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Mês: Dezembro 2005

3 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo – a patrística

Como a própria Enciclopédia Católica Popular indica, a Idade Média foi um período de total domínio da Igreja Católica que imprimiu «à Europa a visão teocêntrica do mundo, o ideal do império sujeito ao Papado (Cris-tandade) e a organização da vida do povo em torno dos princípios doutrinais e morais do Cristianismo». Os ecos desta «longa noite de mil anos», uma época de trevas e de obscurantismo, um tempo em que o homem, marcado indelevelmente pelo pecado original, morre para fazer viver Deus, ainda hoje se imprimem na sociedade actual, especialmente no Sul da Europa que a Reforma protestante não libertou da asfixia intelectual imposta pela Igreja de Roma.

De facto, se as culturas gregas consagraram como valores fundamentais o saber e a razão, o cristianismo procurou contrapor aos mesmos a superioridade da Fé revelada. Assim, o abandono do saber e da razão e a subordinação (e asfixia) de todo o conhecimento à religião marcou o pensamento europeu durante a Idade Média. Os únicos pensamentos «originais» que surgem, especialmente na Alta Idade Média (até ao século X), têm a ver com temas cristãos, tais como a providência e revelação divinas, a criação a partir do nada (creatio ex nihilo) e afins.

Podemos dividir a cultura cristã medieval em dois períodos, um designado por Patrística (séculos II-VIII), porquanto representa o pensamento dos pais da Igreja, os construtores da teologia católica e que domina na Alta Idade Média, e a Escolástica que se segue e termina com a (Baixa)Idade Média. Os expoentes destas escolas de pensamento são, como não poderia deixar de ser, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, respectivamente.

O De doctrina Christiana (397) do inescapável Agostinho de Hipona (354-430) será a obra que dominará toda a cultura cristã medieval, obra que tem como objectivo formar o vir Christianus dicendi peritus, o cristão que através do uso judicioso da cultura antiga aplicada às Escrituras adquire sabedoria e habilidades retóricas necessárias à sua eficiência no disseminar da doutrina cristã. Agostinho quer assim uma cultura total e directamente subordinada ao cristianismo, em que todas as manifestações da vida intelectual estão ao serviço da vida religiosa, não sendo mais que uma função desta. Para Agostinho a vida intelectual do cristão deve opor-se de forma radical à cultura tradicional dos sábios do seu tempo, à estética do letrado e à curiosidade do erudito. Todas as ciências irrelevantes para este objectivo devem ser abandonadas por pagãs ou contrárias à verdade revelada.

De facto, Agostinho viveu numa época de transição e conviveu com a cultura greco-romana que lhe serviu de inspiração, especialmente Platão, ou melhor, o neoplatonismo de Alexandria. Assim, cristianiza selectivamente a cultura greco-romana, com ênfase em Platão, extirpando o que considera erro comum de todos os filósofos antigos: a exaltação da razão, considerada a mais alta manifestação do homem. À razão Agostinho contrapunha a revelação e, traçando o caminho para o obscurantismo medieval cristão que se vai seguir, recomenda a colecção, numa só obra de preferência o que deu origem ao enciclopedismo medieval, de todos os conhecimentos do mundo clássico necessários à interpretação e ensino dos textos sagrados e ignorar (isto é, suprimir) os restantes.

Talvez a expressão Sapientia Dei, Scientia Mundi descreva os dois aspectos da cultura cristã agostiniana, o superior, a sapiência, a contemplação das «verdades eternas» divinas, e o inferior, a ciência, que consiste na interpretação dos dados sensíveis. Deveras interessante são as várias conotações que Agostinho dá à ciência, pejorativa quando corresponde a um considerado uso perverso e culpado da razão, que ocorre quando o objectivo é o conhecimento de per se, uma explicação do mundo sensível e não um meio para chegar a Deus.

A interpretação de ciência de Agostinho conjuntamente com a desvalorização da vida terrena, já que o mundo medieval não tinha qualquer valor intrínseco, era apenas uma passagem para um outro mundo, traduziu-se numa desconfiança pelos dados dos sentidos e, em particular, pelo conhecimento empírico que perduraram em toda a Alta Idade Média. O fundamento para a verdade seria unica e exclusivamente a Bíblia, a palavra revelada de Deus e quem a pusesse em dúvida um perigoso herege que urgia exterminar antes que contaminasse outrem com o seu pensamento impuro.

Para esta subordinação do conhecimento à religião contribuiu igualmente a desagregação do sistema de ensino da antiguidade clássica que acompanhou a queda do Império Romano no Ocidente. A Igreja monopolizou o conhecimento, os clérigos foram durante muito tempo os únicos letrados e as instituições de ensino romanas foram substituídas por mosteiros. O pouco ensino praticado assentava exclusivamente na interpretação da Bíblia.

De igual forma na Alta Idade Média, as bibliotecas foram transferidas para mosteiros e conventos. Aí, em húmidos scriptoria, os manuscritos eram conservados, copiados, cristãmente interpolados (o que passava por tradução à época) e ilustrados. Uma colecção de 200 volumes, criteriosamente escolhidos e censurados de acordo com a doutrina agostiniana, era considerada uma grande biblioteca. Alexandria no seu apogeu possuía 700 000 volumes…

3 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Pios avanços na terapêutica do cancro

João Paulo II, aquele papa supersticioso, que acreditava em milagres e na bondade do Opus Dei, está a caminho da beatificação com um feito ocorrido em França.

Segundo a Agência Ecclesia, uma Irmã religiosa, vítima de cancro, obteve a cura sem explicação científica.

Este milagre vem a calhar para a carreira de santidade de JP2 pela qual zelam os meios mais conservadores da ICAR. O milagre foi adjudicado ao cadáver do Papa polaco.

Curiosamente já o santo Escrivá começou a corrida para a santidade com um milagre na mesma especialidade numa freira cuja madre superiora lhe desconhecia a doença. Em vida tinha sido um biltre ao serviço da ditadura de Franco e dos negócios da fé.

JP2 fez numerosos milagres em vida: recusou extraditar o bispo Marcinkus para prestar contas à justiça italiana na falência do Banco Ambrosiano, abafou o escândalo do assassinato do chefe da Guarda pontifícia; ocultou os motivos da morte de João Paulo I que pretendia investigar as contas do IOR (Banco do Vaticano) e que, para castigo, Deus só o deixou ser Papa 33 dias.

Já em vida, convencido de que tinha procuração divina para administrar os negócios de Cristo & Herdeiros, JP2 fazia curas com as mãos. Esses milagres não contam porque só os defuntos podem conviver com Deus. É o tráfico de influências entre cadáveres.

2 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

A lei que colocou os crucifixos

aqui referi que a tradição de haver um crucifixo em cada sala de aula das escolas públicas portuguesa foi inventada pelo salazarismo (todas as tradições foram inventadas, umas há mais tempo, outras há menos; todos os dias nascem e morrem tradições). Como afirmei, a lei em causa foi aprovada na Assembleia Nacional em 11 de Fevereiro de 1936. Quem quiser pode agora consultar a Lei nº1:941, de 11 de Abril de 1936, em pdf.

A lei intitula-se «Remodelação do Ministério da Instrução Pública» (que doravante passou a chamar-se Ministério da Educação Nacional) e reza assim, na sua Base XIII:

«Em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição.
O crucifixo será adquirido e colocado pela forma que o Governo, pelo Ministério da Educação Nacional, determinar.»

Conclui-se, ainda, que a ICAR nada tem que ver com este assunto: estamos a falar de uma decisão legislativa e política. Acrescento que se trata da mesma Lei que reorganiza o ensino e os programas, implementa o livro único, institui a doutrinação ideológica dos professores do ensino público, e estabelece que «será dada à mocidade portuguesa uma organização nacional e pré-militar». Vem assinada por «António Óscar de Fragoso Carmona – António de Oliveira Salazar – António Faria Carneiro Pacheco». Quem quiser repetir o argumento da tradição, depois não se admire se alguém lhe chamar fascista…
2 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Dois anos de Diário Ateísta

O aniversário do Diário Ateísta serviu para vómitos de raiva beata bolsados nos mais execráveis antros da blogosfera.

Devotos que gostariam de fazer do crucifixo material de construção ou, no mínimo, substituir com ele o papel de parede, destilaram ódio, insultaram os autores do Diário Ateísta e ameaçaram com agressões físicas.

As santas alimárias não se deram conta de que ressuscitaram o espírito das cruzadas e expuseram o desvelo inquisitorial que lhes vai no íntimo.

Quero crer que tenha sido uma remessa de hóstias estragadas, com o prazo de validade excedido, que lhes avariou o fígado depois de perderem os neurónios com a embriaguez mística.

As autoridades de saúde deviam tomar precauções relativamente à «sagrada espécie», exigir análises bacteriológicas e obrigar à certificação com o código de barras.

Não podemos deixar que os poucos católicos fundamentalistas se envenenem com um placebo que designam como «alimento da alma». Fazem falta à diversidade zoológica.

1 de Dezembro, 2005 pfontela

Bom senso europeu

A União Europeia emitiu um comunicado onde desautorizou completamente toda a política americana de prevenção à SIDA. Pela primeira vez a Europa afirma com todas as letras que os programas de abstinência promovidos pela administração de Bush não são eficazes e que devem ser rejeitados pelas nações que desejam proteger os seus cidadãos.

Neste momento a União Europeia considera como prioridades o uso do preservativo (absolutamente fulcral), educação sexual e cuidados de saúde reprodutiva. Considera-se ainda como extremamente preocupante a ressurgência de mensagens enganadoras e sem validade empírica no que toca à prevenção do VIH. Uma óbvia referência aos programas americanos. Convém referir que dois terços da ajuda americana neste campo são usados exclusivamente para a promoção da abstinência. Trata-se acima de tudo da promoção de um modelo religioso sobre a capa de ajuda humanitária.

Vale a pena citar as palavras da secretária europeia para o desenvolvimento internacional, Hillary Benn :

«… não acredito que as pessoas devam morrer porque têm sexo.»

E tudo vai bater nesse ponto, neste momento a política humanitária americana está a ser comandada por um dogma religioso (é a própria ONU a afirmá-lo) e está a causar estragos incríveis nas zonas mais afectadas pela doença ao cortar os fundos para os meios eficazes (leia-se – preservativo).

Felizmente que e União Europeia se dissociou claramente do programa de evangelização norte americano, que haja pelo menos uma voz forte e sensata na comunidade internacional.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo – O legado árabe

A destruição pelos árabes de uma biblioteca da dimensão da de Alexandria parece pouco plausível se considerarmos que a civilização árabe recriou em Bagdad o ambiente académico de Alexandria, criando infraestruturas apropriadas à livre, cosmopolita e multi-religiosa difusão e desenvolvimento de conhecimento. Aliás, era então praxis muçulmana tolerar as culturas e religiões dos povos conquistados e, ao invés de a aniquilar, os muçulmanos assimilaram a cultura, nomeadamente científica, que encontraram nas regiões conquistadas.

Assim, nos primórdios da civilização árabe (identificada com islâmica) a esmagadora maioria dos matemáticos e sábios «árabes» praticavam outras religiões e escreviam numa língua diferente do árabe. Por exemplo, quando a Arménia foi conquistada cerca de 640 já o geógrafo e matemático Anania de Shirak teria escrito, em arménio, o seu livro sobre aritmética.

Só em 762 o árabe passou a ser a língua oficial de todo o império islâmico pela mão do califa abássida al-Mansur (754-775) que transferiu a capital para a recém-criada Bagdad. Tanto al-Mansur como os califas subsquentes, especialmente o califa Harun ar-Rasid (786-809), promoveram o desenvolvimento das ciências da natureza. No califado deste último Bagdad comecou a ser transformada no epicentro da difusão de conhecimento com a criação de uma importante biblioteca, contendo diversos manuscritos provenientes, entre outros, do império Bizantino. Nessa altura numerosos sábios e tradutores, professando religiões sortidas, e vindos de diversas regiões não apenas do império árabe, reuniam-se em Bagdad, que substituiu Alexandria como centro de saber.

O filho de ar-Rasid, o califa al-Mamum, fundou uma espécie de academia, Bayt al-Hikma, a Casa da Sabedoria, em cujas funções se incluia a tradução de textos diversos, especialmente gregos e indianos, e que dispunha de um muito bem equipado observatório astronómico

Assim, aquilo a que chamamos matemática árabe não o é de facto mas sim matemática escrita em árabe. Os algarismos ditos árabes correspondem à numeração indiana cuja primeira referência (excluindo o zero) fora da Índia, cerca de 662, se deve a Severus Seboht, originário de Nisibis, Mesopotâmia, que para além de versar sobre matemática escreveu, a partir de fontes gregas, babilónicas e sânscritas, obras de astronomia, de geografia e um tratado sobre o astrolábio.

Mas a Casa da Sabedoria produziu obras originais fundamentais como o primeiro tratado de álgebra (de al-jabr, que significa restauração), Hisab al-jabr w’al-muqabala, da autoria de um dos primeiros matemáticos da Casa da Sabedoria, Abu Abdullah Mohammed ben Musa al-Khwarizmi de que existem várias traduções em latim datadas do século XII. Aliás, o termo algoritmo deriva de uma corrupção latina do nome do matemático, inscrita numa obra do século XIII, sem título, que se encontra na Biblioteca da Universidade de Cambridge, que se inicia com as palavras Dixit Algorismi, ou Algorismi (al-Khwarizmi) disse. Poderia citar inúmeros matemáticos brilhantes fruto da Casa da Sabedoria. Mas relembrarei apenas Jemshid Al-Kashi, que propôs a resolução de equações cúbicas por iteração, métodos trigonométricos e também pelo método conhecido hoje como «método de Horner». Este método tem uma forte influência chinesa, indicando que a matemática chinesa da dinastia Sung foi assimilada no mundo islâmico.

Para além da matemática, a medicina e a astronomia eram as ciências em destaque na Casa da Sabedoria. O famoso Muhammad Ibrahim al-Fazari redigiu a sua primeira obra de astronomia, intitulada as-Sindhind al-kabir, a partir da tradução do livro sânscrito Brahmagupta. A medicina era uma ciência nobre a tal ponto que o kahim-bashi, o médico chefe, era um dignitário com poderes na corte do califa muito semelhantes aos de um primeiro-ministro. Aliás, as bases para a revolução intelectual no Ocidente situam-se na Espanha do século XII, à época ainda um importante centro da ciência árabe, e os seus principais mentores, o cordobês Averrois e Avicena, cujo Canon de Medicina foi traduzido para o latim no final do século XII e foi estudado nas universidades europeias até o século XVII, são ambos, para além de filósofos, médicos reconhecidos.

Assim, devemos à civilização árabe, tolerante e sem conflitos de autoridade com a ciência, a manutenção e recuperação de todo o saber de outra forma perdido em orgias de fé cristã, guardado em numerosas bibliotecas na forma de preciosos manuscritos gregos, traduções em árabe para além de livros da ciência árabe. Bibliotecas acessíveis a todos, vulgar cidadão, professor ou estudante. Cada cidade tinha a sua própria biblioteca onde todos podiam consultar os livros ou mesmo requisitá-los. A biblioteca de Córdoba, fundada em 965, constituiu a terceira biblioteca do mundo islâmico. E foi a semente para a recuperação da ciência proscrita e para o despertar da Europa das longas trevas intelectuais impostas pelo cristianismo.

Os árabes tiveram pois um papel inestimável na história da ciência, já que traduziram, fielmente e sem interpolações, os clássicos gregos (Apolónio, Arquimedes, Euclides, Pitágoras, Ptolomeu e outros). Estes clássicos estariam perdidos sem os árabes, não só devido ao encerramento da escola de Atenas, último reduto do paganismo, pelo imperador romano do Oriente Justiniano (483-565) cujo lema era «Um Estado, uma Lei, uma Igreja» e por conseguinte foi um feroz perseguidor de judeus, pagãos e hereges, como também à posterior destruição das obras consideradas heréticas de alguns destes pensadores.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois mil anos de obscurantismo – os primeiros anos

Alguns dos nossos leitores insurgiram-se contra os termos em que o Carlos assinalou a passagem do 2º aniversário do Diário Ateísta e que dá título a este primeiro post devotado ao tema.

Devemos desculpas a esses leitores: na realidade não foram dois milénios de obscurantismo, nem sequer 1700 anos, desde que Constantino criou o catolicismo tal como o conhecemos hoje, numa tentativa de manter a unidade do Império Romano. Talvez possamos fazer coincidir o despoletar do obscurantismo com o início da Idade Média, situada por muitos historiadores em 395, data da morte de Teodósio, o Grande, imperador do Ocidente e do Oriente, que uns anos antes reconheceu o cristianismo como religião oficial do Império Romano e baniu os templos pagãos.

Na minha opinião, devemos traçar o declínio intelectual ocidental e o início da longa «noite de mil anos» cristã ao Natal de 800, data em que Leão III coroou o rei franco Carlos Magno como imperador do Sacro Império Romano, investindo-o da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. O Sacro Império Romano durou mil anos até declinar em 1806 e a coroação de Carlos Magno marcou a data em que o papado se tornou o principal centro de poder espiritual e temporal da Idade Média. E alargou a toda a Europa o obscurantismo cristão vigente desde o início da Idade Média e até aí confinado às zonas de influência directa dos fanáticos cristãos.

Podemos dividir as causas desse obscurantismo em razões biológicas, que serão abordadas num próximo post, e razões a que chamarei socio-culturais. Na realidade a divisão é apenas de conveniência explicativa uma vez que ambas estão intimamente interligadas.

Começando então pelas causas socio-culturais que basicamente se podem resumir ao estrangulamento da difusão do saber e à censura dos (poucos) textos científicos preservados em território cristão. E passo a explicar porque atribuo ao cristianismo o estrangulamento na difusão do saber que grassou na Europa e foi depois exportado para os territórios colonizados pelas potências europeias, Portugal incluído, com uma análise do que se passava no pré-cristianismo e nos territórios não sujeitos à influência nefasta deste.

A difusão e preservação do saber, nomeadamente na forma de bibliotecas, era uma prática corrente na Antiguidade. Existem inúmeros vestígios desta difusão na Pérsia, Ásia Menor, etc. mas especialmente na Mesopotâmia e no Egipto. Na Mesopotâmia, mais concretamente na Babilónia, centro da dinastia Amorita (2100-1600 a.C.) e capital no reinado de Hamurabi (1792-1750 a.C.) esses vestígios assumem a forma de placas de argila inscritas com registos de matemática e economia. Existem ainda placas que parecem conter colecções de exercícios que o mestre distribuía aos seus alunos e pequenas placas que parecem ser a solução de problemas anotados pelos alunos.

Sabemos também que o rei assírio Assurbanipal (668-631 a.C.), criou uma biblioteca, uma das mais antigas de que há registo, no seu palácio da capital da Assíria, Nínive, que continha mais de 10 000 placas de argila.

Os vestígios da difusão do saber na forma de incipientes bibliotecas no Antigo Egipto são menos evidentes já que os egípcios utilizavam papiro, menos resistente à passagem do tempo. De qualquer forma existem inscrições em diversos templos que indicam a existência de bibiotecas e de bibliotecários que as mantinham (dois dos quais enterrados com pompa em Tebas).

As primeiras grandes bibliotecas surgiram em Atenas, nomeadamente a fundada por Pisístrato em 540 a.C. e, especialmente importante, a biblioteca escolar do Liceu de Aristóteles, considerada por muitos como a mais importante antes da biblioteca de Alexandria.

Sem dúvida que Alexandria é o paradigma da difusão do saber com o seu Museu (um instituto de pesquisa em medicina e ciências naturais) e a Biblioteca que, segundo a História, resulta da migração para o Egipto do conceito grego de cultura, universal e cosmopolita, introduzido por Alexandre o Grande (que fundou Alexandria) e continuado pelo primeiro faraó macedónio da dinastia ptolomaica, Ptolomeu I. Demétrio de Phaleron circa 297 a. C. não precisou de grandes dotes de eloquência para convencer Ptolomeu I a fundar em Alexandria algo similar à Academia de Platão ou ao Liceu de Aristóteles da sua nativa Atenas, de que foi governador entre 317 e 307 a.C. .

Carl Sagan, que dedicou algumas páginas a Alexandria e à sua biblioteca no seu livro «Cosmos», escreveu: «Sabemos, por exemplo, que nas prateleiras da biblioteca existiu um livro do astrónomo Aristarco de Samos, defensor de que a Terra era apenas um planeta que, tal como os outros, girava em torno do Sol e que as estrelas estavam a distâncias enormes. Cada uma destas conclusões é inteiramente correcta mas tivemos de esperar quase 2000 anos pela sua redescoberta. Se multiplicarmos por 100 000 a perda deste livro de Aristarco, poderemos fazer uma ideia da grandiosidade da civilização clássica e da tragédia que representou a sua destruição.»

Não obstante as tentativas de revisionismo histórico por parte dos cristãos, actualmente a atribuição da destruição da biblioteca de Alexandria ao general árabe Amrou Ben Al-As, que conquistou o Egipto em 642, está em descrédito sabendo-se hoje que se verificaram uma série de destruições nos finais do século IV perpetradas pelo zelo fanático dos cristãos contra as instituições e os símbolos da cultura pagã. Aliás, o bárbaro assassínio da brilhante matemática Hipatia no início do século V pelos devotos seguidores de São Cirilo indica ser o fervor cristão a causa mais provável da destruição deste repositório do saber da Antiguidade, considerado herético pelos cristãos.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Os vagabundos do limbo

Uma excelente notícia para todos os ateístas que, como foi a minha experiência com as minhas filhas, especialmente a mais velha que teve graves problemas de saúde em bébé, vão deixar de ser perseguidos por fervorosos cristãos sob o pretexto de que estão a condenar os respectivos filhos às profundas do inferno (ou do limbo, para os poucos que distinguem entre os conceitos) se não os baptizarem.

De facto, séculos de grandes efabulações teológicas sobre o destino dos «justos» não baptizados vão ser em breve apagados das páginas da doutrina católica. Assim, mais uma verdade «absoluta» da Igreja de Roma está prestes a ser abandonada (ia escrever vítima do relativismo moderno mas certamente que a uma emanação de Roma o termo não se aplica). Estou a falar do limbo, mais propriamente limbos, um conceito aplicado teologicamente a (sic)

(1) lugar temporário ou estado das almas dos justos (mortos antes da crucificação do mítico fundador da religião) que, apesar de livres de «pecados», estão «excluídos da visão beatífica até a ascensão triunfante de Cristo ao Céu» (o limbus patrum) ou

(2) lugar ou estado permanente daquelas crianças não baptizadas e de outros que, morrendo sem algum pecado pessoal grave, são excluídos da visão beatífica por causa do pecado original (o limbus infantium).

A comissão teológica internacional da Igreja de Roma começou ontem uma reunião devotada ao tema cujo desfecho prevísivel será a abolição do limbo da colecção de sofismas doutrina católica. De facto, o actual Papa já deu indicações enquanto Ratzinger que considera o limbo apenas «uma hipótese teológica» (que ele não sustenta) e, porque o limbo é actualmente uma questão delicada neste ponto, afirmou mesmo que «Está ligado à causa do pecado original mas muitos bébés morrem porque são vítimas».

Reforçando que o que está em causa é o destino no «além» das crianças não baptizadas, que o relativismo dos tempos modernos impede aceitar ser condenação a um limbo quasi eterno por uma mera falta de aspersão aquosa, o Cardeal Georges Cottier, teólogo da Casa Pontifical, afirmou ontem ao italiano La Stampa: «Nós necessitamos considerar e levar em conta que muitas crianças morrem vítimas dos males modernos – fome no mundo, e muitos males provenientes das enormes desordem social e miséria, sem falar nos frutos de abortos e coisas semelhantes».

De facto, mais de seis milhões de crianças morrem anualmente de fome em países subdesenvovidos, exactamente os mesmos (e únicos) países onde a Igreja vê aumentar os seus rebanhos. E a Igreja está preocupada que o conceito do limbo não impressione favoravelmente potenciais clientes, especialmente se considerarmos que entre a concorrência, nomeadamente a islâmica, tal condenação não existe. Aliás, para o islamismo todas as crianças que morrem vão direitinhas ao céu sem precisarem qualquer teste.

A teoria dos limbos tornou-se doutrina comum a partir de Anselmo de Cantuária (início do século XII), ratificada por Inocêncio III (1160-1216) que disse que os que morreram «apenas» com o pecado original a manchar as suas almas não sofrerão «outra pena, seja fogo material ou do verme da consciência, excepto a dor de ser privado para sempre da visão de Deus» (Corp. Juris, Decret. l. III, tit. xlii, c. iii – Majores). Como não poderia deixar de ser, o primeiro a elaborar o que aconteceria aos bébés não baptizados foi Agostinho de Hipona, que os considerava condenados aos fogos eternos do Inferno. Lucubrações retomadas e suavizadas por Tomás de Aquino que afirmava não sofrerem estes inocentes alguma dor da perda da visão divina ou «aflição interior», nihil omnino dolebunt de carentia visionis divinae, dando assim a volta ao dogma de condenação eterna dos não baptizados, justificado pela resposta a Nicodemos do mítico fundador da religião descrito em João 3, 5: «Em verdade, em verdade Eu te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus».

Considerando as inúmeras «almas» que, de acordo com os ensinamentos da Igreja ainda em vigor, habitam o tal limbo (povoado, entre outros, por incontáveis óvulos fertilizados, embriões e fetos não nascidos) questiono-me qual será o destino que a Igreja de Roma dará a estes vagabundos dos limbos. E qual o sofisma com que resolverão a contradição dogmática que a falta de limbo irá introduzir, já que, supostamente, todo o ser morto sem a graça do baptismo está condenado para a eternidade. Para não falar na desculpa que será necessário arranjar para justificar o proselitismo e a evangelização (supostamente indispensáveis para salvar as «almas», mesmo justas, desta condenação eterna).

Claro que seria utópico esperar que ao abolir o limbo a Igreja Católica abolisse igualmente a intolerância que a caracteriza, mas pelo menos deixa de existir justificação para a imposição do catolicismo desde o berço. E menos uma razão para a guerra das cruzetas em que a Igreja Católica, que se acha acima da lei dos homens, transformou o mero cumprimento da lei máxima nacional.

1 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

E deus criou o mundo

O Diário Ateísta agradece as inúmeras manifestações de solidariedade e felicitações que numerosos amigos lhe fizeram chegar por ocasião do 2.º aniversário.
Aos que nos ameaçam e insultam agradecemos igualmente o ódio cristão com que nos distinguem.