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Carlos Esperança

23 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

O juiz decidiu

Como a Palmira assinalou no artigo «Neo-Criacionismo 0 – Ciência 1», nos EUA um juiz proibiu o ensino da teoria divina, considerando inconstitucional o criacionismo como alternativa ao ensino do evolucionismo.

Há quase século e meio, Darwin apresentou a teoria da evolução das espécies e reduziu a cacos o mito da criação, comum às três religiões monoteístas, mito que transformava os primórdios da reprodução em mero artesanato da olaria divina.

Deus gozava até então de enorme credibilidade e os seus padres de grande prestígio. A ciência feriu de morte a mitologia, debilitou a fé e pôs em risco os negócios religiosos.

Valeu a capacidade de adaptação dos tartufos.

Não é Deus que move as religiões, é o poder. Pouco importa aos padres que as pessoas da Santíssima Trindade sejam três ou trezentas, que os mandamentos sejam dez ou cem, que tenham sido dados a Moisés ou a Maomé, que os pecados se lavem com detergente ou com a confissão, que as missas sejam em vernáculo ou em latim.

É preciso que haja criancinhas para mergulhar em água benta, cristãos que estendam a língua à partícula com a sofreguidão com que nas cervejarias devoram tremoços, beatos que vão em peregrinação aos sítios onde poisa a Virgem, supersticiosos que comprem indulgências e governos que untem a máquina da fé com o óbolo do erário público.

A religião não é só o tóxico que envenena a mente, é o placebo que alimenta o ócio do clero e o proselitismo dos alcoviteiros do divino. E o Paraíso é apenas uma falsa empresa de apartamentos explorada por promitentes vendedores.

22 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Mensagem de um ateu

Dirijo-me a todos os ateus e ateias, aos crentes de qualquer religião, aos agnósticos, aos homens e mulheres do meu país, independentemente da cor da pele, do estrato social e das opções sexuais. Mas dirijo-me apenas a todos os que quiserem ler este texto.

Faço-o sem a arrogância dos padres que enviam a bênção a quem não a solicita, sem a prepotência dos bispos que julgam que todos lhes devem vassalagem, sem uma câmara de televisão a conferir importância pública ao que tem relevância particular.

Sem vestes talares nem báculo, mitra, cruz, ódio ou ressentimento, sem fé no divino ou crença em milagres, sem dogmas nem outras aldrabices, saúdo os que me estimam e os adversários.

Não o faço por ser a época em que os pagãos celebravam o solstício de Inverno, que os cristãos aproveitaram para datar o nascimento de Cristo. A minha mensagem não fala do Céu, não exorta à castidade, não é moralista nem impõe quaisquer mandamentos.

Exorto-vos, caros leitores, a rejeitar o charlatanismo e a superstição mas, se isso vos faz felizes, continuem a viajar de joelhos à volta de uma igreja, a fazer o circuito das velas acesas, a contar ao padre o que não contam ao irmão ou companheiro/a e a ir a Fátima.

Desejo o melhor para todos os que referi. Cultivem o prazer de ler, ouvir música, ir ao teatro, ver cinema, enfim, gozem os prazeres da cultura. Mas, se a desgraça vos bateu à porta e uma hóstia vos alivia e se acreditam em milagres, rezem o terço, oiçam missas, beijem a pilinha do menino Jesus, persignem-se e peçam a bênção ao padre.

Ninguém tem direito a roubar a felicidade. Se a abstinência satisfaz os castos, se o jejum agrada ao masoquista e a procissão diverte o créu, não se poupem a exóticas distracções, não faltem à missa, à procissão ou à novena. Desobriguem-se e comunguem e sintam-se melhor da obstipação e das lombrigas.

O ateísmo é um caminho difícil. Ensina que não há Inferno mas tira-vos a consolação do Paraíso. É por isso que esta mensagem não vos oferece uma ideologia, um sistema filosófico ou a vida eterna.

Quero que sejam afortunados; que pensem como entenderem, sem receio de castigos; que consigam mudar de opinião sem medo das labaredas; que possam baldar-se à missa sem repreensões; que façam amor sem cismarem na eterna perdição.

Sejam felizes.

21 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Vocações sacerdotais

Depois de uma maratona de padre-nossos e ave-marias um cristão chega exausto ao fim do terço. Antigamente a fé aguentava uma coroa e os joelhos suportavam a novena.

Quando as missas eram em latim, a ignorância aturava o ritual e suportava a liturgia no convencimento de que o Paraíso estava ao dobrar do amém e os paroquianos suportavam o frio do inverno e as delongas da homilia.

Depois que o vernáculo substituiu o esoterismo de uma língua morta os crentes duvidam da salvação da alma a troco da confissão e actos de contrição.

Santa Bárbara deu lugar aos pára-raios, o veterinário substituiu santa Filomena na cura das bestas, a flecha que trespassava S. Sebastião deixou de comover os créus e, para as moléstias do corpo, deixou de invocar-se a divina fauna e passou a recorrer-se ao S.N.S.

A penicilina revelou-se mais eficaz do que o pai-nosso, a aspirina um analgésico mais potente do que as orações e a vacina mais eficaz do que a divina graça. Anti-depressivos batem o exorcismo e qualquer médico de segunda é melhor do que um santo de primeira.

A água benta, com poderes comprovados por séculos de ignorância, foi ultrapassada, primeiro pelos manipulados e depois pela panóplia de drogas que os laboratórios da indústria farmacêutica puseram no mercado.

Face à exiguidade dos milagres e à falta de certificados de garantia, a clientela procura a ciência e manda passear a fé. Não admira que faltem ajudantes aos bispos e quiromantes da divina Providência.

A falta de padres, que o aluguer de brasileiros e polacos vai atenuando, é um bom sinal. O homem escreve direito por linhas tortas.

20 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Espanha – A ICAR e o IVA

Em Espanha, quando o Governo permitiu os casamentos homossexuais, agitaram-se as sotainas, rugiram os prelados e todos ganiram torpes homilias contra a lei e a extensão de direitos a uma parte da sociedade que estava excluída.

O carácter facultativo da disciplina de religião católica, ministrada por empregados das dioceses e pagos pelo erário público, levou santas cavalgaduras a falar de um ataque do PSOE à liberdade religiosa.

O cumprimento da Constituição e o fim de algumas mordomias que Aznar, ligado ao Opus Dei, lhes tinha ilegalmente concedido, fizeram eminentes purpurados trocar o conforto dos paços e a melodia do cantochão pelas manifestações de rua e o ruído de palavras de ordem.

Substituíram ave-marias pela chantagem, ao breviário preferiram a ameaça, aderiram ao confronto e marimbaram-se no credo.

No entanto permanece grossa a fatia do orçamento de Estado que alimenta a gula da cáfila imensa de prosélitos do divino.

A Comissão Europeia exige ao Governo espanhol que obrigue a ICAR a pagar IVA. Esvoaçam vestes talares a caminho do Palácio da Moncloa a procurar limitar os danos.

Um pobre compra pão e paga IVA, a ICAR encomenda hóstias e está isenta; o cavador esportula o imposto pela enxada, a ICAR compra uma patena de ouro sem IVA; um casal adquire um pequeno apartamento e paga, a paróquia compra um palácio sem imposto; um operário que compra um desodorizante, para poupar a pituitária ao odor do sovaco, paga, um cónego que faz uma encomenda de incenso, não.

O serviço de jantar de má qualidade, o fato-macaco, o trajo de carnaval, a gabardina ou a fotografia da sogra, pagam IVA. Uma custódia, o turíbulo, a alva, a casula, a mitra, o báculo, uma escultura do padre Escrivá, os santinhos com a fronha de Bento XVI ou o palácio episcopal ficam isentos, para salvação da alma dos contribuintes espanhóis.

É a este abuso eclesiástico que a directiva comunitária se propõe pôr cobro.

19 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Só a mentira ofende

Alguns créus, mais preocupados com a salvação da alma do que na busca da verdade, manifestam-se ofendidos pelas opiniões de alguns ateus, particularmente as minhas.

Quando afirmo que o estalinismo foi perverso, o que evito fazer neste espaço, manifesto a profunda convicção e é o direito à opinião que exerço. Penso o mesmo do catolicismo, particularmente da Igreja de B16, igreja da contra-reforma, uma impiedosa máquina de manipulação que esmaga a liberdade, a inteligência e a felicidade.

Quando a ICAR celebra uma concordata é um roubo que perpetra, o dinheiro público que saqueia, a situação de privilégio que busca. Denunciar a capitulação do Estado que cede à chantagem, se verga ao Papa e bajula o clero é um dever de cidadania.

Se, às vezes, é vigorosa a linguagem nunca cheguei ao ponto de chamar cães a crentes, epíteto que Pio IX usou para os judeus. Aliás, impede-me a educação e o bom senso de descer aos ataques soezes que a santa madre ICAR desfere contra os ateus.

Relativamente aos epítetos com que brindo deus e a mística fauna até serão insultuosos.

Serafins, querubins e tronos; dominações, virtudes e potestades; principados, arcanjos e anjos, citados por ordem hierárquica descendente, são grupos de delinquentes em que os crentes podem acreditar e que faz parte da moral e dos bons costumes escarnecer.

Podem dizer-me que insulto essas etéreas bestas. É verdade. Trata-se de um crime semi-público. Cabe aos ofendidos apresentar queixa.

18 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Maria (2)

Jesus regressou do deserto e do jejum exímio na pregação e exibiu-se, primeiro na Galileia, depois nos acampamentos à beira do Lago de Genesaré e, finalmente, em Jerusalém, cidade destinada a pregadores experientes.

Pelo caminho fez milagres, prática que andava associada à pregação, até que o boato da ressurreição de Lázaro o atingiu e colocou nos píncaros da fama e do perigo.

Pessoas supersticiosas tomavam por verdade boatos inocentes, por milagre aldrabices postas a correr, e, em breve, viram naquele exótico pregador o Cristo predito nos livros do templo.

Judas aproveitou para ganhar uns trocos, miséria de trinta dinheiros, acusando o meigo charlatão, outros usaram-no em lutas que dilaceravam tribos semitas sob o império romano.

Sabe-se que acabou mal. Mas entre a história pouco verosímil da crucificação, lapidação talvez, a alegada ressurreição e subida ao Céu, criou-se uma seita que, ainda hoje, exibe, explora e promove a fábula de Cristo.

De ti, Maria, que ficaste viúva e perdeste o filho, sabe-se que foste com o apóstolo João para Éfeso e lá morreste. Mas há aí uns charlatões que te referem em locais obscuros a aparecer a ignotas pessoas. Faz parte do negócio e tu não os podes desmentir.

Cristo passou a ícone. Ele e a cruz, sós ou em conjunto, tornaram-se presença obsessiva em locais de culto, invadiram largos, o cimo dos montes, paredes das escolas, decotes de vestidos e retrovisores de automóveis em demente proselitismo com milhões de parasitas a viver da fábula e dos milagres, antigos e recentes.

Mas o pior de tudo, Maria, são os boatos que um bando de celibatários misóginos pôs a correr sobre ti, sem respeito pela maternidade nem pelo José.

Dizem que és virgem, uma afronta que repetem desde Pio IX, um homem odioso que se reclamava representante do filho teu, como se um morto pudesse deixar procuração.

Essa atoarda não te favorece e mostra o ódio às mulheres. Dizem que o teu Jesus é Deus e humilham o José e fazem-te a afronta em nome do Padre Eterno que execra o amor, odeia a felicidade e colecciona virgens como trofeus.

17 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Maria (1)

Naquele tempo, Maria, os teus pais julgavam-se descendentes do rei David e, assim, disfarçavam a pobreza e aliviavam a fome que grassava nos lares humildes da Judeia.

Joaquim e Ana pouco tinham para além da árvore genealógica, se é que eles sabiam, ou inventaram-na os vindouros para fazer do filho teu a fantasia universal.

Quando conheceste José ficaste aflita, acordaram os sentidos, subiu-te o rubor à face e só a timidez e os costumes te impediram de abraçar o carpinteiro jovem de Nazaré, trocar beijos húmidos e seguir como a natureza manda e a hipocrisia condena.

Sabemos pouco de ti. Não sonhaste que viesses a interessar alguém quando escutavas a oração matinal do teu pai a bendizer Deus por tê-lo feito judeu e não escravo…nem mulher. Nem te davas conta da injustiça, conformada com a sorte de seres fêmea.

Quando, pela vez primeira, achaste José a percorrer-te o corpo, sentiste arrepios que o bafo quente ampliava, e pareceram-te veludo as mãos que ora subiam os montes, ora se detinham nos vales da tua anatomia, quando atingiste o êxtase e sentiste que há vida para lá das orações.

Foram tempos exaltantes e, em breve, soubeste o que te ia nas entranhas. A seita que se apropriou de ti inventou um anjo para te anunciar a gravidez como se a mulher não percebesse, como se um anjo fosse o teste de gravidez ou um tubo de ensaio com urina e reagentes.

No fim do tempo que é devido nasceu um varão para alegria tua e de José que as fêmeas valiam pouco. Tão satisfeita ficaste que o chamaste Jehoshua que queria dizer «Javé é a salvação», depois transformado em Jesus.

Algum tempo depois, vá-se lá saber porquê, havias de emigrar para o Egipto, facto que daria origem a uma história fantasiosa para colorir as origens de uma nova seita que ainda hoje floresce.

Quando aos 12 anos Jesus se esgueirava de casa para se livrar do pai e da oficina e se refugiava no templo onde os doutores aproveitavam a ociosidade para conversar com ele, mal podias adivinhar, Maria, que a populaça havia de ver nele o Cristo predito nos escritos que o templo guardava.

Da adolescência, dos desejos reprimidos ou satisfeitos, dos sonhos e pesadelos dessa idade nada se sabe do teu menino. Nem do jovem adulto.

Aos trinta anos baptizou-o nas águas do Jordão um indivíduo habilitado, João Baptista de seu nome, e – diz-se -, Jesus abalou depois para o deserto onde resistiu às tentações do demo, como se o lugar fosse adequado a consumar desejos, e jejuou quarenta dias.