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Categoria: Laicidade

6 de Julho, 2007 Ricardo Alves

No final do primeiro mandato da Comissão da Liberdade Religiosa

A Associação República e Laicidade enviou uma carta ao Ministro da Justiça onde faz o balanço do primeiro mandato de actividade da Comissão da Liberdade Religiosa (CLR). A carta destaca que a comissão que agora termina o seu mandato (nomeada por Celeste Cardona em Fevereiro de 2004) não espelhou a diversidade existente em matéria religiosa em Portugal, tendo sido deliberadamente excluídas da sua composição quer os defensores da laicidade do Estado, quer pessoas sem religião. Esta limitação traduziu-se num empobrecimento das perspectivas representadas na comissão, que foi particularmente visível nos colóquios promovidos, onde jamais foi convidado alguém que defendesse a laicidade do Estado ou uma pessoa que não tivesse religião. Efectivamente, e apesar de Portugal ser teoricamente um Estado laico, esta comissão estatal preferiu convidar oradores abertamente anti-laicistas (como Bacelar Gouveia, que foi ao ponto de confundir laicidade do Estado com ateísmo de Estado). Estive presente no primeiro colóquio promovido pela Comissão, e perguntei porque tinham sido convidados apenas oradores que descreviam os sistemas de relações entre Estado e igrejas na Alemanha, no Reino Unido ou na Espanha, e porque não era dada atenção aos sistemas mais laicistas da França ou dos EUA. Foi-me respondido taxativamente que essas perspectivas «não interessavam».

No entanto, a liberdade mais fundamental é a liberdade de consciência, que inclui a liberdade religiosa como um caso particular, mas que inclui também a liberdade de não ter religião e a liberdade de criticar a religião. Por querer restringir-se a pessoas e entidades religiosas, a CLR acabou por ver passar-lhe ao lado os debates mais importantes que neste período agitaram a sociedade portuguesa, nomeadamente sobre religião e violência, sobre a questão dos crucifixos ou sobre o protocolo de Estado. No período final, a CLR entrou em roda livre, com sugestões do seu presidente de «levar a religião às universidades», e com a proposta, no segundo colóquio, de uma disciplina obrigatória de religião. Note-se que qualquer uma destas propostas, se adoptada, afectaria os cidadãos sem religião ou sem prática religiosa (que constituem, registe-se, a maioria da população portuguesa).

A Comissão da Liberdade Religiosa, criada pela Lei da Liberdade Religiosa (2001), é formada por um presidente nomeado pelo Conselho de Ministros, três representantes das comunidades religiosas «radicadas» nomeados pelo Ministro da Justiça, «cinco pessoas de reconhecida competência científica» nomeadas pelo Ministro da Justiça, e dois membros directamente nomeados pela ICAR (que é a única confissão religiosa a que a Lei da Liberdade Religiosa não se aplica). Este arranjo é criticado pela Associação República e Laicidade num documento cuja leitura recomendo.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]
29 de Junho, 2007 Ricardo Alves

Os efeitos civis dos casamentos religiosos e as desigualdades entre comunidades religiosas

No Boina Frígia, o Pedro Delgado Alves escreve sobre os efeitos civis dos casamentos religiosos, ontem regulamentados pelo Governo.

  • «O que a alteração legislativa vem permitir é tratar em igualdade todas as confissões, acabando com o estatuto privilegiado de determinados ministros de culto, cujas cerimónias adquiriam efeitos civis automáticos.»

Ao contrário do Pedro Delgado Alves, parece-me evidente que se está a tratar de forma não igualitária as diferentes confissões religiosas nesta matéria, pois a Concordata de 2004 prevê várias especificidades para o casamento católico que não serão reconhecidas a outras confissões religiosas: os casamentos «in articulo mortis, em iminência de parto, ou cuja imediata celebração seja expressamente autorizada pelo ordinário próprio por grave motivo de ordem moral» (§3 do artigo 13); a não exigência de que o ministro do culto católico seja português ou tenha autorização de residência em Portugal (enquanto tal exigência é feita para os ministros do culto não católicos no §1 do artigo 19º da Lei da Liberdade Religiosa); a condução do processo burocrático pelas autoridades eclesiásticas católicas no caso do casamento católico, e pelo conservador do registo civil no caso das outras comunidades religiosas (comparar os artigos 13 e 14 da Concordata com o artigo 19º da Lei da Liberdade Religiosa); os efeitos civis da nulidade canónica (artigo 16 da Concordata); finalmente, os conselhos moralistas do artigo 15 da Concordata, exarados para nossa vergonha num Tratado internacional ratificado pela República portuguesa. Acrescente-se que, se houvesse qualquer preocupação com a igualdade entre confissões religiosas, a faculdade de celebrar casamentos com efeitos civis seria conferida a todas as comunidades religiosas reconhecidas, e não apenas às comunidades religiosas radicadas. O próprio conceito de «comunidade religiosa radicada» é uma quase perversidade instaurada pela Lei da Liberdade Religiosa, que restringe este nível de reconhecimento estatal às confissões religiosas toleradas pelo Estado Novo (esse caso exemplar de laicidade), e que sejam devidamente aprovadas por uma Comissão de Liberdade Religiosa de que fazem parte elementos directamente nomeados por uma certa e determinada confissão religiosa.

Como é evidente, partilho com o cidadão Pedro Delgado Alves a preferência pelo «modelo de tipo francês em que não há reconhecimentos automáticos de coisa alguma – quem quer ter efeitos civis do casamento casa civilmente perante uma autoridade pública, podendo, se quiser, casar de acordo com os ritos da sua fé, antes ou depois, mas sem reconhecimento de efeitos pelo Estado». Acontece que desde a Lei nº16/2001, dita da «Liberdade Religiosa», que o caminho seguido parece ser o do reconhecimento estatal de todas as peculiaridades religiosas, e da institucionalização das desigualdades entre comunidades religiosas.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

26 de Junho, 2007 Ricardo Alves

A religião não é um serviço público

Um simpático capelão hospitalar, de visita ao Diário Ateísta como todos os seus colegas (não deve haver padre português com acesso à internet que não comece o seu dia lendo o Diário Ateísta…) deixou-nos o seguinte testemunho:
  • «Sr. Carlos Esperança, (…) um capelão ganha pelo índice 311 da carreira administrativa a que equivalem 1016,19 euros». (Ver a caixa de comentários deste artigo.)

Façamos as contas: (125 capelães hospitalares)X(14 meses por ano)X(1016,19 euros)=1 778 332,5 euros. Portanto, 1,8 milhões de euros, em números redondos, é quanto custam ao Estado os capelães hospitalares, todos católicos, que andam pelos hospitais a propagandear a sua religião, e mesmo a incomodar quem não quer nada com a religião deles.

Como se afirma numa carta recentemente enviada pela Associação República e Laicidade ao Ministério da Saúde, «porque a assistência religiosa constitui um “serviço” directamente prestado pelas confissões religiosas aos seus crentes e não ao Estado, não faz qualquer sentido que seja o Estado a remunerar os ministros do culto que prestam essa assistência espiritual, ainda que o façam em hospitais públicos». Efectivamente, a religião não é um serviço público, e o Estado não tem qualquer obrigação de salariar sacerdotes desta ou daquela igreja. Não havendo voluntários suficientes, os próprios crentes poderiam organizar-se para pagar esse serviço. Será isto assim tão difícil de compreender, senhores capelães?

15 de Junho, 2007 Ricardo Alves

Mais um Estado islâmico?

Nas últimas horas, o Hamas tomou o controlo da Faixa de Gaza, derrotando militarmente o que restava, nesse território, da Fatah, um movimento que, apesar dos seus imensos defeitos, é laico.

O Hamas é a secção palestiniana da Irmandade Muçulmana, uma espécie de «Internacional Islamista» com braços em quase todos os países do Magrebe e do Médio Oriente e da qual têm saído movimentos exclusivamente terroristas como a Al-Qaida. Pretende instaurar um Estado islâmico na Faixa de Gaza, com a «Lei Islâmica» e as maravilhas habituais.

Na Europa, olha-se para a guerra civil palestiniana como um efeito colateral do conflito israelo-palestiniano. E no entanto, os acontecimentos na Faixa de Gaza traduzem o conflito fundamental do mundo muçulmano actual, entre laicos e islamistas. Seria melhor abandonar as dicotomias e alinhamentos herdados da guerra fria e olhar para o que está a acontecer dessa forma. Eu estou com as forças democráticas e laicas da Palestina (se as houver).

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

7 de Maio, 2007 Ricardo Alves

A cadeira desaparecida e outras coisas mais sérias

Um leitor atento do Diário Ateísta apontou-nos uma pérola no Correio da Manhã de ontem: no hospital D. Estefânia (Lisboa) há quem se queixe do desaparecimento de duas camas, lençóis, cobertores e batas que teriam sido usados por uma rapariga infeliz há mais de oitenta anos. Mais: até desapareceu «a cadeira que Jacinta sinalizou como “o sítio onde Nossa Senhora se sentava quando a ia visitar ao hospital”». Os nossos leitores especulam que a cadeira desaparecida poderá ter ascendido ao «céu», desafiando as leis da gravidade, um processo físico que, com todo o respeito pelas crenças gerais e particulares de quem crê, me parece de realização difícil sem foguetões, mesmo aceitando que o «céu» do catolicismo seja algures na estratosfera. Mas adiante…

Fetichização dos objectos usados ou tocados por pessoas «santas» à parte, não faz qualquer sentido que um hospital público seja transformado numa espécie de museu do culto católico, ou da sub-variedade «catolicismo fatimista» (um sub-culto que parece ter ganho vida própria). Eu não tenho o direito de espalhar pelas paredes dos hospitais cartazes com os dizeres «Deus não existe», «Fátima é aldrabice» ou «Jacinta foi manipulada pelo clero». Não tenho esse direito e não quero tê-lo, embora seja verdade que o «Deus» do catolicismo não existe e que a aldrabice fatimista é uma mentira vergonhosa.

As intenções do capelão católico do hospital são cristalinas: «porque “os santos são do sítio onde morrem e não do sítio onde nascem”, o capelão defende que “Jacinta é a grande Santa de Lisboa”. Por isso, assume que “a Igreja tem a intenção de transformar o hospital num espaço sagrado”. “Um santuário com área museológica”, diz. “Há projecto e inspiração, falta juntar a vontade dos governantes.”». Um hospital público é um espaço de todos, e não pode estar ao serviço do proselitismo religioso, como não pode estar ao serviço da propaganda política. O senhor capelão católico, como todos os capelães católicos dos hospitais públicos, recebe um salário do Estado (facto que tem merecido críticas, mesmo dentro de redutos clericais como a Comissão de Liberdade Religiosa). Para nossa vergonha, usa-o para promover a religião dele e do sub-culto fatimista dentro de um espaço do Estado. Laicidade?

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]
2 de Maio, 2007 Ricardo Alves

«O que é a laicidade?»

Foi acrescentado recentemente no sítio da Associação República e Laicidade um texto sobre a laicidade, traduzido da Association Suisse pour la Laïcité: «O que é a laicidade?».
  1. «O que é a Laicidade?
    A Laicidade é a forma institucional que toma nas sociedades democráticas a relação política entre o cidadão e o Estado, e entre os próprios cidadãos. No início, onde esse princípio foi aplicado, a Laicidade permitiu instaurar a separação da sociedade civil e das religiões, não exercendo o Estado qualquer poder religioso e as igrejas qualquer poder político.
    Para garantir simultâneamente a liberdade de todos e a liberdade de cada um, a Laicidade distingue e separa o domínio público, onde se exerce a cidadania, e o domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção) e onde coexistem as diferenças (biológicas, sociais, culturais). Pertencendo a todos, o espaço público é indivísivel: nenhum cidadão ou grupo de cidadãos deve impôr as suas convicções aos outros. Simétricamente, o Estado laico proíbe-se de intervir nas formas de organização colectivas (partidos, igrejas, associações etc.) às quais qualquer cidadão pode aderir e que relevam do direito privado.
    A Laicidade garante a todo o indivíduo o direito de adoptar uma convicção, de mudar de convicção, e de não adoptar nenhuma.
    A Laicidade do Estado não é portanto uma convicção entre outras, mas a condição primeira da coexistência entre todas as convicções no espaço público.
    (…)
  2. A Laicidade é anti-religiosa?
    De modo algum. Pode ser-se crente e laico, como se pode ser socialista ou liberal e democrata. A Laicidade não é irreligião: ela oferece mesmo a melhor protecção às confissões minoritárias, pois nenhum grupo social pode ser discriminado.
    (…)
  3. A Laicidade é anticlerical?
    Por princípio, a Laicidade garante a liberdade de crença e de culto dentro dos limites das leis comuns e da ordem pública. Entretanto, a Laicidade opõe-se ao clericalismo logo que este preconiza discriminações ou tenta apropriar-se da totalidade ou de uma parte do espaço público.
    (…)»

(Ler na íntegra.)

2 de Maio, 2007 Helder Sanches

Números do Ateísmo


Neste estudo internacional sobre a percentagem de crentes e não crentes em cada país, Portugal encontra-se num assustador 43º lugar, com números muito semelhantes aos Estados Unidos e atrás de todos os seus parceiros europeus.

Mais importante do que entender as causas para tais resultados – embora também seja importante – é ganharmos consciência de que vivemos num dos países mais conservadores da Europa no que respeita à importância do papel que a religião desempenha na nossa sociedade. É por isso urgente provocar e espicaçar a sociedade de modo a contribuir para a alteração desta realidade.

Embora eu não seja um defensor da “evangelização ateísta”, a desmistificação da fé através da promoção da ciência e da divulgação do ideal secular deverá ganhar novos impulsos e perder a vergonha de ir à luta contra a ignorância e o ridículo.

A oposição clara a qualquer infracção à laicidade do Estado não é suficiente. Muitos aspectos da nossa vida não estão dependentes do Estado. Em cada um de nós, na nossa família, no nosso grupo de amigos, nos nossos colegas de trabalho, há sempre algo mais que pode ser feito. Fazer nada é contribuir para que também nesta matéria nos mantenhamos na tão familiar cauda da Europa.

(Diário Ateísta / Penso, logo, sou ateu)

30 de Abril, 2007 Ricardo Alves

Um milhão de pessoas manifestam-se pelo laicismo

Só há um Estado europeu onde as manifestações pelo laicismo chegam a ter um milhão de pessoas: é a Turquia. (Como se diz no renas e veados: «Nunca se viu nada assim em Varsóvia»…)

Por muita perplexidade que me suscite o dilema entre «islamismo por via eleitoral» e «laicismo militarista», estou de vísceras e neurónios com a multidão que gritou «a Turquia é laica e continuará a ser» e «Nem charia, nem golpe de Estado, viva a Turquia independente». Fossem todos os europeus assim…
23 de Abril, 2007 Ricardo Alves

Candidatos à presidência da França: laicidade?

  1. Ségolène Royal: em 1989, achava que os desenhos animados violentos e os «manga» eram um problema mais grave do que o véu islâmico; em 2004, em plena campanha laicista por uma lei contra os símbolos religiosos ostensivos na escola pública, não encontrou nada melhor para fazer do que pronunciar-se contra o «fio dental», que achava um «atentado à dignidade das mulheres» (mesmo assim, votou a favor da lei sobre os símbolos religiosos ostensivos, seguindo a esmagadora maioria do seu partido, o PSF). Esta puritana acha que também se deve «reflectir» sobre espaços separados para rapazes e raparigas nas escolas públicas, nomeadamente nas aulas de educação sexual (e nas piscinas municipais). Manteve-se em silêncio durante a crise dos cartunes. O partido a que pertence, o PSF, é dos partidos de governo mais laicistas da Europa. Sugestão para slogan de campanha: «antes a burca do que o biquini!».
  2. Nicolas Sarkozy: quer rever a centenária lei de separação entre o Estado e os cultos; gostaria, particularmente, que o Estado pudesse financiar a construção de mesquitas. À maneira de Napoleão, que fez uma Concordata com a ICAR para melhor a controlar, Sarkozy acredita que o Estado deve colaborar com os integristas. Nesse espírito, foi o Ministro do Interior responsável pela criação do «Conselho Francês do Culto Muçulmano», onde se integraram várias organizações próximas da Irmandade Muçulmana. Defensor coerente do multiculturalismo de Estado, é a favor da discriminação positiva para os cidadãos de minorias religiosas. Escolheu Christine Boutin, uma «próxima» do Opus Dei anti-IVG, homófoba e fundamentalista para sua conselheira política. Sugestão para slogan de campanha: «o bom islamista é o islamista subsidiado pelo Estado!».

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

23 de Abril, 2007 Ricardo Alves

Dia Nacional de quê?

Embora os EUA sejam, formal e institucionalmente, um Estado mais laico do que a França, não deixa de ser verdade que os seus políticos encontram-se entre os que mais ostentam a sua religiosidade, demonstrando um proselitismo que em qualquer país europeu a oeste da Polónia seria considerado exótico. O exemplo mais recente: George W. Bush acaba de convocar um «Dia Nacional de Oração». Isso mesmo: o presidente dos EUA pede aos seus concidadãos para agradecerem as liberdades de que gozam ao seu amigo imaginário favorito. Através de pensamentos. Há gente mesmo muito estranha neste planeta.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]