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Mês: Março 2006

4 de Março, 2006 Palmira Silva

Linda Smith: Deus, a maior piada

Morreu Linda Smith, uma das mais fabulosas comediantes britânicas, com um domínio extraordinário da língua inglesa e um humor espontâneo e inteligente, com que deliciava os seus ouvintes da BBC4 e tele espectadores dos vários programas que protagonizava.

Depois de duas décadas a partilhar com a sua audiência uma visão satírica da actualidade, não é de surpreender que nos seus últimos dias planeasse a expressão pública dos seus valores humanistas e ateístas de forma condigna. Assim, o adeus a Linda Smith será efectuado num funeral humanista.

Um serviço memorial será efectuado no dia seguinte ao funeral no teatro East London, e também para a semana realizar-se-à no Theatre Royal em Stratford, uma homenagem a Linda por colegas comediantes, de certa forma cumprindo uma aspiração da comediante, não concretizada em vida, a realização de um espectáculo que reunisse «pessoas que não fossem necessariamente a audiência humanista normal».

Esperemos que seja realizado em breve, e não apenas no Reino Unido, outro dos seus desejos, a separação efectiva da religião da esfera pública em geral e o fim do financiamento público de escolas confessionais em particular. Numa sociedade em que crescentemente a noção de Deus se revela se não absurda pelo menos irrelevante, como o é a britânica, não faz sentido a quantidade de dinheiro público que se desperdiça em escolas confessionais prosélitas, que não só promovem a segregação da sociedade desde tenra idade, como são elitistas no mau sentido, ou seja, recusam a entrada a crianças problemáticas!

4 de Março, 2006 lrodrigues

A noção do ridículo

A reunião da Câmara Municipal de Cascais do próximo dia 6 de Março de 2006 adivinha-se, sem dúvida, muito animada e educativa.
De facto, a ilustre vereadora com a responsabilidade do pelouro da cultura, Ana Clara Justino (independente eleita pelo PSD), resolveu proporcionar ao executivo municipal uma lição sobre a Páscoa.

E já fez o trabalho de casa e tudo:
De acordo com a «Informação à Câmara» que já fez distribuir, a piedosa vereadora ensina-nos que «o cordeiro, a cruz, o pão e o vinho» são os símbolos que identificamos com a Páscoa.

E a lição continua:
«O cordeiro simboliza Cristo, sacrificado em prol do seu rebanho, a cruz mistifica todo o significado da Páscoa na ressurreição e no sofrimento de Cristo. O pão e o vinho oferecido aos seus discípulos, simbolizam a vida eterna, o corpo e o sangue de Jesus. Mas se perguntarmos a uma criança qual o símbolo que para ela mais se associa à Páscoa, facilmente adivinhamos a resposta: o ovo!»

E depois lá continua a dissertação, desta vez sobre os ovos na antiguidade, como podemos observar na imagem à direita.

(Clicar sobre a imagem para a ampliar, e de seguida sobre o ícone que aparecer no canto inferior direito).

Talvez não tenha ocorrido à senhora vereadora (isso teria sido para ela um ovo de Colombo) que o Estado português é laico por imposição constitucional.

A senhora vereadora esqueceu-se certamente que o cordeiro que ela toma como Deus ensinou há já dois milénios ao rebanho de que ela faz parte que «a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus».

E talvez a senhora vereadora não saiba que não lhe pagam um salário ao fim do mês, nem senhas de presença nas reuniões do executivo, nem lhe dão carro e motorista às ordens, para andar a espalhar a fé cristã pelo concelho.
Nem tem de andar a esbanjar os recursos financeiros da autarquia a evangelizar o munícipes.

Mas pior do que tudo, a senhora vereadora sabe muito bem que as crianças do concelho de Cascais não lhe fizeram mal nenhum, e não têm que ser martirizadas e sujeitas à tortura de ensinamentos iconoclastas e medievais, infligidas pelo próprio executivo da Câmara Municipal, que deveria ser o primeiro a respeitar o laicismo do Estado.

Mas, no fim, se virmos bem, há ainda outra coisa que falta à senhora vereadora:
A noção do ridículo!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

3 de Março, 2006 Ricardo Alves

O mundo das religiões (3/3/2006)

  1. Na Grécia, um dos países mais clericais da União Europeia, é finalmente possível optar pela cremação de um cadáver. No entanto, devido a um compromisso com a Igreja Ortodoxa Grega, cujo «papel predominante» é reconhecido constitucionalmente, apenas os cidadãos gregos não ortodoxos poderão ser cremados.
  2. O Tribunal Supremo do Canadá decidiu que foi uma infracção da liberdade religiosa não permitir que um estudante sikh frequentasse as aulas armado de um punhal cerimonial. No entanto, os estudantes sikhs serão obrigados, futuramente, a transportar apenas punhais pequenos para a escola, a mantê-los embainhados e a não os experimentarem nos colegas.
  3. Uma estudante russa e o seu pai decidiram processar o Governo por não ensinar o criacionismo a par da teoria da evolução. Numa convergência ecuménica enternecedora, o processo judicial será apoiado pela Igreja Ortodoxa Russa em conjunto com as comunidades muçulmana e judaica. Porém, nada foi dito sobre a defesa do ensino da ressurreição a par da segunda lei da termodinâmica ou sobre o ensino do geocentrismo a par do heliocentrismo.
2 de Março, 2006 Ricardo Alves

Manifesto dos 12 (agora em Português)

«Depois de ter vencido o Fascismo, o Nazismo e o Estalinismo, o mundo enfrenta agora uma nova ameaça totalitária global: o Islamismo.

Nós, escritores, jornalistas, intelectuais, vimos aqui apelar à resistência ao totalitarismo religioso, bem como à promoção da liberdade, da igualdade de oportunidades e dos valores laicos para todos.

Os eventos que ocorreram recentemente, depois da publicação das caricaturas de Maomé em jornais europeus, tornaram evidente a necessidade de um combate em prol destes valores universais. Trata-se de um confronto a travar no campo ideológico e que nunca poderá ser ganho pelas armas. Aquilo a que estamos presentemente a assistir não constitui um conflito de civilizações, nem um antagonismo Este-Oeste, mas antes uma luta global entre democratas e teocratas.

Como todos os totalitarismos, o Islamismo estabelece-se sobre medos e frustrações. Os pregadores do ódio apostam nesses sentimentos para formar batalhões destinados a impor um mundo de opressão e desigualdades. Contudo, nós afirmamos clara e firmemente: não existe nada, nem mesmo o desespero, que possa justificar a escolha do obscurantismo, do totalitarismo e do ódio. O Islamismo é uma ideologia reaccionária que aniquila a igualdade, a liberdade e a laicidade sempre que as encontra. O seu êxito só pode conduzir a um mundo de dominação: dominação do homem sobre a mulher, dominação dos islamistas sobre os demais. Para nos opormos a este processo, temos que assegurar direitos universais a todos os povos discriminados ou oprimidos.

Rejeitamos o «relativismo cultural», que consiste em aceitar que homens e mulheres de cultura muçulmana devem ser privados do direito à igualdade, à liberdade e aos valores laicos em nome do respeito pelas culturas e tradições.

Recusamo-nos a renunciar ao espírito crítico por receio da acusação de “islamofobia”, um conceito infeliz que confunde a crítica do Islão enquanto religião com a estigmatização dos seus crentes.

Pugnamos pela universalidade da liberdade de expressão, para que o espírito crítico se possa exercer em todos os continentes, contra todos os abusos e todos os dogmas.

Apelamos a todos os democratas e espíritos livres de todos os países para que o nosso século venha a ser um tempo de Iluminismo e não de obscurantismo

Ayaan Hirsi Ali, Chahla Chafiq, Caroline Fourest, Bernard-Henri Lévy, Irshad Manji, Mehdi Mozaffari, Maryam Namazie, Taslima Nasreen, Salman Rushdie, Antoine Sfeir, Philippe Val, Ibn Warraq.

(Tradução de Luis Mateus – Associação República e Laicidade.)

2 de Março, 2006 Carlos Esperança

Humildade cristã

Bento 16 abdica do título «Patriarca do Ocidente», ficando reduzido a oito títulos: «Sumo Pontífice da Igreja Universal», «Primaz da Itália», «Bispo de Roma», «Vigário de Jesus Cristo» «Sucessor de Pedro», «Arcebispo Metropolita da Província Romana», «Soberano do Estado da Cidade do Vaticano» e « Servidor dos Servidores de Deus».

Esta tocante simplicidade papal tem precedentes. João 23 resignou ao título de «Papa do Reino Glorioso» trocando-o por «Servidor dos Servidores de Deus» e Paulo 6 prescindiu do excelente título de «Sua Santidade de Nosso Senhor».

A modéstia papal é um facto conhecido mas este desapego à solenidade dos títulos é deveras cativante e motivo de reflexão evangélica.

Com este alheamento dos bens terrenos em breve ninguém distinguirá o Soberano do Estado da Cidade do Vaticano do canalizador que desentope a sanita percorrida pelas santas matérias fecais do Pontífice Máximo.

Modéstia sim, mas não tanto.

1 de Março, 2006 Ricardo Alves

«Juntos contra o novo totalitarismo»

Um grupo de escritores e intelectuais em que se incluem, entre outros, Salman Rushdie, Ayaan Hirsi Ali, Taslima Nasreen, Ibn Warraq, Caroline Fourest e Bernard-Henri Lévy, publicou ontem um Manifesto intitulado «Juntos contra o novo totalitarismo». Nele, os autores afirmam que o mundo se encontra «face a uma nova ameaça totalitária global: o islamismo», e que a resposta passa pela «promoção, para todos, da liberdade, da igualdade de oportunidades e dos valores laicos», valores esses que consideram universais.

O Manifesto foi publicado no jornal dinamarquês Jyllands-Posten e no jornal satírico francês Charlie-Hebdo e faz referência à crise desencadeada pela publicação das caricaturas de Maomé. Distancia-se das análises que insistem no «choque de civilizações» ou no antagonismo entre «Ocidente» e «Oriente», respondendo-lhes que assistimos, isso sim, a uma «luta global que confronta democratas e teocratas». Dado que ainda recentemente insisti que a clivagem é entre laicistas e clericais, não posso deixar de concordar. O Manifesto critica também o «relativismo cultural», que define como a aceitação de que «homens e mulheres de cultura muçulmana deveriam ser privados do seu direito à igualdade, à liberdade e aos valores laicos em nome do respeito pelas culturas e tradições». A terminar, os autores expressam o desejo de que «o nosso século seja um século de Iluminismo e não de obscurantismo». É um desejo que, evidentemente, partilho.
1 de Março, 2006 Carlos Esperança

Fátima – o antro do embuste

O documentário aqui anunciado é impressionante. Homens e mulheres, rostos doridos, corpos cansados, peles tisnadas pelo sol, pés inchados e chagados da caminhada, vão a Fátima expiar pecados e em busca de milagres que nunca acontecem.

Um pagador de promessas paga à Virgem o compromisso de um desconhecido. Em casa alguém espera uma graça, o alívio de uma aflição ou a cura de uma moléstia.

Em Fátima as azinheiras estão despidas de virgens, o Sol finge a caminhada diária no sentido inverso à rotação da Terra, sem cambalhotas patéticas nem embustes do clero.

No ar misturam-se os odores dos pés por lavar, da cera que arde e do incenso exigido pela liturgia. Na pira ex-votos ardem em devoção pirómana. No chão esfolam-se joelhos e arrastam-se infelizes em busca de refrigério.

A farsa é alimentada pelos padres e padecida pelos penitentes. O terceiro mundo está ali recriado pela ignorância, ampliado pela angústia, mantido pelo sofrimento.

Que raio de Deus que se rebola de gozo com a humilhação dos homens.

A quem se baixa mingua a estatura; a quem se ajoelha falta amor-próprio e a quem se prostra foge-lhe a dignidade.

Tenho pena dos desgraçados que dão o que não podem, sofrem o que não devem e acreditam no que não há, com a cupidez do clero, a cumplicidade do Vaticano e o desinteresse das associações de consumidores.

1 de Março, 2006 lrodrigues

Ave Maria, cheia de graça

Tom Monaghan ficou mundialmente conhecido quando decidiu vender a cadeia de restaurantes de que era proprietário nos Estados Unidos, a célebre «Domino’s Pizza», pela bonita e simpática soma de mil milhões de dólares.
Aparentemente Tom Monaghan quis passar a ser o paradigma e o exemplo vivo do multimilionário que não sabe o que fazer ao dinheiro.

Mas como é um fervoroso e devoto católico, o bom do Tom Monaghan lá arranjou maneira de gastar uma boa parte da sua fortuna a investir no seu lugar no Céu, não vá o Diabo tecê-las quando chegar a altura de entregar a alma ao seu (dele) criador.

Segundo a «Newsweek», Tom Monaghan decidiu fundar uma cidade inteiramente nova que será localizada a sudoeste do estado americano da Florida.

O nome da cidade está já decidido e não podia ser mais apropriado aos objectivos que o beato milionário pretende atingir.
E já tem um site promocional na Internet e tudo!

A nova cidade terá o bonito e apropriado nome de… Ave Maria.

Será construída uma enorme catedral com mais de 30 metros de altura, e um crucifixo de 20 metros servirá de guia às 11.000 habitações cuja construção está projectada, e que só serão arrendadas ou vendidas a quem provar ser um bom católico.
Mas não é só a construção civil que já está planeada.
Também a peculiar forma como Tom Monaghan interpreta e difunde o catolicismo e os respectivos valores ultra-conservadores terá reflexo no modo de vida dos habitantes da futura cidade.
Aliás o pio milionário nunca escondeu que pretende investir o seu dinheiro “no mesmo sítio onde está a sua fé” e sempre disse:
«Acredito que toda a História não é mais do que uma gigantesca batalha entre o bem e o mal. E eu não quero ficar à margem».

Provavelmente por isso fez uma doação de muitos milhões de dólares à Igreja Católica da Nicarágua para a reconstrução da catedral de Manágua que tinha sido destruída por um terramoto, embora não tenha dado um cêntimo sequer para a reconstrução das casas de centenas de milhar de pessoas que viviam miseravelmente e que tinham ficado sem abrigo.

Decerto atormentado e, sem sombra de dúvida, psicologicamente traumatizado pelo seu passado, já que foi educado em orfanatos por freiras católicas, coitado, Tom Monaghan, agora com 68 anos de idade, há muito que pretende vender o seu fanatismo religioso.
Fundou estações de rádio, escolas, uma pequena universidade e até uma faculdade de direito católica de onde estão neste momento a sair os primeiros advogados, cuja devota formação inegavelmente promete vir a dar que falar.

A nova cidade será, assim, um exemplo de virtudes católicas.
Para já, as farmácias da cidade serão impedidas de vender preservativos ou quaisquer contraceptivos, e será completamente proibida qualquer forma de planeamento familiar.
O aborto estará absolutamente fora de questão, quaisquer que sejam as circunstâncias.
A venda de artigos que possam ser considerados pornográficos ou pecaminosos será proibida.
Os programas que serão difundidos nos canais de televisão por cabo disponíveis na cidade serão cuidadosamente escrutinados.
Serão construídas capelas por toda a cidade em sítios estrategicamente estudados, de forma a que todas as pessoas se possam deslocar facilmente a pé para ir à missa.
Apesar disso, na catedral serão rezadas missas de hora a hora, sete dias por semana.

Numa altura em que nos Estados Unidos os fundamentalistas católicos tudo têm feito para tentarem substituir o estudo da teoria da evolução de Darwin pelo “criacionismo” nas Universidades americanas, também não é difícil de prever que tipo de ensino será ministrado em Ave Maria.
Até porque pelo menos um quarto dos professores serão membros do clero católico, e o ensino terá obrigatoriamente como primeiro objectivo incentivar os jovens a tornarem-se padres ou freiras.
Também não é difícil de prever que livros existirão nas bibliotecas e como será o quotidiano da cidade.

Embora mais triste seja imaginar como serão educadas as suas crianças…

Neste tempo em que tanto se tem falado em fundamentalismo islâmico, é curioso como os fanatismos religiosos, mais burqa menos burqa, mais Ave Maria menos Ave Maria, são, afinal, todos iguais.
E como é irresistível para todas as crenças, sejam elas quais forem, a tentação de procurarem tornar o Estado dependente das religiões.
E como é cega a sua persistência em determinar a vida das outras pessoas de acordo com os seus cânones, professem elas ou não a mesma religião.

Esta cidade será, pois, um gigantesco monumento ao fundamentalismo e ao fanatismo religioso.

O próprio Papa Bento XVI em pessoa tem manifestado interesse por Ave Maria, inteirando-se sempre que pode do avanço da construção da nova cidade.
O que, convenhamos, não é nada de surpreender…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)