviamente que a mulher não tem capacidade suficiente para levar a cabo uma tarefa tão masculina como é essa de «cobiçar».
Como está absolutamente fora de questão a própria mulher querer vir um dia… a ser cobiçada…
Na verdade, se alguma coisa é característica da Igreja Católica é o modo como a mulher é encarada como algo sujo e pecaminoso, um ser de segunda categoria e absolutamente desprovido de raciocínio, e que deve ao homem obediência cega.
O próprio celibato do clero não visa mais do que afastar todos aqueles santos homens, representantes de Deus na Terra, dessa coisa horrível que é a mulher, que só os distrai das sagradas tarefas de Deus e os aproxima inexoravelmente do pecado.
Principalmente desde o Século IV com Santo Agostinho (que deve ter sido um tarado sexual de primeira apanha), o próprio modo como a Igreja Católica encara o sexo – simplesmente como algo porco e um horrível pecado contra Deus – reflecte-se imediatamente no modo como é encarado o “objecto” desse sexo: a mulher.
Assim, como poderia a Igreja Católica permitir a ordenação dessa coisa suja e abjecta que é a mulher? A mulher nem sequer tem dignidade para ajudar à missa, quanto mais para ser padre!
Desde há séculos, a mulher não é mais do que o oposto polo aristotélico do homem, e não serve para mais do que, pela negativa, o afirmar positivamente.
Como o mal afirma o bem; como o negativo afirma o positivo.
E não são raros os exemplos históricos das mulheres que, por falharem nesse seu sagrado desígnio foram queimadas como bruxas.
Bastava que alguém desconfiasse que pensavam por si, ou que tão somente demonstrassem qualquer aptidão artística.
As próprias mulheres que se aproximaram de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, são tratadas pela Igreja Católica com um machismo e uma misoginia que não se entende que ainda prevaleça e se aceite nos nossos dias.
Teria sido absolutamente normal que Jesus Cristo, afinal um homem, tivesse casado com Maria Madalena, a quem teria tratado como sua igual, e que teria sido sua fiel e confidente companheira.
E que o teria acompanhado nos momentos mais difíceis da sua vida. E que nunca o abandonou, nem mesmo na hora da sua morte.
Mas, como está absolutamente fora de questão que Jesus Cristo, Deus e filho de Deus, do alto da sua santidade de Espírito Santo se tenha alguma vez «conspurcado» pelo contacto com uma mulher, desde logo a Igreja Católica imediatamente reduziu a pobre Maria Madalena ao nível mais baixo do escalão mais baixo que já por si era como mulher: passou a ser uma prostituta.
Mas o exemplo mais paradigmático da misoginia da Igreja Católica é o que se passa com a própria mãe de Jesus Cristo, a Virgem Maria.
A Maria de Nazaré foi pura e simplesmente negado ser mulher.
E para que Maria pudesse ser mãe, mesmo sem ser mulher, foi então determinado que fosse virgem, obviamente por intermédio de um dogma, que é para não haver mais discussões.
De tal modo que ninguém se importou que com isso o carpinteiro com quem era casada fosse automaticamente transformado assim numa espécie de «corno manso», incapaz de consumar o seu próprio casamento.
Uma vez mais com a persistente ideia (que para mim é inegavelmente muito suspeita) de que o sexo não é uma coisa tão natural como comer ou dormir, mas antes uma coisa suja e pecaminosa, a Igreja Católica passou a tratar a mãe de Jesus como a «Virgem», a «Imaculada» ou outros impropérios do género, fazendo-a subir aos Céus toda ela, em alma e corpo, com hímen e tudo, sem sequer lhe dar direito a ter tido uma simples relação sexual na sua vida terrena.
Porque, para a Igreja Católica, depois de ter tido uma relação sexual a mulher nunca mais será a mesma e não serve já para mais nada.
Ao contrário do que acontece com o homem que, como toda a gente sabe, está acima dessas coisas.
Até o seu esperma é sagrado e não pode ser derramado inutilmente, sob pena de morte.
A mulher, não. Porque a mulher já foi «tocada». Já foi «suja». Já tem uma «mácula» que nunca mais sai.
E, nem que fosse só para ser mãe, uma mulher assim «manchada», já não poderia subir aos Céus.
Pois não é ter relações sexuais sinónimo de «pecar»?
E mais: assim numa coisa que parece muito próxima de uma vulgar e africana excisão ritual de clitóris, nem sequer foi dado a Maria de Nazaré o direito de subir aos Céus sem ter tido um orgasmo.
E agora é tarde, porque nos Céus não há cá dessas porcarias.
Porque, como é óbvio, Deus não quer.
Pois se Deus é pai, é filho e é espírito santo, então, e como toda a gente sabe, Deus… é HOMEM!
Uma coisa é certa:
Nunca deixará de me surpreender como é que uma MULHER, digna desse nome e orgulhosa da sua condição, pode em plena consciência intitular-se CATÓLICA!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)