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Mensagem ao 1.º Encontro Nacional de Ateus – Coimbra

A religião não é um mal necessário nem Deus uma desgraça inevitável. A origem divina do poder está a dar lugar à soberania popular e a fé vai deixando de ser obrigatória, apesar dos que vêem na progressiva secularização uma ameaça. São muitos os parasitas da fé que se batem, com a ferocidade de que só os clérigos são capazes, contra o livre pensamento, mas este está a ganhar terreno, um pouco por todo o mundo.

Há um delito comum às 3 religiões do livro e suas numerosas seitas – o proselitismo. Cada uma pretende impor o único deus verdadeiro – o seu – e a vontade divina decifrada por funcionários de serviço. Todas aspiram à globalização, exigindo o exclusivo. Odeiam a concorrência e todos os que recusam tornar-se consumidores. Todas actuam como fontes de violência devoradas pela vocação totalitária.

Nem os hindus resistem, de vez em quando, a queimar mesquitas. Até os budistas são capazes de se entusiasmarem com a repressão, como acontece no Sri Lanka sobre os Tamiles. Não há definitivamente religiões boas.

Sabe-se como o proselitismo converte as diferenças em divergências e como procura resolvê-las. A fé é cega e irracional. A história da evangelização é um rio de sangue que desagua num mar de horrores. Por isso a laicidade se tornou uma exigência em nome da tolerância, uma garantia de liberdade para todas e cada uma das religiões.

A laicidade é desconhecida no mundo árabe, tolerada nos EUA e na Europa e não consolidada em Portugal. A contestação tem sempre subjacente o combate a outra religião ou à ausência de uma.

A tragédia dos países árabes está menos na religião que professam do que na natureza não secular do Estado. O ódio inclemente dos seus clérigos ao laicismo e a arrogância moral exacerbam-se com o declínio económico e cultural. A brutalidade agrava-se nas culturas em risco de extinção. A evolução jurídica, política e social está aí refém do poder eclesiástico e dos versículos do livro sagrado. O vendaval de horrores que varre o Médio Oriente é uma catástrofe brutal, com a violência da guerra a alastrar. Enquanto este estado de coisas persistir a paz é impossível e os mais elementares direitos do homem serão postergados.

O obscurantismo islâmico remete-nos para a Idade Média mas o proselitismo não está erradicado da cultura judaico-cristã.

O maior inimigo dos judeus é o sionismo que debita a Tora com o mesmo desvario místico com que os mullahs recitam o Alcorão. Os judeus ortodoxos não ameaçam apenas a Palestina, são um perigo para a paz e para a natureza democrática do Estado de Israel.

Nos EUA chegou à presidência um crente exaltado que conduz a política externa do país mais poderoso do mundo com desvarios metodistas, apesar da separação constitucional da Igreja e do Estado. No antigo bloco soviético anda à solta o cristianismo ortodoxo. O Vaticano faz a ponte entre o estalinismo e o concílio de Trento, com um exército de sotainas espalhado pelo mundo e tropas especiais do Opus Dei a actuar sub-repticiamente à escala mundial contra a natureza secular das instituições democráticas e a laicidade do Estado.

Sabe-se como na Irlanda a Santíssima Trindade – nódoa caída no preâmbulo da Constituição – retardou as transformações legais, a mesma que sob o nome de «Santíssima, consubstancial e indivisível Trindade» se arroga a origem do poder na Grécia.

No Reino Unido a chefia da Igreja é hereditária e vitalícia com a vantagem de ninguém perguntar à rainha se acredita em Deus nem esta ter poder para o impor. Na Polónia a Constituição, embora se compadeça com os não crentes, refere «os que acreditam em Deus como fonte da verdade, da justiça, do bem e da beleza» à semelhança do seu emigrante mais conhecido e menos recomendável – JP2.

A Itália e a França são países de laicidade sem subterfúgios certamente lembrados da intolerância e do sofrimento que o catolicismo, na ânsia de salvar almas, levou aos cidadãos.

É na herança humanista da Revolução Francesa que assentam o laicismo e a democracia. Por isso tantos se afadigam tanto a denegrir o jacobinismo como se este não fosse a vacina que permite conter os vários «ismos» religiosos que se digladiam e a via para responder à onda de provocações que os crucifixos e os véus se esforçam por atiçar.

A Europa não pode esquecer que o capricho papal de uma Croácia católica pesou no desmembramento da Jugoslávia, que a Polónia exporta religião e padres de acordo com a obsessão paranóica do Vaticano, que nos países da América latina o combate à SIDA, à explosão demográfica, ao aborto clandestino e às ditaduras tem esbarrado na resistência do clero. E, quando um país se enche de religião, esvazia-se a liberdade.

Na Irlanda do Norte, ainda há poucos anos, os actos de terrorismo repetiam-se com monótona regularidade entre protestantes e católicos numa interminável espiral de violência. O IRA deixava a sua macabra assinatura em explosões de proselitismo e engenhos enquanto protestantes promoviam procissões de provocação e acção de graças.

Não foi a sensatez que repentinamente os atingiu, foi o desenvolvimento cultural e económico, a morte da sociedade rural e a anemia da fé que lentamente os foi conduzindo para um relacionamento civilizado embora com risco de recidiva. Aos que sempre encontram desculpas para defender Deus nunca faltam razões para atacar outros homens.

A intolerável fatwa que condenou à morte Salmon Rushdi não foi execrada pelo papa, que não manifestou solidariedade para com o escritor perseguido pela demência mística do Islão. No fundo pensa que as ofensas a Deus, mesmo ao dos outros, justificam a condenação.

E não nos iludamos com os passos de reconciliação que as religiões promovem. Não passam de tréguas. A alegada intenção ecuménica de JP2 não foi mais do que uma tentativa canhestra de formar uma holding internacional sob a hegemonia da ICAR, sem liberdade para agnósticos, ateus e todos aqueles que lutam contra o obscurantismo e o fanatismo.

A violência é uma característica intrínseca das religiões que logo transformam em crueldade. Só o laicismo e a secularização conseguem aplacar-lhes os ímpetos e garantir o pluralismo a que têm dificuldade em acomodar-se. Temos de ser tão firmes na sua defesa como são obstinados os devotos.

Os ateus portugueses comparam a Constituição de 1933, do «país tradicionalmente católico», com a actual, omissa em referências religiosas. A experiência demonstrou que a referência confessional se opunha à liberdade.

Mais importante que os mandamentos da lei de deus é a declaração universal dos direitos do homem. Mais honrosa que a virgindade de Maria é a dignidade da mulher. Mais justos que Deus são os homens na sua progressiva marcha para a eliminação de qualquer forma de discriminação.

O ateísmo não manda queimar livros nem pessoas. Não proíbe. Não condena. Mas não renuncia ao combate pela liberdade.

É por isso que aqui estamos. Foi para isso que nos encontrámos.

Vale mais o primeiro almoço do que a última ceia.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2003

Carlos Esperança