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Carlos Esperança

22 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

O bispo e a co-incineração

D. Albino Cleto, bispo de Coimbra, sucessor do casto e piedoso bispo resignatário D. João Alves, lamentou ontem que surgisse «de novo a co-incineração» para eliminar os lixos e resíduos tóxicos. Acrescentou ainda que «a solução não pode ser política, tem que ser científica e com respeito pelas populações».

Que eu saiba a co-incineração era a solução mais correcta em termos ambientais e a mais económica quando, por motivos políticos, foi recusada por todas as bancadas da oposição, incluindo os deputados do PS por Coimbra. Três anos depois nada se fez para resolver um gravíssimo problema de saúde pública – a eliminação dos lixos e resíduos tóxicos.

Durante este tempo não vi Sua Excelência Reverendíssima preocupado com os lixos, talvez ocupado com o destino das almas. Fico sem saber se a posição do bispo se deve a uma forte convicção com apoio científico ou se a co-incineração lhe desagrada pelo facto de a ICAR ter maiores tradições na incineração dedicada…ao castigo de relapsos, blasfemos, judeus, bruxas e outros.

19 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Mensagem – 3.º Encontro Nacional de Ateus

Companheiro/as

A combinação de religião e política não faz um país melhor mas torna o Estado muito pior. Por isso, a sociedade secular não pode consentir nenhum tipo de mistura.

No dealbar do novo milénio o islão é a crença cuja demência dos seus prosélitos atingiu fulgor mais esquizofrénico. Regista-se um fenómeno regressivo, de virulência inusitada, na generalidade dos países submetidos ao Alcorão. O ambiente cultural definha, os direitos humanos são postergados, a liberdade é cerceada e as mulheres massacradas, num mundo cruel de contornos paranóicos.

À medida que a decadência avança e o fracasso da cultura árabe se acentua, a religião é o que resta como afirmação da identidade de uma sociedade que renunciou à modernidade, estagnou e se atolou na miséria, na ignorância e na fé. A religião deixou de ser uma crença para consumo individual e transformou-se no aparelho repressivo que controla tudo e todos, num terror colectivo alimentado pela delação e constrangimento social.

É ingénuo responsabilizar os países colonizadores, culpar a cobiça pelo petróleo, denunciar a espoliação dos seus recursos. Tudo isso é verdade, como é verdade o direito da Palestina à existência, tal como o de Israel, mas o islão é a maior tragédia que se abateu sobre os árabes, mais destruidora do que todas as catástrofes naturais juntas, e a espalhar-se como vírus letal um pouco por todo o planeta.

A religião, mais do que a crença disponível para oprimir e embrutecer os povos, é no islão o cimento que aglutina nações e tribos dilaceradas por ódios e ressentimentos internos, para as orientar contra o inimigo comum – os infiéis, ricos, instruídos e felizes, considerados um insulto à vontade divina. Por sua vez, a língua árabe transforma-se em instrumento religioso a que os clérigos atribuem carácter sagrado.

Perante tal desvario podia pensar-se que a difusão e aprofundamento do laicismo seriam reclamados como vacina capaz de conter o vírus. Puro engano. Um fenómeno mimético, estranho e preocupante, percorre os países democráticos onde a religião dominante, contida no domínio privado, apoia as exigências das concorrentes e reclama o espaço público onde, a médio prazo, espera medir forças e impor a hegemonia. O Estado laico é agora o inimigo comum a abater para, depois, se aproveitar dos órgãos do poder e tentar o exclusivo. Há um recuo civilizacional e ideológico em marcha para ajustar a sociedade ao espírito religioso. Não podendo as religiões renunciar aos equívocos em que se fundamentam, esforçam-se por fazer regredir os povos até serem aceites.

O cristianismo está hoje a ensaiar uma postura integrista, comum a ortodoxos, protestantes e católicos. E não são apenas os clérigos a vociferar em nome de Deus, são legiões de crentes, acirrados nas sacristias, a brandir crucifixos, são intelectuais, organizados em seitas, a debitar a Bíblia e restos do mundo rural, aterrados com o juízo final, a fazer maratonas de jejuns, orações e penitência. O papa JP2 afastou da ICAR muitos cidadãos mas transformou os que ficaram em histéricos soldados de Cristo, em prosélitos ávidos da conversão do mundo, sendo o Opus Dei e o Movimento Comunhão e Libertação dois dos mais sinistros e radicais.

Os cristãos dos EUA, que impõem a Bíblia nos actos públicos, as orações e os crucifixos nas escolas, que gostariam de que a ciência se reduzisse ao artesanato que criou o homem segundo a descrição bíblica, são iguais aos mullahs islâmicos, aos judeus das tranças, aos cristãos ortodoxos que se colam ao aparelho de Estado e, tal como os católicos, se mortificam, encerram-se em conventos e submetem-se aos dogmas. O jejum, a abstinência, a oração e o martírio são distracções masoquistas comuns a todas as religiões, reservando o sadismo para os infiéis e apóstatas.

Não há características étnicas que predisponham ao crime, há preconceitos culturais que o fomentam, fanatismo que o estimula, obsessão pelo Paraíso que o impõe. Urge denunciar as religiões sem estigmatizar os crentes. Fazer a exegese dos textos «sagrados», apontar o seu carácter violento, o espírito cruel e a natureza feroz, reflexos da época em que foram escritos, não é responsabilizar os devotos pelas malfeitorias da religião. O ateísmo combate a mentira e o crime, não as suas vítimas, ainda que estas possam ser fanatizadas e postas ao serviço do despotismo divino.

Nem todos os árabes são muçulmanos e, destes, são em número reduzido os terroristas. Seria um erro confundir um grupo de pessoas particular com o carácter criminoso da crença que não podem abjurar sem risco de vida. O combate às religiões não é contra os crentes. A necessidade de as remeter para a esfera privada não priva os devotos de regalias, pelo contrário, assegura-lhes o acesso aos direitos, liberdades e garantias que só o Estado de direito confere, contra a vontade do clero.

A crueldade dos livros sagrados não pode servir de pretexto para perseguir os crentes mas deve ser-lhes mostrada, para os tornar um pouco menos crentes e bastante mais críticos.

Quando se reiteram as virtudes das religiões, nomeadamente o espírito de paz, devemos precaver-nos contra o ódio que medra nas alfurjas da fé e os crimes que aí se organizam. A pobreza, a discriminação e a fé são uma mistura explosiva que conduz os mais pobres de espírito ao caminho do assassínio e do martírio.

A predisposição beligerante dos credos, na obsessão hegemónica e monopolista que os desvaira, só pode ser travada com a submissão a um quadro legal inflexível que trate igualmente todas as religiões e que submeta ao código penal os crimes com motivações religiosas. A Constituição laica e o seu rigoroso respeito, sem concordatas ou outras tergiversações, é o antídoto para os desmandos cruéis que contagiam os países civilizados. É preciso debelar a infecção para evitar o regresso ao passado.

O ateísmo pretende um mundo de amplas liberdades, onde não se expurguem livros e não voltem a ser possíveis autos de fé; luta pela erradicação do esclavagismo e da xenofobia; exige a igualdade de direitos entre os sexos, que as religiões sempre negaram; crê na fraternidade humana e no êxito da luta contra a pobreza, o medo, a doença, a ignorância e a superstição.

O ateísmo aspira a que as religiões deixem de ser o instrumento de alienação dos povos, que cesse a sementeira de ódio entre as nações, que os escravos do Deus que herdaram dele se possam libertar sem perigo; ambiciona que seja erradicada a violência que os livros sagrados exaltam, para que os anátemas que lançam sejam desprezados e os castigos com que ameaçam se tornem risíveis.

O ateísmo assume, defende e promove, sem tibieza ou tergiversações, os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Não foram os ateus que mataram Deus, foi ele que se suicidou, incapaz de renunciar à crueldade com que os homens o criaram e de conformar-se com a liberdade, o progresso e a modernidade. Tanto pior para o clero que vive à sua custa e ainda bem para os crentes que do mito se libertam.

Este nosso encontro destina-se ainda a achar a forma de combater o crescente poder da ICAR, em Portugal, graças a cumplicidades no aparelho de Estado, enquanto a sua influência vai minguando na sociedade.

Bem-vindos a Coimbra. 19/12/2004

17 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Guerra das igrejas

A guerra comercial entre a ICAR e a Igreja Ortodoxa Russa (IOR), na luta pela clientela e pelo direito de confiscar as almas, tem efeitos devastadores na delimitação das fronteiras.

A Ucrânia é hoje um campo de batalha onde o proselitismo religioso atinge o mesmo vigor que a luta política onde russos e americanos disputam a hegemonia. Até o veneno, um expediente com forte tradição religiosa, já foi experimentado para alterar os resultados eleitorais, provavelmente com efeitos contraproducentes.

A indústria também trava combates ferozes pelo domínio dos mercados, mas é no comércio das almas que a brutalidade atinge o seu máximo esplendor. O Patriarca Alexis II mostra-se «especialmente preocupado» com o proselitismo da Igreja greco-católica na Ucrânia. E acha inaceitável a actividade missionária dos sacerdotes católicos nas outras onze repúblicas da ex-União Soviética.

«Não negamos o direito dos sacerdotes católicos a administrar suas paróquias tradicionais, mas, consideramos inaceitável a sua actividade missionária entre a população ortodoxa, particularmente, as tentativas de converter as crianças baptizadas na fé ortodoxa ao catolicismo» – afirma Alexis II.

De facto, cada religião defende as suas coutadas privativas. Não sei qual se comporta pior, se a ICAR ou a IOR. Por mim, poria um «X», acredito no empate. Só acho inaceitável que, na conquista do mercado, não resistam a angariar crianças.

16 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Assistência Espiritual e Religiosa

O autor da prosa que os hospitais receberam hoje por correio electrónico não é um clérigo. Trata-se de um político que dispõe de uma sinecura onde tem tempo para se dedicar ao proselitismo religioso. É a pessoas assim que o Estado confia a neutralidade religiosa a que está obrigado pela Constituição.

Eis as directrizes do piedoso dirigente do Ministério da Saúde aos hospitais:

LINHA DIRECTA Nº29

Assuntos: Assistência Espiritual e Religiosa

Exmos. Senhores Presidentes dos Conselhos de Administração dos Hospitais SA

De acordo com o disposto no art. 83º do Estatuto Hospitalar previsto no Decreto – Lei n.º48 357, de 27 de Abril de 1968, a assistência aos doentes é assegurada nos termos da Concordata com a Santa Sé, decorrendo do art. 56º do invocado diploma que o pessoal religioso tem estatuto especial.

A Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 18 de Maio de 2004, prevê que a segunda «(…) garante à Igreja Católica o livre exercício da assistência religiosa católica às pessoas que, por motivo de internamento em estabelecimento de saúde, de assistência, de educação ou similar, ou detenção em estabelecimento prisional ou similar, estejam impedidas de exercer, em condições normais, o direito de liberdade religiosa e assim o solicitem».

Nestes termos,

Considerando que as disposições invocadas se mantêm em vigor, suscitando-se apenas a sua adaptabilidade ao novo regime jurídico da gestão hospitalar aprovado pela Lei n.º27/2002;

Considerando que os hospitais sociedades anónimas de capitais exclusivamente públicos se incluem no âmbito da Concordata e integram o Serviço Nacional de Saúde;

Considerando que o doente é um sujeito de espiritualidade e que a assistência espiritual e religiosa possui um efeito terapêutico benéfico na relação com o sofrimento e a doença;

Considerando o postulado e o espírito do Decreto-Regulamentar n.º58/80, de 10 de Outubro, que se mantêm actuais; e,

Considerando que a assistência religiosa deve ser assegurada de forma integrada por capelães ou assistentes espirituais – diáconos, religiosos, religiosas, ou leigos – devidamente formados para o efeito.

Informa-se:

1. A assistência religiosa católica aos doentes e respectivas famílias deve ser assegurada no âmbito dos Hospitais SA;

2. A assistência religiosa de outras confissões ou opções espirituais, sempre que solicitada pelos doentes e respectivas famílias, deve ser assegurada no âmbito dos Hospitais SA;

3. Os capelães ou assistentes espirituais prestam a assistência religiosa nos Hospitais SA no âmbito do regime do contrato de trabalho, em termos a regulamentar.

O Encarregado de Missão,

Luís Pedroso Lima

13 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Blasfémia

Quando se julgava que a «blasfémia» era um crime medieval erradicado nas sociedades civilizadas;

quando as sociedades laicas tinham garantido o direito de aderir ou de renunciar a qualquer religião;

quando o direito de crítica e a liberdade de expressão pareciam uma conquista irreversível dos países democráticos;

quando o ateísmo passou a ser um direito equivalente ao da prática religiosa;

Eis que começa a estar ameaçado o direito de refutar a veracidade dos livros em que as religiões se fundam. Nem o facto de as verdades de uns colidirem com as verdades de outros defende alguns políticos pusilânimes de legislarem sobre o que é religião e os limites do combate intelectual contra o obscurantismo e a mentira.

Na Holanda e o no Reino Unido, países que andaram quase sempre na vanguarda da civilização e foram o garante de respeito pelas liberdades, há hoje propostas altamente perigosas para criminalizar a «blasfémia» num atentado gravíssimo às liberdades individuais, numa tentativa de aplacar a raiva do fascismo islâmico que odeia a liberdade religiosa com a mesma fúria demente com que Maomé embirrou com o toucinho.

Vital Moreira, no seu artigo «Blasfémias», publicado no «Causa Nossa» equacionou hoje o problema com a habitual lucidez, chamando a atenção para os direitos dos não crentes e para os perigos que semelhante desvario encerra para a criação literária, artística e, no fundo, para os direitos e liberdades que são apanágio das sociedades civilizadas.

Perante a cobardia que os políticos laicos parecem mostrar face à chantagem dos parasitas de Deus, devemos lembrar as vítimas que se opuseram à fúria beata e ao ódio que grassa nos templos dirigidos pelos parasitas dos vários deuses das diversas religiões.

Hoje é Salman Rushdie que se encontra condenado à morte, há dias foi Theo van Gogh assassinado, em 1739 foi António José da Silva que foi queimado em auto de fé, na presença de D. João V, amanhã é a barbárie que regressa com homens e mulheres de mãos postas, a rezarem de joelhos e a agradecerem a um Senhor a fogueira em que os queimam ou as pedras com que os lapidam.

12 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Notas piedosas

Argentina – Na sequência de uma conferência em Buenos Aires, em que participava Rebecca Gomperts, fundadora da associação pró-legalização do aborto «Women on Waves», grupos de católicos anti-aborto foram convocados para rezar o rosário em frente do auditório onde se anunciava a chegada do denominado barco do aborto no próximo ano.

Convictos da inutilidade da oração, desconfiados da ajuda do seu Deus, os créus quiseram sabotar a conferência. Impedidos de entrar, envolveram-se em confronto com elementos pró-aborto. Na ausência de Deus, valeu a polícia federal para restabelecer a ordem.

EUA – Depois das dioceses de Portland e Tucson, que declararam falência em Setembro passado, foi agora a vez de Spokane, no Estado de Washington, a pedir a falência, onde apenas dois sacerdotes são responsáveis por mais de metade dos 120 pedidos de indemnização por abusos sexuais, processos que acarretam uma despesa de dezenas de milhões de dólares.

Por mais que o Papa JP2 apele à abstinência sexual e dê, ele próprio, um magnífico exemplo de castidade, há sempre padres que estragam a saúde financeira das dioceses.

EUA (2)JP2 acredita no futuro da ICAR nos EUA onde, no último meio século, mais de 4 mil padres foram condenados por abuso sexual a crianças, números divulgados no relatório da Empresa (Conferência episcopal dos EUA), em Fevereiro. Para JP2 os escândalos devem tornar-se uma «ocasião providencial de conversão» para os católicos dos EUA. Talvez a conversão ao agnosticismo e aos bons costumes não fosse pior.

Lisboa – O patriarca Policarpo, como já foi denunciado pelo Ricardo Alves, critica o que considera «os excessos do laicismo» e manifesta a vontade de ver os crucifixos nos edifícios públicos e que os juramentos mais solenes se façam sobre a Bíblia. Não sei se o patriarca está disposto a conceder o direito de reciprocidade e os altares passam a ter exposta a Constituição da República e as Igrejas a ostentarem um busto do presidente da República. Finalmente o sacramento da Ordem só poderá ser concedido mediante a fidelidade à República e à Democracia e a renúncia à obediência a uma potência estrangeira – o Vaticano.

11 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Não à chantagem religiosa

A intolerância religiosa que aflora um pouco por toda a Europa é um vírus que urge ser debelado. Não se trata de um epifenómeno exclusivo de grupos minoritários ou de uma única religião, começa a ser uma pandemia que alastra a todos os credos e compromete largas camadas de crentes.

Diariamente chegam ecos de violência religiosa, de comportamentos perversos oriundos de guetos «comunitaristas» onde, a coberto da cultura e da tradição, se cometem os mais infames atropelos aos direitos humanos, especialmente contra mulheres. Desde a excisão aos assassinatos em nome da honra, conceitos tribais fazem escola numa Europa cuja secularização parecia ter vencido os preconceitos medievais.

A própria ICAR, que desde 1961 deixou de actualizar o Índex (catálogo de livros cuja leitura interdita), voltou a recorrer à obsessão demente de influenciar a legislação dos países onde tem expressão, tentando impor a crentes e não crentes os seus preconceitos.

No Reino Unido um grupo islâmico ordenou a morte de Terrence McNally, autor da peça «Corpus Christi», por apresentar Cristo como homossexual e alcoólico. Acresce tratar-se do fundador de uma seita concorrente que, para os muçulmanos, não passa de um profeta de segunda categoria. Aos ateus pouco interessa a vida sexual de Cristo e, muito menos, a quantidade de copos que ingeria, mesmo que algumas das suas máximas se afigurem proferidas sob o efeito do álcool.

Na peça, Cristo aparece seduzido por Judas e crucificado por ser homossexual. Se esta versão correspondesse à verdade só havia que respeitar a orientação sexual do «divino mestre» e repudiar a crueldade e injustiça do castigo, desse ou doutro qualquer. Permitir ameaças de morte a quem exerce a liberdade de expressão, por quem defende a pena de morte para o adultério e a blasfémia, é resignarmo-nos ao regresso à barbárie, ao retrocesso da civilização, à renúncia aos direitos, liberdades e garantias que a democracia conferiu aos homens e mulheres dos países civilizados.

10 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Religião combate a liberdade

Como já hoje foi assinalado pela Palmira, os muçulmanos, à semelhança do que nos habituou a ICAR, já se atrevem a combater a liberdade de expressão na Dinamarca, em nome da defesa dos seus ideais religiosos. Desta vez o pretexto é a «afronta» ao Islão pela transmissão do filme «Submissão» do assassinado realizador Theo van Gogh que pagou com a vida a denúncia que fez da violência islâmica sobre as mulheres.

Na Suíça, quarenta deputados federais assinaram uma petição pedindo ao governo para adoptar medidas de segurança e vigilância junto aos imãs que pregam uma leitura literal do Alcorão. Acontece que um dos dirigentes islâmicos, que garante a bondade da religião, declarou numa entrevista que não se pode opor ao apedrejamento de uma mulher adúltera pois esse é o ensinamento do livro sagrado, como se os livros sagrados, todos juntos, valessem mais do que a «Declaração Universal dos Direitos do Homem» cujo aniversário hoje se comemora.

Na Holanda, na Bélgica e na Alemanha a inquietação cresce contra o fascismo islâmico. Curiosamente, em vez de se limitar o poder organizado das Igrejas, há quem proponha limitações à liberdade de expressão, para não «provocar» os crentes. Em vez de se defender a liberdade, pactua-se com o medo, em vez de se insistir no laicismo, acentua-se a submissão aos delírios místicos. E os cristãos mais radicais, para quem a liberdade causa urticária, corroboram esse procedimento. Não há democracia sem laicismo.

Num artigo muito oportuno, a propósito das eleições do Iraque, Vital Moreira afirma hoje no Causa Nossa, no texto «Democracia» que os chiitas apresentaram a constituição de listas para as eleições no Iraque e tece considerações pertinentes sobre o perigo do voto religioso, para terminar com uma afirmação que merece profunda reflexão:

«Uma democracia não equivale à tirania de uma facção religiosa, por mais maioritária que seja. Numa sociedade dividida, reduzir a democracia ao triunfo da maioria eleitoral, ainda por cima com base numa hegemonia religiosa, pode ser a receita para o desastre».

10 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

A ICAR é notícia

O «Público de ontem dedicou à ICAR grande parte das páginas 28 e 29. Há uma foto enorme de duas Excelências Reverendíssimas, com as piedosas cabeças enfiadas num adereço com o formato da parte mais saborosa das galinhas, e a «Rosa de Ouro», uma das mais altas distinções papais, que foi conferida à Basílica do Sameiro, em Braga.

Consta que cerca de 50 mil pessoas se extasiaram com a celebração dos 150 anos do dogma da Imaculada Conceição (aquela obrigação católica de acreditar que a virgindade pós-parto passou de mãe para filha). Estiveram presentes quase todos os bispos portugueses, o legado papal, o núncio apostólico e o patriarca Policarpo, além de numerosos cónegos, monsenhores e padres. Foi uma orgia de fé testemunhada por uma multidão de clérigos.

Arreliador, para os cristãos, foi o presépio exibido no Museu de Cera de Madame Tussaud, em Londres, onde o casal Beckham, David e Vitória, representavam respectivamente S. José e a Virgem Maria. Que Tony Blair, G. W. Bush e o duque de Edimburgo fizessem de reis magos talvez não fosse tão grave como Vitória Beckham fazer de virgem, com uma anatomia de fazer corar a Virgem Maria legítima e de fazer pecar por pensamentos metade do mundo católico.

Mas o mais grave de tudo foi a indemnização recorde paga pela diocese católica de Orange City, na Califórnia, 75 milhões de euros para 87 vítimas de abuso sexual. A ICAR aguenta-se bem com os escândalos, onde tem uma larga experiência, mas dá-se mal com as indemnizações onde só recentemente começou a sentir quanto doem.

Finalmente sabe-se que a Obra da Casa do Gaiato não acredita nos relatórios demolidores dos inspectores da Segurança Social e, para restaurar o prestígio e responder às acusações, encomendou um estudo isento à…Universidade Católica.

7 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Gnósticos e ateus

Vamos lá ver, eu ponho o meu problema assim:

Não sou gnóstico nem tão pouco agnóstico. Ambos os termos se reportam ao mesmo conceito de referência, contido no vocábulo a que se prendem, a palavra agnosticismo.

O agnosticismo é uma doutrina segundo a qual as questões suscitadas pela metafísica sobre a existência de Deus, origem e sentido da vida e do universo, a essência das religiões, etc., escapam e são inacessíveis à compreensão e entendimento do homem, na medida em que não cabem nem são redutíveis a qualquer comprovação de caracter científico minimamente credível.

Os seguidores desta doutrina dir-se-ão agnósticos, ao passo que os outros, isto é, os que se satisfazem com explanações esotéricas ou transcendentais da vida e daqueles problemas, são havidos por gnósticos.

Gnóstico ou agnóstico?… Eis a questão.

Mas eu direi: – Nada disso! Nem uma coisa nem outra, pois não é forçoso que seja, irrecusavelmente, ou uma ou outra a postura adoptada.Nem sequer são antónimos.

Longe vai já o tempo dos desesperados monismos redutores do mundo ao preto e branco de uma escolha única possível, oferecida ao entendimento das coisas.

A história do pensamento do homem tem mostrado como são falazes e fantasiosas todas as tentativas ensaiadas ao longo dos tempos para lhe fixar balizas sistemáticas que o contenham e domem. Sempre a busca da claridade e da razão das causas, e das causas das causas, se lhe impôs como mandato irrevogável a cumprir, rasgando caminhos e lançando pontes tanto quanto a vontade e o engenho o adjuvassem. Sem obediências cegas e incondicionais. Sem vassalagens. Livremente. Como o vento nas searas ou acariciando a superfície das águas.

Assim, pois, também entre o teísta e o incréu permanece imenso e livre todo um incomensurável espaço de lavra possível, aberto e oferecido às sementes das ideias e das dúvidas, das perguntas e das respostas, à espera que seja, depois, o mesmo semeador a conseguir e recolher os frutos e os ensinamentos. E estes, sim, são antónimos, e de tal modo afastados um do outro que quase se tocam nas pontas do mesmo radicalismo.

Ora é exactamente aqui que acho uma porta para eu entrar. O caminho foi longo e ainda não terminou. Começa lá longe, nos imprecisos alvores dos meus cinco anos, ou talvez antes, sim, antes, pois aos cinco já me vestiam de cruzado e de mãos postas me enfileiravam no rebanho que o senhor abade pastoreava em dias solenes e procissões da praxe. Depois veio a doutrina toda, em catadupas, que as zeladoras da Igreja, da roda do senhor abade, nos obrigaram a decorar, a mim e aos outros da mesma catequese, em monótonas cantilenas de tabuada ou como das linhas dos caminhos de ferro, com os nomes das estações, apeadeiros, ramais e tudo, ou das serras e dos rios com seus afluentes, d’àquem e d’além mar em África, tudo isso na ponta da língua, sem falhar nada.

Cedo, porém, começou a reflexão. A Branca de Neve, o Pai Natal, o menino Jesus, o Pai Gepeto e o Pinóquio, as Fadas e as Bruxas, os Gigantes, os anões, o lobo mau, as almas do outro mundo e os mortos que, mesmo fantasmas e tudo, falavam e faziam barulhos, o Céu e o Inferno, Deus e o Diabo, e os anjos, e os milagres e Deus e os arcanjos a ajudar nas guerras ora uns ora outros e a não fazerem peva nas grandes desgraças do mundo, quais fomes, pestes, mortes horríveis, crimes e outros males, e tudo isso foi entrando pelo juizo dentro ao mesmo tempo que também o juízo ia entrando pelo tempo fora, a magicar desconfianças, a misturar fantasias, a fazer deduções, a pôr hipóteses a que os padrecos interrogados respondiam mal, e depois ainda, o Renan e a seguir o Drama de Jean Barois… e os caminhos do juízo e do entendimento a abrirem-se cada vez mais…Élááá-ôo! Por fim uma leitura já mais séria da vida, e da vida dos outros, e também dos santos, e dos profetas, e dos textos inventados por doentes esquizofrénicos, trazidos às multidões na voz de profetas malucos, poetas desvairados, sibilas, pitonisas e outras cassandras do marketing das divindades várias, abundantes, sucessivas, renováveis e reencarnáveis umas nas outras, interminavelmente. Já mais p’ra agora, novamente os livros, de apuramento e lavagem das leituras anteriores, e outras de grau mais limpo, com filósofos de permeio a debaterem-se exaustos e inconclusivos, a medirem e a confrontarem certezas contaminadas por claridades súbitas, dúvidas insidiosas, suspeitas iniludíveis, mas, concomitantemente, também uma compreensão nova, mais serena e talvez lúcida.

Em suma: – dou comigo ateu retinto, assumido, desgostoso e impenitente, a olhar de lado e de viés longínquas lembranças das penas perdidas, daquelas asas brancas que um dia um anjo me deu…. «Pena a pena me caíram/ Nunca mais voei ao Céu…».

Irremediavelmente ateu, deixou-me a «teotomia» (ou «deotomia»?…) sofrida em estado semelhante ao do amputado que por algum tempo ainda vai continuar a sentir em si a dor-sombra do membro fantasma que da ablação consumada lhe ficou.

Albertino Almeida