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Uma velha história pia recreada com um tique jacobino e um toque de humor.

A vida, a morte, a ressurreição e o sermão ímpio

Na última sexta-feira, adjetivada de santa, a cristandade chorou a morte matada de Jesus Cristo (JC), judeu utilizado por Paulo de Tarso na cisão com o judaísmo, e às 00H00 de domingo houve euforia com a ressurreição, todos os anos repetida. Nos três dias de luto, nunca três dias tiveram tão poucas horas, puseram de lado a carne, sobretudo de porco e, presume-se, também aquela que dá origem ao pecado da luxúria.

JC, antes de proceder à sua ressurreição e de ter subido ao Céu com os órgãos intactos, incluindo o santo prepúcio que, só em Itália, chegou a gozar o ouro de igual número de relicários, antes de um papa acabar com as peregrinações e a disputa sobre o verdadeiro, com a alegação de que a subida ao Céu não podia deixar resíduos, JC já tinha treinado o truque da ressurreição num pobre diabo, que referirei adiante, onde ganhou prática.

Sabe-se que JC morreu no Gólgota onde o dedicado Cireneu o ajudou a arrastar a cruz e, embora com algumas discrepâncias, o Novo Testamento encarregou-se da narrativa da morte, da ressurreição e das conversas com pessoas das suas relações antes de subir ao Céu. Sabe-se que deu nas vistas nos últimos três anos de vida em que se dedicou aos milagres e à pregação, atividades frequentes para quem fugia ao setor primário. Um dos milagres, quiçá o que lhe valeu a divindade, milagre só repetido para si próprio, foi o da ressurreição de Lázaro. Hoje os milagres são pífios e basta a cura da queimadela de um olho com óleo de fritar peixe, suprindo o colírio, para canonizar um bem aventurado.

O homilia da ressurreição de Lázaro é, ainda hoje, um comovente exercício da divina omnipotência. Era este sermão que cabia fazer ao pároco de uma aldeia da Beira, num qualquer domingo depois do Pentecostes, quando ficou afónico. Não se atrapalhou o padre e ordenou ao sacristão, inexperiente na parenética, que fosse ele, a substituí-lo.

Depois das peripécias da recusa, que por economia dispenso de referir, o padre garantiu estar a seu lado para emendar algum erro improvável a quem sabia de cor o sermão que tinha ouvido dezenas de vezes. E assim fez.

Tal como combinado, o sacristão advertiu os paroquianos que ia dizer o sermão pelas razões conhecidas, e começou:

– Queridos irmãos, naquele tempo estava Jesus e alguns apóstolos, com a mesa e a mala, a fazer milagres à beira do Lago de Genesaré, hoje chamado de Tiberíades, e veio junto dele um coxo e disse: «Senhor, curai-me» e o Senhor curou-o; veio depois um cego com igual pedido e o Senhor curou-o; e fez o mesmo com sifilíticos, leprosos e paralíticos. Já Jesus tinha arrumado a mala e ainda vieram junto dele as irmãs de Lázaro, chorosas, e lhe disseram: «Senhor, o nosso irmão morreu; Senhor, valei-nos». O Senhor disse-lhes: ide e orai e elas assim fizeram.

O Senhor foi junto da campa de Lázaro e ordenou-lhe: Lázaro, levanta-te e anda. E ele andeu…

…«andou, estúpido!» balbuciou-lhe do lado o padre, afónico. E o sacristão continuou…

…andou estúpido algum tempo e depois curou-se.