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O legado de João Paulo II

A morte não é a benzina que apaga as nódoas. Não é falta de respeito criticar Hitler, Stalin, Franco, Mussolini, Pio IX, Khomeini, Brejnev, Salazar ou João Paulo II. Como não será crime condenar amanhã Pinochet, Saddam ou Bin Laden.
A bondade das pessoas não está à mercê dos decretos pontifícios ou das opiniões dos poderosos. A voz pública não coincide obrigatoriamente com a que se publica.

Após o último comício realizado sob os auspícios de JP2 que, nem no funeral, prescindiu dos banhos de multidão com que alimentou o narcisismo e promoveu a religião que administrava, há multidões de órfãos que em breve ultrapassarão o luto com o novo «pai» que os cardeais, iluminados pelo Espírito Santo e influenciados pelo Opus Dei, lhes vão arranjar.

Contrariamente ao meu amigo e companheiro do Diário Ateísta, João Vasco, não registei no longo e autoritário pontificado de JP2 aspectos positivos. No entanto, há coisas boas que deixa – uma igreja monolítica que, após o autoritarismo, tem tendência a desagregar-se; santos em tanta quantidade que vai ser fácil desmascarar o passado pouco glorioso e recomendável de muitos deles; milagres a rodos cuja puerilidade vai fazer corar de vergonha os crentes pensantes; o ressentimento dos teólogos e dignitários católicos que amordaçou e cuja pressão vai destapar a panela fechada por JP2, com a ajuda da Cúria.

JP2 foi um misto de estrela pop e de aldrabão de feira. Virou os holofotes todos para si. Foi o eucalipto que secou tudo à sua volta. Veremos como os próximos tempos serão tempo de desagregação e de lutas dentro da ICAR. Nem tudo é mau, de facto.

O erro que mais frequentemente se comete é ver em JP2 o Papa do diálogo ecuménico. Ele não procurou reconhecer a verdade dos outros, apenas tentou hegemonizar a sua. Nunca defendeu a liberdade de crer e de não crer, só quis o regresso a um tempo em que era perigoso não acreditar. Desde a morte de Pio XII que a ICAR nunca mais tinha proibido um livro. Voltou a censura com JP2. Ele nunca foi um arauto da liberdade, apenas foi um adversário de alguns tipos de ditaduras. O pretenso diálogo não resultou da bondade e da tolerância, estabeleceu-se na base dos preconceitos misóginos, autoritários, homofóbicos e de ânsia do poder clerical. Foi isso que aproximou os clérigos das religiões do livro em luta contra o livre-pensamento e a laicidade.

JP2 deixa uma Igreja mais medieval, supersticiosa, fanática e troglodita do que a que herdou de João Paulo I, papa durante 33 dias, falecido na sequência do anúncio da fiscalização das contas do Banco do Vaticano, piedosamente chamado IOR (Instituto das Obras Religiosas). Alguém pergunta por que razão JP2 se negou a extraditar o arcebispo Marcinkus, presidente do IOR e arguido na falência do banco Ambrosiano? Quanto pagou o Vaticano por essa monumental burla e por que razão defendeu o cúmplice? Quem deu o dinheiro para as grossas indemnizações e acabou por tornar-se prelatura pessoal de JP2? Ou deveria o papa falecido chamar-se «(J)P-2»?