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Bíblia – A invenção lucrativa

Manuscrito bíblico do sec. 4 omite Jesus ressuscitado

Terça-Feira, 24 de Fevereiro de 2015 / 09:44

Eu nunca seria capaz de imaginar que um post bobinho, uma simples desculpa para colocar uma imagem bonita de um manuscrito antigo, despertaria tanta pancadaria. Mas, milhares de acessos e centenas de comentários depois neste postsobre a versão digital do Códex Vaticano, caí na real. Como os mal-entendidos foram muitos, queria aproveitar para explicar melhor um dos pontos polêmicos do texto anterior: a famigerada “versão estendida” do finalzinho do Evangelho de Marcos, que não consta do Códex Vaticano.

Será que esse é o caso do final do Evangelho de Marcos? Bem, é complicado.Primeiro ponto: existe, de fato, bastante variação nos manuscritos antigos do Novo Testamento bíblico. Hoje, essas variantes estão na casa das centenas de milhares, nas contas dos especialistas . A IMENSA maioria delas não é significativa: assim como as pessoas de hoje, os copistas do Novo Testamento também cometiam erros de ortografia, comiam palavras, pulavam de uma linha para outra na hora de copiar etc. Algumas alterações, no entanto, de fato são significativas: trechos grandes são incluídos e omitidos, alterando o sentido dos textos bíblicos.

Dois dos mais antigos textos completos de Marcos, o Códex Vaticano e o Códex Sinaítico, ambos do século 4º d.C., muito usados como referência por quem estabelece os textos bíblicos padronizados, omitem essa passagem. Eles terminam da seguinte maneira: as mulheres que vão ao túmulo de Jesus para ungir seu corpo encontram um jovem vestido de branco (talvez um anjo), que diz que Jesus ressuscitou e está esperando os apóstolos na Galileia. “Elas saíram e fugiram do túmulo, pois um temor e um estupor se apossaram delas. E nada contaram a ninguém, pois tinham medo.” É o trecho que hoje corresponde a Marcos 16, 1-8.

Note que em nenhum momento o texto diz que Jesus não ressuscitou — o que ocorre é que Jesus ressuscitado não aparece nesse trecho.

Beleza. Os versículos seguintes, os de 9 a 20, correspondem à “versão estendida” presente em outros manuscritos, relatando tanto as aparições de Jesus a Maria Madalena e a seus discípulos como a ordem por parte dele para pregar o Evangelho pelo mundo e sua ascensão aos céus.

O curioso é que outros manuscritos registram versões estendidas DIFERENTES. Uma delas é bem mais curtinha e diz o seguinte: “Elas [as mulheres] narraram brevemente aos companheiros de Pedro o que lhes tinha sido anunciado. Depois, o mesmo Jesus os encarregou de levar, do Oriente ao Ocidente, a sagrada e incorruptível mensagem da salvação eterna.”

É ADENDO MESMO?

A maioria dos especialistas hoje acha que esses finais são adendos. Alguns dos motivos:

1)Como eu já disse, alguns dos manuscritos mais antigos e de melhor qualidade de Marcos omitem a passagem;

2)A versão estendida parece resumir uma série de aparições de Jesus ressuscitado de outros evangelhos, como para Maria Madalena (em João), para os discípulos de Emaús (Lucas), a ascensão aos céus (Lucas de novo);

3)O estilo do trecho é bem diferente do que aparece no resto do Evangelho de Marcos;

4)O final original diz que Jesus encontraria os apóstolos na Galileia, mas nenhuma menção a essa viagem aparece no final estendido.

Mas sério que Marcos terminaria sua obra-prima dizendo simplesmente “elas tinham medo”? Bom, aí temos as hipóteses que explicariam isso:

1)Foi de propósito. Marcos mostra Jesus sendo incompreendido até por seus discípulos ao longo de todo o seu evangelho. A ideia seria mostrar que essa incompreensão continua, e que cabe ao leitor do evangelho entender e colocar em prática a mensagem de Jesus;

2)Marcos morreu antes de terminar o texto e cristãos posteriores acharam necessário acertar o final;

3)Ele chegou a escrever seu próprio final, mas por algum motivo esse pedaço do manuscrito original se perdeu.

A propósito, seja lá como o final estendido tenha ido parar onde está hoje, a coisa não teve nada a ver com o imperador romano Constantino ou com o Concílio de Niceia. Textos cristãos a partir do ano 160 d.C. (ou seja, um século depois de o evangelho original ter sido escrito) já mencionam esse finalzinho. Trata-se de uma adição bastante antiga também, portanto.

É isso, gente. Zero de teoria da conspiração à la Dan Brown nessa história. Trata-se apenas de mostrar que, crendo ou não na inspiração divina das Escrituras, é preciso reconhecer que, como texto, elas têm uma história tortuosa e complicada e não caíram prontas do céu.

Fonte: UOL/Reinaldo José Lopes