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Hipocrisia e ridículo


O falecimento de alguém merece-me respeito, mesmo – como é o caso -, quando se trata da última cúmplice de um embuste montado pela Igreja Católica na luta contra o comunismo e no ódio cego à República e à separação da Igreja e do Estado.

O cancelamento da campanha eleitoral pelo PSD e pelo CDS e as tergiversações do PS só encontram paralelo no ridículo de um primeiro-ministro que pretende que seja declarado luto nacional pela morte de uma freira enclausurada há dezenas de anos e que foi uma bandeira da campanha do fundamentalismo católico contra o progresso e a liberdade.

Desde a luta contra a mini-saia e o divórcio (mesmo para casamentos civis), que eram objecto das cartas para Marcelo Caetano, até à convicção que lhe fora transmitida pela Senhora de Fátima de que Salazar foi enviado pela Providência para salvar Portugal, confidência da virgem Maria que acabou por ser transmitida a Salazar pelo cardeal Gonçalves Cerejeira, a vida de Lúcia é a de uma pobre pastora de quem a ICAR se apropriou para um dos maiores embustes do século passado.

Já está esquecido o terceiro segredo de Fátima que excitou durante décadas a superstição popular, acalentou medos e generalizou o pânico entre as populações analfabetas do mundo rural, embrutecidas por um clero saído do concílio de Trento para a cumplicidade com o Estado Novo. Já ninguém se recorda de que o Papa mandou um padre a Portugal para que a Irmã Lúcia confirmasse que foi aquela batina com que JP2 foi baleado por um enigmático turco, a que ela viu, em visão, quando o próprio pano não tinha ainda sido tecido. Claro que a vidente confirmou.

Foi com milagres destes e a exploração grosseira da superstição que o negócio de Fátima nasceu e prosperou. Foi com a falta de pudor e o descaramento pela credulidade de gente simples que se urdiu uma teia de mentiras e idolatria que transformou uma zona rural paupérrima num promissor centro urbano do sector terciário.

Que aos embustes da ICAR se venha juntar o oportunismo descarado dos partidos que suspendem a campanha eleitoral em sinal de luto por uma vetusta freira que morre naturalmente, é um acto digno dos mullahs islâmicos, um gesto ao gosto do terceiro-mundo, uma vergonha que cobre de opróbrio um país europeu onde os ventos e as marés ainda se deslocam ao sabor da vontade da Senhora de Fátima.