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A Irmã Lúcia e o Quincas

Chove. As bátegas não param de fustigar os peregrinos. O que as novenas dos padres não conseguiram, consegue-o a meteorologia.

Não é a ineficácia das rezas ou a ausência de Deus que demove os crentes, alagados de fé e chuva até aos ossos, de estarem presentes na segunda edição do funeral de Lúcia.

Não há na repetição das exéquias fúnebres a saudade genuína das putas de S. Salvador da Baía a passearem o cadáver do Quincas Berro D´Água, nas ruas em cujos botequins devorou cachaça com a mesma sofreguidão com que as beatas chupavam hóstias.

A freira, a quem o terrorismo religioso do catecismo induziu alucinações, nunca terá um Jorge Amado que a celebre em «A morte e a morte da Irmã Lúcia, vidente».

O Quincas, quando devorou, de um trago só, água em vez de cachaça, deu tal berro que passou a ser carinhosamente tratado por «Berrinho» e fez-se personagem de romance. Lúcia comungava por hábito e obrigação pia, mantinha olhos vagos e a postura de quem vive morta por dentro envergando como mortalha o hábito de freira.

Quincas é o delicioso personagem que diverte e comove o leitor de «A morte e a morte de Quincas Berro D’Água», marginal que viveu a vida, pecador que amou e foi amado.

Lúcia é exemplo trágico de criança pobre, embrutecida com orações e amedrontada pelo Inferno, que sonhou virgens nas azinheiras, cambalhotas do Sol no caminho das cabras, profecias de conversão da Rússia e churrascos de almas para absentistas da missa.

A criança amestrada com pias mentiras sobre o divino tornou-se cadáver de estimação, acolitada pela força pública, a viajar com padres, bispos, freiras e peregrinos, numa obscena encenação com quatro missas, orações pias e um futuro promissor de oferendas de gente aflita.

Não é o último capítulo da história de uma encarcerada de Deus, é o início do caminho da santidade, à espera dos milagres e das oferendas que hão-de alimentar funcionários de Deus e fazer de Fátima uma das mais lucrativas sucursais do Vaticano.

A burla não acaba hoje, um novo ciclo começa.