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Carlos Esperança

8 de Abril, 2005 Carlos Esperança

A morte de Rainier III

A morte de JP2 prejudicou gravemente a projecção mediática de outro espectáculo fúnebre encenado para Rainier III.
O Diário Ateísta não pode deixar de registar a morte de «um príncipe de direito divino», como o próprio se considerava.
Não surpreende que, na ausência da democracia, quem manda se desculpe, admira que quem obedece aceite a justificação.

O Mónaco é um país a fingir onde o príncipe defunto tinha o poder a sério. Autoritário e carrancudo conseguiu fazer-se amar pelos súbditos (na monarquia não há cidadãos) a quem proporcionou um raro bem-estar graças à indústria bancária e aos lucros dos casinos, especialmente o de Monte Carlo.

É natural que um príncipe de origem divina tenha transformado o Mónaco num Paraíso…fiscal. Deo juvante (Com a ajuda de Deus) – divisa familiar dos Grimaldi -, governou os sete mil monegascos (cerca de 20% dos habitantes do principado) cujo bem-estar depende da falta de escrúpulos com que afluem dinheiros de origem duvidosa de todo o Planeta.

O Príncipe, grande amigo de JP2, de quem recebeu uma bênção especial poucos dias antes do abençoador e do abençoado morrerem, foi sempre um excelente católico, temente a Deus e cumpridor dos sacramentos. Deus, por sua vez, pagou-lhe a devoção em numerário pelo que deixa uma enorme fortuna.

Os filhos, Carolina, Alberto e Stéphanie, além da sólida educação católica, sofreram marcada influência das hormonas. Assim, além da eucaristia, que sempre frequentaram, não se furtaram aos prazeres da carne. A igreja e a enxerga alternaram, a piedade e a libertinagem conviveram e uma das filhas preferia ter no quarto o guarda-costas ao oratório.

Nota: O catolicismo é a religião de Estado no Mónaco de acordo com a Constituição de 1962, em vigor.

6 de Abril, 2005 Carlos Esperança

O circo das exéquias

A exibição do corpo de João Paulo II lembra os caçadores furtivos que antigamente mendigavam pelas portas mostrando como troféu o cadáver de um lobo, uma raposa ou um gato bravo. Os predadores exploravam o animal morto enquanto o cheiro do bicho e o óbolo dos curiosos o permitiam.

Esta semana o turismo fúnebre virou-se para Roma. De todo o mundo afluem multidões impelidas pela pressão mediática, num tropismo lúgubre de sabor necrófilo. Políticos e clérigos exibem-se em promíscua cumplicidade, por entre multidões de devotos, num espectáculo de mútua indignidade e recíproca subserviência.

A mórbida satisfação de verem um papa amortalhado é lenitivo bastante para suportar o cheiro nauseabundo das essências canónicas misturadas com os fluidos de corpos que se comprimem a reclamar um banho.

Uma semana é pouco tempo na vida de um corpo decrépito mas é uma eternidade para um cadáver em bom estado à espera de funeral. Não há incenso que disfarce, nem pituitária que resista. E um papa, depois de morto, não devia cheirar pior.

O Vaticano não tem maternidade, todo ele é um cemitério. A vida pouco conta naquele bairro, é um mero pretexto da retórica contra o aborto. A morte, essa sim, é a matéria prima de que se alimenta a fé, a angústia e o medo.

Os festejos fúnebres duram uma semana. Os abutres que velam o cadáver exultam com a morte e exaltam o sofrimento. A comunicação social amplia a vertigem mortuária e promove a orgia fúnebre a que não falta a adequada coreografia para comover os fiéis e dilatar a fé.

O espectáculo é obsceno. Recria-se o esplendor da contra-reforma servido por modernos meios de comunicação. Onde está o respeito por um cadáver que se exibe e explora? Mas que pode esperar-se do Estado totalitário que nunca assinou a Declaração dos Direitos Humanos do Conselho da Europa?

3 de Abril, 2005 Carlos Esperança

JP2 – um papa obsoleto no antro do Vaticano

A morte de JP2 relembra a dor e sofrimento que atingiu a URSS quando o pai da Pátria, José Stalin, exalou o último suspiro e recorda o histerismo demente que rodeou a morte do ayatola Khomeini em todo o mundo árabe, particularmente no Irão. Em comparação, a morte de Salazar foi chorada de forma contida, mas os déspotas produzem emoções mais fortes do que os democratas.

O absolutismo papal, restaurado com o apoio entusiástico do Opus Dei, da Comunhão e Libertação e de outros movimentos integristas, fez de JP2 o Papa da «Contra-Reforma», anti-modernista, infalível e retrógrado, que substituiu os anacrónicos autos de fé pela comunicação social e pela diplomacia.

O Papa da Paz, como os sequazes o alcunharam, apoiou a Eslovénia e a Croácia (maioritariamente católicas) e a Bósnia e o Kosovo, nações muçulmanas, contra a Sérvia cuja obediência à Igreja Ortodoxa constituía um entrave ao proselitismo papal que tem nos ortodoxos a principal barreira ao avanço do catolicismo para leste.
A protecção aos padres que participaram activamente no genocídio no Ruanda é mais um desmentido do boato sobre o alegado espírito de paz e justiça que o animava.

A intervenção de JP2 a favor da libertação de Pinochet, quando foi detido em Londres, é coerente com a beatificação de Pio IX, do cardeal Schuster, apoiante de Mussolini e do arcebispo pró-nazi Stepinac. O auge da ignomínia foi a meteórica canonização do admirador de Franco e fundador do Opus Dei, Josemaria Escrivá de Balaguer.

JP2, ele próprio profundamente supersticioso e obscurantista, chega a ser obsceno na forma como inventou milagres para 448 santos e 1338 beatos cujos emolumentos contribuíram para o equilíbrio financeiro da Santa Sé e para o delírio místico dos fiéis fanatizados.
Da prática do exorcismo à exploração de indulgências, da recuperação dos anjos à aceitação dos estigmas como sinal divino (canonizou o padre Pio), tudo lhe serviu para alimentar uma fé de sabor medieval e uma moral de conteúdo reaccionário.

O horror que nutria pela contracepção, o aborto, a homossexualidade e o divórcio são do domínio da psicanálise. O planeamento familiar era para o déspota medieval um crime. A SIDA era considerada um castigo do seu Deus e, por isso, combateu o preservativo, tendo o Vaticano recorrido à mentira, afirmando que era poroso ao vírus (2003).
O carácter misógino, o horror à emancipação da mulher, a crença no seu carácter impuro, foram compensados pelo culto doentio da Virgem, recuperado da tradição tridentina.

Como propagandista da fé, pressionou Estados, condicionou a política de numerosos países, ingeriu-se nos assuntos relativos ao aborto, à eutanásia e ao divórcio e acirrou populações contra governos democraticamente eleitos. Apoiou comandos anti-aborto, estimulou a desobediência cívica em nome dos preconceitos da ICAR, influenciou a redacção da Constituição Europeia, e chegou ao despautério de pedir aos advogados católicos que alegassem objecção de consciência e se negassem a patrocinar o divórcio.

O Papa da Paz condenou a atribuição do prémio Nobel da Literatura a José Saramago; envidou todos os esforços para obter o Nobel da Paz para si próprio, que justamente lhe foi negado; excomungou o teólogo do Sri Lanka, Tyssa Balasuriya por ter posto em causa a virgindade de Maria e defendido a ordenação de mulheres; perseguiu ou reduziu ao silêncio Bernard Häring, Hans Küng, Leonardo Boff, Alessandro Zanotelli e Jacques Gaillot; marginalizou Hélder da Câmara e Oscar Romero; combateu o comunismo e pactuou com as ditaduras fascistas. João Paulo II morreu uns dias depois de o Vaticano ter proibido a leitura ou a compra do «Código Da Vinci» do escritor Dan Brown e sem nunca ter censurado a fatwa que condenou à morte o escritor Salmon Rushdie.

O Papa que morreu, segundo a versão oficial, no dia 02-04-2005 (soma = 13), às 21h37 (soma = 13), curiosidades «assinaladas» pelo bispo de Leiria/Fátima, não pode ser o algoz da liberdade, o déspota persecutório, o autocrata medieval, o ditador supersticioso e beato que conhecemos. É capaz de ser outro papa o que consternou chefes de Estado e de Governo, que alimentou os noticiários de todo o mundo, que rendeu biliões de ave-marias e padre-nossos, que ocupou milhões de pessoas a rezar o terço, vestígio do Rosário da Contra-Reforma, que recuperou graças ao apoio da Virgem Maria que também o promoveu nas suas aparições na Terra.

O Papa que morreu era talvez uma pessoa de bem que, modestamente, ocultou tal virtude. Foi celebrado por dignitários políticos, religiosos e outros hipócritas que, na morte, lhe enalteceram as virtudes e calaram os defeitos. Foi o cadáver que milhares de abutres aguardavam para exibir e explorar numa derradeira campanha de promoção da fé católica.

É, todavia, o mesmo Papa que anatematizou os ateus, fez inúmeras declarações contra o laicismo, silenciou teólogos, beatificou fascistas e combateu o planeamento familiar. A sua obsessão era reduzir o mundo a um casto bando de beatos, tímidos e idiotas, sempre de mãos postas e de joelhos. O livre-pensamento, a modernidade , o prazer e a liberdade foram os seus inimigos figadais.

2 de Abril, 2005 Carlos Esperança

RTP – Um canal da Igreja?


Logotipo de substituição proposto por Luís Mateus

O falecimento do Papa João Paulo II não pode servir de pretexto para uma manifestação contínua de proselitismo.

A RTP é um canal público cuja hipoteca ao serviço de uma religião compromete o carácter laico do regime, o respeito pelo pluralismo e a liberdade de agnósticos, ateus e crentes de outras confissões.

Pela minha parte vou afastar-me do canal público até que terminem as exéquias fúnebres. Que descanse em Paz.

2 de Abril, 2005 Carlos Esperança

Tragédia no Vaticano – 1 morto (3)


Faleceu, sem deixar descendentes, Karol Vojtyla, Papa católico, emigrante polaco, solteiro, de 84 anos de idade, conhecido pelo pseudónimo de João Paulo II. Papa há mais de 26 anos, fez a síntese do estalinismo polaco em que viveu com o catolicismo medieval em que acreditava.

Exorcista afamado, preferia a água benta à outra, usava a cruz como amuleto e odiava a contracepção, em geral, e o preservativo em particular. Fez 448 santos e 1338 beatos e foi um grande criador de cardeais. A sua morte resolveu o problema da ICAR, multinacional da Fé, cujos estatutos não prevêem a destituição.

As exéquias, abrilhantadas por uma multidão de sotainas, serão transmitidas para todo o Mundo, em directo, a partir do bairro de 44 hectares cujas actividades principais são a oração, os negócios da fé e a política. De todas as sucursais chegam bandos de monsenhores, bispos e cardeais, estes últimos com direito a voto na escolha do sucessor, pelo círculo eleitoral único «Itália e Resto do Mundo».

A reunião do Conselho de Administração, tendo como ponto único da ordem de trabalhos «a eleição do papa», chama-se conclave. A decisão é tomada por dois terços dos cardeais, sob os auspícios do Espírito Santo, sob o olhar atento do Opus Dei.

As exportações de bênçãos, relíquias, imagens do Papa e indulgências ficam suspensas temporariamente. As importações de esmolas mantêm-se.

Post scriptum – As orações pela saúde de JP2 estão completamente ilibadas de lhe terem prolongado a agonia, não tendo revelado eficácia superior ao placebo.

2 de Abril, 2005 Carlos Esperança

Tragédia no Vaticano – 1 morto (2)

Pedido de desculpas aos leitores

A ausência de sinais a nível do electrocardiograma levaram a Sky News e alguns órgãos de informação italianos a anunciarem a morte de JP2, informação em que se baseou o breve artigo do Diário Ateísta. Surpreende, aliás, que após uma paragem cardíaca não tenha sido transferido para o hospital e não admiraria ouvir um piedoso cardeal dizer que obedeceu ao pedido expresso de Sua Santidade.

De facto, embora em estado de coma, a agonia parece prolongar-se para gáudio da Cúria romana que gere a ansiedade dos crentes de acordo com as intenções prosélitas.

É sempre difícil obter informações rigorosas de um Estado totalitário mas do erro e da precipitação a anunciar a morte de JP2 peço desculpa aos leitores.

Carlos Esperança

1 de Abril, 2005 Carlos Esperança

Tragédia no Vaticano – 1 morto


Há grande consternação entre os habitantes do bairro pelo falecimento de Karol Vojtyla, conhecido pelo pseudónimo de João Paulo II. Desta vez não há suspeita de crime, mas todos referem um nome – Deus.

31 de Março, 2005 Carlos Esperança

Notas piedosas

Bíblia – O Evangelho segundo Judas foi descoberto e será publicado daqui a um ano. São reduzidas as probabilidades de adulteração do texto pois escapa ao controlo do Vaticano. Este Evangelho é um, entre várias dezenas, considerado apócrifo. O concílio de Niceia, em 325, aceitou só os quatro que, depois de retocados, pareciam ter menos incongruências. Mas foi o Concílio de Trento, em que a ICAR ainda se revê com saudade, que estabeleceu definitivamente o que passou a ser a verdade obrigatória.

Moscovo – Um tribunal condenou o director da exposição «Cuidado com a Religião». Dois organizadores da exposição cujo título revela já intenções pedagógicas, vítimas de uma atitude de franca censura à arte, sofreram pesadas multas. Por sua vez, os cristãos ortodoxos que, em zelo beato, vandalizaram quadros, viram o seu processo «encerrado por ausência de crime».

EUA – As leis que regulam o sexo, a violência e a obscenidade nas estações de rádio e televisão, têm tendência a agravar-se sob pressão da cruzada moralista que grassa nos ambientes religiosos do fundamentalismo moralista. A Comissão Federal para as Comunicações é o cão de guarda dessa moralidade asfixiante que ameaça salvar a alma e fazer retroceder a civilização. Há medo na comunicação social americana.

Vaticano – Os cardeais tentaram, uma vez mais, obrigar o Papa a falar, apesar da traqueotomia e de alimentado por uma sonda naso-gástrica. Foi desolador e indescritível o sofrimento, divulgado por televisões de todo o mundo quando o içaram à janela do apartamento. Claro que não conseguiu falar. O terrorismo eclesiástico atinge níveis bárbaros, próprios da inquisição. Não surpreende que lhe imponham a eucaristia nem que tenham de passar-lhe a hóstia pela varinha mágica e lha administrem pelo tubo.

Tolerância cristã – [«Se o teu professor de Biologia te quiser ensinar o que é a Evolução» … Processa-o! Foi isto mesmo que disse Dennis Baxley, promotor da nova lei da Florida, EUA, que permite que os alunos processem professores «ditadores de esquerda» [sic], que ofendam as suas crenças religiosas, nomeadamente explicando os processos de Evolução das espécies. Contra o «totalitarismo de esquerda» [sic], eis as trevas religiosas] – lê-se em «Renas e Veados».
Mais pormenores no The Independent Florida Alligator – à atenção dos ateus e profanadores, segundo piedosa recomendação da Palmira que o Boss certamente apoia.

29 de Março, 2005 Carlos Esperança

O bem-aventurado J. César das Neves

No rescaldo das libações pascais, João César das Neves (JCN) fez bem em não conduzir. Escreveu.
Foi já deliciado com o Momento Zen da Segunda-feira, da responsabilidade habitual da Palmira F. Silva, que fui ler «O dom de não ver» do teólogo laico JCN, no Diário de Notícias, escrito na euforia da ressurreição do seu Deus.

JCN raramente desilude. Apenas quando escreve sobre economia, nos decepciona. JCN tornou-se o autor mais apreciado no Diário Ateísta. Eu prefiro as suas citações da bíblia às divergências e incongruências dos quatro evangelhos que o imperador Constantino seleccionou como argumento de uma religião em fase de lançamento. O inefável JCN não convence mas é motivo de assombro que ele próprio acredite.

Ou a fé lhe tolda o entendimento ou a falta de entendimento lhe exacerba a fé. Umas vezes é o talibã romano que terça armas a favor da castidade, outras é o cordeiro de Deus que se imola no altar do ridículo, sempre em sintonia com o Vaticano onde julga que o sol nasce como os velhos comunistas pensavam que nascia no Kremlin. Debita a Bíblia como os mullahs recitam o Corão. Tenho por JCN o desvelo que merecem os espécimes em vias de extinção. É o meu sentido ecológico que deseja a sua preservação.

Num artigo notável de Salman Rushdie «O problema com a religião», publicado no DN, lê-se que « São poucos os europeus que hoje em dia se consideram, a si próprios, religiosos – apenas 21%, segundo um recente estudo de valores europeus, contra 59% de americanos, segundo o Pew Forum». É pois natural que JCN tenha fé a quintuplicar para que o velho continente finja ser cristão.

Se JCN, em vez de ter estudado a Bíblia, tivesse lido o Kama Sutra, hoje seria um animador sexual. Assim, converteu-se num prosélito da fé, num soldado de Cristo-Rei, num cruzado ao serviço da moral e dos bons costumes. Mas enquanto o bem-aventurado se afadiga a defender a fé que se dissolve entre as mentiras da religião e a devassidão dos seus padres, o ateísmo vai grassando indiferente aos martírios do seu Deus e à insanidade dos seus padres.

Da prédica da última segunda-feira respigo este pensamento lapidar: «Quem vê perde a capacidade de acreditar». Nós, os ateus, há muito que nos tínhamos dado conta de que só os cegos acreditam no catolicismo. Mas JCN confirma e acrescenta: «… um dos maiores dons que Deus nos deu (…) é precisamente o dom de não vermos». Isto é teologia, da melhor, não é um ensaio sobre a cegueira, sem o brilho nem a profundidade intelectual de Saramago.

Depois pergunta: «Qual o valor dos esposos [sic] fiéis quando estão juntos?», para responder que «manter esses propósitos na ausência (…) isso é verdadeiro amor», donde se conclui que para JCN a facadita matrimonial é uma inevitabilidade na ausência simultânea do «verdadeiro amor» e do cônjuge respectivo.

Depois, conclui que «A presença de Deus é evidente». É, aliás a única ameaça que pode levar um jornal a publicar tal prosa.

28 de Março, 2005 Carlos Esperança

O Papa e a bênção

No domingo, o Vaticano submeteu o Papa a uma ignóbil e sádica tortura. Exibiram-no à janela dos seus aposentos, após um diácono o ter anunciado, para dar a bênção e o perdão a todos os que se encontravam no local ou viam a cerimónia pela televisão. Não se duvida da ânsia com que a clientela aguardava a bênção e, muito menos, da necessidade que tinham de perdão. Cada um sabe o peso da sua consciência.

O que a Cúria devia saber é que não se submete um moribundo a trabalhos forçados, não se exibe o sofrimento como os mendigos profissionais que alugam deficientes para comoverem os transeuntes e aumentarem o óbolo, não se explora a dor para gáudio de uma multidão ensandecida pelo martírio do seu Deus. A bênção Urbi et Orbi, de grande efeito mediático e enorme regozijo para os créus, ficou por dar e as palavras por dizer.

Os cardeais que exploram o negócio dizem que JP2 continua a dirigir a ICAR e que mantém intactas as faculdades intelectuais. Só quem crê na virgindade de Maria, na ressurreição e nos dogmas é que acredita na impostura e não vê a crueldade a que sujeitam o ancião.

A ICAR diz que é uma forma de afirmar ao mundo que respeita a velhice e a dignidade dos enfermos. Não é a hipocrisia que mais choca, é a insensibilidade e a barbárie que ferem. Todos vêem que não é o velho autocrata que decide, são os sinistros dignitários da Cúria romana que escrevem o guião de uma tragédia humana cujo objectivo é transmitirem a morte em directo.

Que gente, que bando de tartufos se esconde sob as vestes talares, que pessoas sem coração se prestam a escrever as cenas do último capítulo de uma vida que se esvai em inaudito sofrimento! Forçar as aparições públicas de JP2 não é uma prova de respeito, é uma requintada manifestação de malvadez.