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Carlos Esperança

16 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A escola e o presépio da minha infância

Bem crucificado e suavemente chagado, numa cruz de madeira dependurada na parede, penava um Cristo de bronze em resignada agonia, ladeado à direita por uma fotografia de um homem de bigode, fardado, conhecido por marechal Carmona, e à esquerda por um eterno seminarista, com ar de gato-pingado, que infundia terror – o Professor Salazar.

Na mesma parede, em frente dos alunos, a razoável distância e muitos fungos depois, quedava-se a Senhora de Fátima, poisada numa mísula, alheada da conversão da Rússia e da salvação do mundo. Mais abaixo, à esquerda, ficava o quadro preto e o mapa do corpo humano e, à direita, rasgados, um mapa de Portugal Continental, outro das Ilhas Adjacentes e das Colónias e o mapa-múndi.

O soalho resistia aos buracos, numerosos e amplos, que a humidade e o uso se encarregavam de alargar. As carteiras alinhavam-se em rigorosa geometria com lugares destinados a cerca de quarenta garotos de ambos os sexos distribuídos pela primeira, segunda e quarta classes. Entre quinze a vinte estavam na sala oposta a frequentar a terceira, confiados à senhora Noémia, regente escolar.

Nos dias de chuva subvertia-se a ordem, numa complexa gincana de carteiras, para evitar que os pingos de água que escorriam do tecto acertassem nos tinteiros e salpicassem de azul a roupa das crianças e os tampos de madeira.

No intervalo, meninos e meninas, em amplas correrias e direcções opostas, procuravam os quintais próximos para se aliviarem dos fluidos que os apoquentavam.

À entrada da escola o presépio anunciava todos os anos o Natal. Na armação de tábuas e pedras cobertas de musgos, um menino de barro, seminu e de perna alçada, jazia em decúbito dorsal sobre uma caminha de palha centeeira. Era o Menino Jesus. De um lado uma virgem colorida, moderadamente recatada e com pouco uso, substituía a que se partira, interessada na companhia do filho que herdara. Do outro, um S. José, a quem a corrosão deixara em pior estado do que o dogma da Imaculada Conceição, parecia um erro de casting, indiferente ao aspecto, perdidas as cores, diluídas as formas, conformado com os olhares e as súplicas, incapaz de operar milagres, resignado com o frio de Dezembro.

O burro e a vaca comportavam-se a preceito, facilmente se adivinhando o gosto por erva se eles e esta fossem verdadeiros.

Os reis magos, eternos almocreves com ar de ladrões de camelos, virados para uma estrela recortada em papel colorido, permaneciam imóveis na lendária caminhada, quais amoladores de tesouras, à espera de fregueses para ganharem o sustento e um presente para o Menino.

As ovelhas que placidamente decoravam a montanha eram figurantes experientes, desinteressadas da importância que acrescentavam ao quadro e do exemplo de submissão que transmitiam. Nem um só carneiro as acompanhava, talvez para lembrar que é na renúncia ao prazer que se encontra a redenção da alma. Apenas um cão e o pastor.

Reflicto hoje sobre a predilecção por musgos, muitos musgos, para cobrir o chão do presépio. Na religião tudo se deve cobrir ou, no mínimo, disfarçar. Talvez esteja na ocultação dos órgãos de reprodução, característica das plantas criptogâmicas, a razão da preferência, a funcionar como metáfora.

Ah! Já me esquecia, pintados de branco, anjos de barro, junto ao caminho de serradura que conduzia à manjedoura, voavam baixinho, com asas quebradas, incapazes de regressar ao Céu. E o algodão em rama imitava os flocos de neve que lá fora rodopiavam ao sabor do vento. Eu gostava do Presépio. Não era o catecismo a aterrorizar-me com o Inferno onde as almas que ali frigiam, em perpétua flutuação no azeite fervente, eram mergulhadas com um garfo de três dentes empunhado pelo diabo.

A minha escola caiu, pelo Natal, ficando de pé uma única parede e a fé das pessoas que atribuíram à protecção divina a ausência de aulas durante a derrocada.

15 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Cada coisa no seu lugar

Os mapas de Portugal, ilhas adjacentes, colónias e o mapa-múndi devem ser retirados das igrejas.

Igual procedimento devem merecer a cadeia do agrimensor, as medidas de capacidade e os sólidos geométricos. Não é justo que uma pirâmide de madeira ocupe a patena ou as medidas de peso viagem no turíbulo por entre o fumo do incenso.

A custódia é para pôr o Senhor e não para mostrar o círculo e a circunferência. Quando se celebra a missa não se deve medir a tonsura do pároco com um compasso, para calcular a área e ensinar o valor de Pi, porque o bico pode ultrapassar o coiro cabeludo.

O altar deve ser aliviado do quadro preto e do giz. O transepto não se destina à ginástica nem as capelas laterais a instalações sanitárias. O confessionário não serve para provas orais. A sacristia não é local de recreio nem sala de reuniões pedagógicas.

É preciso respeitar os locais de culto para que os devotos respeitem as escolas. O facto de excluir o material didáctico das igrejas não significa que se expulse o conhecimento dos templos, apenas se respeita o espaço recreativo dos fiéis e o local de confraternização com o divino.

O Cristo que decora o altar não deve servir para aulas de anatomia nem as cruzes que exornam as paredes ser usadas para ensinar as contas de somar. Deve evitar-se a pia de água benta para ensopar a esponja que apaga o quadro preto ou fazer aí experiências para provar a lei de Arquimedes.

Se respeitarmos as igrejas, como devemos, estou certo de que os crentes saberão respeitar o carácter laico da escola pública.

14 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A procissão do Senhor dos Passos

À frente os homens, mulheres atrás, como manda a tradição e os bons costumes, filas de dois que o sacristão alinhava com a vara e admoestava com voz sussurrada, a procissão fazia o seu percurso anual.

As crianças seguravam as asas que o uso e as colisões ameaçavam. As mães ralhavam e ameaçavam com tabefes os anjinhos que se lembravam de pedir xixi. As túnicas varriam o chão que o último rebanho deixara pejado de caganitas.

Sobre uma padiola, alombada por quatro mordomos, baloiçava dentro da camisa roxa um Senhor dos Passos de ar sofrido, com vontade de dar um piparote na coroa de espinhos, pôr a cruz de lado e mandar calar a banda.

Sob o pálio viajava ufano o padre, erguendo a custódia, com alguns acólitos, enquanto as varas eram empunhadas por validos impantes de glória e vazios de siso, convictos de que a bajulação lhes facilitava o caminho do Céu.

A banda de música acertava o passo e desafinava nos bemóis para recordar à efígie que no Paraíso o duplo ouvia música e assistia ao fogo de artifício. O pirotécnico deitava os foguetes e atroava os ares enquanto as beatas suspiravam com medo das canas e os créus deitavam contas à vida.

Os cânticos religiosos azucrinavam os ouvidos, um negociante acabava por comprar umas ovelhas e um pobre vendia o porco. O Cristo entrava na igreja ao som de ave-marias e era atirado para um canto da sacristia onde o pó e a humidade lhe fariam companhia. No ano seguinte repetia-se o número.

12 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Santíssima Trindade

Em tempos da beata ditadura salazarista, por lei de 1936, um Cristo sofrido tornou-se obrigatório nas escolas, ladeado por um idiota vestido de oficial general e pela figura sinistra do antigo seminarista de Santa Comba Dão.

Na 3.ª classe do ensino primário era obrigatório ensinar às criancinhas o dogma da Santíssima Trindade que, não sendo originalidade da ICAR nem do cristianismo, contribuía para o embrutecimento infantil e bovinidade dos professores que tinham por missão explicá-lo.

Dizia-se que «eram três pessoas iguais, distintas e uma só verdadeira». Todas eram uma e era Deus. Além de dogma era mistério. Além de mistério era estúpido, mas alimentava a fé.

A ICAR, no seu instinto comercial, deitou fora o Pai, encerrou num pombal recôndito o Espírito Santo e dedicou-se à comercialização do Filho. Segmentou o mercado e passou ao negócio da cruz, com ou sem atleta.

Depois de ter amadurecido o produto, em vez de impingir os outros dois artistas da tríade, criou o culto mariano. Passou a vender Nossas Senhoras como os tasqueiros vendem tremoços para acompanhar a cerveja.

Reparem, pios leitores, que o Pai apareceu a Moisés a ditar-lhe uns mandamentos no Monte Sinai e nunca mais regressou. Aconteceu o mesmo a alguns satélites artificiais.

Quanto ao Espírito Santo, os próprios cardeais não o vêem há várias épocas de caça.

Só o JC aparece de vez em quando a alguns bem-aventurados, como aconteceu à Irmã Lúcia que recebeu uma visita em Tuy. Quem aparece com frequência é a Virgem, que a tradição e as vantagens do negócio conservam imaculada, quase sempre a pessoas de instrução rudimentar e excessiva fé.

Mas agora o que está a dar são os santos, especialistas em cunhas a Deus, aptos a curar o mau olhado, a evitar possessões demoníacas e a render emolumentos ao Vaticano.

A fé é um negócio que alimenta a voragem do padres, a credulidade dos infelizes e a superstição de muito boa gente.

10 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A União Europeia, a investigação e o preconceito

Durão Barroso repete os erros e pretende passar à história não apenas como um mau presidente da Comissão Europeia mas como o mais reaccionário.

Esquecido da triste novela de Rocco Butiglione, o homem de mão de Berlusconi e do Vaticano cujas posições ideológicas indignaram o Parlamento Europeu e lhe fizeram averbar uma vergonhosa derrota, Durão Barroso reincide no que parece ser uma deriva ideológica à direita, perante o silêncio da comunicação social autóctone.

A composição do Grupo europeu de ética abriu uma polémica que compromete o presidente da CE. «Estamos chocados que tenha escolhido tantas personalidades próximas do Vaticano» declarou ao Le Monde de ontem Robert Goebbels, socialista luxemburguês especialista em questões de ética das ciências e das novas tecnologias.

Dos quinze membros do Grupo europeu, cinco são « activistas da direita católica, sem qualquer competência específica», afirmou ao Monde o deputado socialista Philipe Busquin, ex-comissário belga encarregado da investigação.

A promissora investigação sobre as células embrionárias, vital para os avanços terapêuticos e para a competição europeia, ficam dependentes de personalidades tão controversas como o italiano Carlo Casini, presidente do movimento pró-vida e membro da Academia pontifícia «para a vida» ou do polaco Krzysztof Marczewski, professor de ética da Universidade de Lublin.

À Itália, Polónia, Áustria, Eslováqua e Malta – suspeitos do costume -, junta-se agora a Alemanha como minoria de bloqueio a tornar sombrio o futuro da investigação e o seu financiamento.

Durão Barroso sai uma vez mais pela direita baixa.

Fonte: Rafaële Rivais Le Monde – edição de 09.12.05

10 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A estratégia da ICAR

A histérica reacção de católicos fundamentalistas relativamente à retirada dos crucifixos de algumas escolas públicas, onde houve queixas, não é apenas a beata exibição de repúdio pela lei e pela Constituição da República, é um treino para novos combates que se avizinham.

A ICAR não mandava sair as tropas de elite, com Bagão Félix e César das Neves, não comprometia por três ou quatro crucifixos que a ditadura fascista mandou colocar entre o Presidente da República da época e o Presidente do Conselho o estado-maior do Opus Dei. Não se sujeitava a afrontar a lei, por tão pouco.

A vocação prosélita e o gosto pela arruaça estão, de facto, inscritas no código genético da ICAR e na demência mística dos beatos mas a ICAR reserva a artilharia pesada para batalhas decisivas e evita desgastá-la em escaramuças.

É verdade que o desastre político de Bagão Félix e a nódoa indelével da sua última passagem pelo Governo o tornam vulnerável e lhe amesquinham o crédito, mas é ainda um dos principais activos para os trabalhos sujos da ICAR.

Não é pois o sinal mais em madeira que, sem o JC, parece um ícone de homenagem à aritmética que preocupa as lúgubres sotainas e os soturnos prelados. É a campanha pela despenalização do aborto que os eriça e azeda.

As escaramuças recentes em que a ICAR soltou os jagunços da fé para uivarem nos meios de comunicação social, não são mais do que um exercício de aquecimento para a cruzada que se avizinha, um afiar de dentes para as mordeduras que preparam.

9 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Viva a França

Faz hoje cem anos a lei francesa da separação da Igreja e do Estado destinada a conter a influência política das religiões especialmente a da Igreja católica.

«A República assegura a liberdade de consciência » e «garante o livre exercício dos cultos» mas «não reconhece, não remunera nem subvenciona nenhum culto» diz o texto que o Papa Pio X se apressou a condenar.

Depois de séculos de monarquia absoluta, de direito divino, nasceu a cidadania plena e a igualdade dos cidadãos perante a lei. Tratou-se de conceder a liberdade religiosa a todos sem a tutela e a vocação hegemónica de uma religião sobre outra ou sobre os que não perfilham qualquer credo.

A lei que hoje comemora um século mantém actualidade plena e legitima o combate contra a demência do fascismo islâmico. A própria Igreja católica que durante duas décadas combateu a laicização iniciada em 1880 acabou por se submeter e aceitar a bondade da lei em causa.

Jacques Chirac considera-a um «pilar» que permite à França viver num «clima de liberdade, de concórdia e de tolerância religiosa», apesar do pesadelo que o proselitismo agressivo algumas vezes acorda.

São muitos os adversários do modelo francês da laicidade mas foi o abrandamento da sua vigilância que permitiu o atrevimento dos sectores mais fanáticos do islão e a cumplicidade dos católicos mais retrógrados.

Viva a laicidade. Viva a França

Fonte : Le Monde

Lei francesa

9 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

República e Laicidade

A associação cívica REPÚBLICA E LAICIDADE (R&L) pode ser contactada neste endereço:

[email protected]

e, se solicitar para aí a inscrição na sua lista de correio electrónico, passará a receber (sem regularidade certa) os comunicados e outros documentos difundidos pela R&L.

8 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Laicismo quando convém…

O artigo da Palmira «Apelo à laicidade na Rússia» levou-me a reflectir sobre as religiões que exigem o laicismo quando são minoritárias e o monopólio quando maioritárias. Acontece com o judaísmo e, principalmente, com o islão e o cristianismo.

O totalitarismo faz parte do código genético das religiões monoteístas que vêem no martírio a prova maior da devoção e no assassínio de infiéis uma manifestação de piedade.

Os livros sagrados estão recheados de promessas aliciantes para os cadáveres precoces ao serviço da insânia da religião respectiva.

A demência do islão, que seria injusto e perigoso confundir com todos os devotos, atinge proporções tais que se tornou um perigo para si próprio e uma ameaça para a civilização.

É verdade que algumas seitas cristãs são hoje tolerantes, não por mérito próprio ou natureza, mas pela sólida formação democrática dos seus crentes. A Reforma prestou um inestimável serviço à civilização e constituiu um enorme progresso na defesa das liberdades individuais. Felizmente, sobretudo na Europa, muitos crentes assimilaram os valores sagrados da liberdade e são capazes de trocar a Bíblia pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.

No entanto, o evangelismo neoconservador dos EUA, o catolicismo reaccionário de Bento XVI e o florescente cristianismo ortodoxo parecem mimetizar-se com o delírio prosélito do islão radical.

Só a laicidade lhes pode fazer frente.