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Carlos Esperança

11 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

A Virgem Maria

Virgem Maria, farta das companhias e do Céu, onde subiu em corpo e alma, aborrecida do silêncio e da disciplina, cansada de quase vinte séculos de ociosidade e virtude, esgueira-se às vezes pela porta das traseiras e desce à Terra.

Traz a ladainha do costume, a promoção do terço de que é mensageira e ameaças aos inocentes. Poisa em árvores de pequeno porte, sobe aos montes de altitude moderada e atreve-se em grutas, pouco recomendáveis para a virgindade e o reumatismo, sempre com o objectivo de promover a fé e os bons costumes, de abominar o comunismo e anatematizar os pecados do mundo.

A receita é sempre a mesma: rezar, rezar muito, rezar sempre, que, enquanto se reza não se peca. Não ajuda a humanidade mas beneficia o destino da alma e faz a profilaxia das perpétuas penas que aos infiéis estão reservadas no Inferno.

Surpreende que, sendo tão vasto o mundo, a Virgem Maria só conheça os caminhos dos seus devotos e abandone os que adoram um Deus errado e odeiam o seu divino filho que veio ao mundo para salvar toda a gente.

Fica-se pela Europa, em zonas não contaminadas pela Reforma, aventura-se na América Latina, eventualmente visita a África e nunca mais voltou a Nazaré e àqueles sítios onde suportou os maus humores do seu divino filho e as desconfianças do marido. Ficando-lhe as viagens de graça, por não precisar de combustível, não se percebe que não volte aos sítios da infância, não vá em peregrinação ao Gólgota, não deambule pela Palestina e advirta aqueles chalados de que o bruto e ignorante Maomé é uma desgraça que se espalhou pela zona como outrora a peste, que a única e clara verdade é o mistério da Santíssima Trindade.

Por ter hora marcada ou para não se deixar seduzir pelas tentações do mundo, a virgem Maria regressa ao Céu, depois de exibir uns truques e arengar uns conselhos, sem dar tempo a que alguém de são juízo a interrogue, lhe pergunte pela saúde do marido e do menino e lhe mande beijos para os anjos e abraços aos bem-aventurados que estão no céu.

Um dia a Virgem Maria, com mais tempo e autonomia de voo, encontra um ateu e fica à conversa. Há-de arrepender-se dos sustos que prega, das mentiras que divulga e chegar à conclusão de que o terço faz mal às pessoas, estimula o ódio às outras religiões e agrava as tendinites aos fregueses.

10 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Notas piedosas

Espanha – Fernado Sebastian, arcebispo de Pamplona e secretário da Conferência episcopal, afirmou: «Se nos calamos e deixamos que se vá normalizando isso [ a convivência entre homossexuais] (…) é possível que nos encontremos dentro em pouco com uma verdadeira epidemia de homossexualidade, fonte de problemas psicológicos e frustrações dolorosas».

O que temerá o arcebispo, a epidemia ou o contágio?

Obras Consagradas – Eis uma pequena lista com as artes e ofícios praticados:

– Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitalares da Imaculada Conceição

– Cúria Geral dos Frades Menores Capuchinhos

– Escravas do Sagrado Coração de Jesus (A.C.I.)

– Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus

– Irmãs Reparadoras do Sagrado Coração de Jesus

– Monjas Carmelitas Descalças da Ordem da Virgem Maria

– Religiosas reparadoras de Nossa Senhora das Dores de Fátima

Recursos humanos – «D. Joaquim Gonçalves, bispo de Vila real, ordena mais um presbítero e dois diáconos. A ordenação de um novo Padre e de mais dois Diáconos foi motivo de grande festa na Diocese de Vila Real.

O neo-presbítero, Iolando Pinto Pereira, natural do Pópulo, concelho de Alijó, foi ordenado pelo bispo diocesano, D. Joaquim Gonçalves, no Domingo passado, dia 19 de Dezembro. Ler mais…»

In Mensageiro de Bragança, 10-01-05

A mão de obra qualificada é escassa.

10 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Domingo – dia do Senhor

Contra a abertura do comércio ao domingo, marchar, marchar…

O Movimento pelo Encerramento do Comércio ao Domingo, onde se destaca o pio Bagão Félix, de frouxa sensibilidade social e exacerbada devoção religiosa, consegue o apoio dos sindicatos e do patronato. Não me seduz a cassete neoliberal em voga, mas irrita-me a obstinação da ICAR em apropriar-se do domingo e atribuir-se outros dias, que crismou de santos e equiparou a feriados nacionais.

Se o dogma é um insulto à inteligência mas uma vitória para a fé, se agride a razão mas purifica a alma, se fecha os caminhos difíceis da ciência mas abre as largas avenidas da salvação, é difícil haver quem o enjeite, mas a Câmara Municipal do Porto prepara-se para pecar. Parafraseando o Eça, cabe à Vereação, moderadamente jejuada, razoavelmente confessada e melhor comungada, pronunciar-se piedosamente sobre o horário do comércio.

O Governo privatizou as seguradoras e os bancos; condescendeu com a liberalização dos combustíveis e da energia; as comunicações e os cimentos entregou-os aos privados, mas chamou a si o horário das mercearias. Nos mares, nas estradas e nos ares circula a iniciativa privada mas respeita-se, na compra do sabão amarelo, o horário das repartições. Não tem horário a gasolina mas têm hora marcada a posta de pescada e o quilo de feijão carrapato.

Andou bem o Governo, há anos, em proibir às grandes superfícies a abertura de portas ao Domingo. Preferiu a santa missa à venda dos legumes; dificultou a aquisição de frescos mas facilitou a divulgação das homilias; alguns bacalhaus ficaram por vender mas promoveu-se a eucaristia, com hóstias sem código de barras, nem prazo de validade, guardadas sem rede de frio nem inspecção sanitária. Folgam as caixas registadoras aos Domingos mas agitam-se as bandejas nas santas missas.

Contrariamente ao que era de esperar, não houve, porém, festa nas sacristias, não rejubilou o episcopado, não aconteceu um lausperene. Nem uma missa de acção de graças. Nem uma novena. Provavelmente algum padre-nosso rezado na clandestinidade ou uma ave-maria balbuciada por uma beata enquanto resistia à tentação da carne e ao assédio do marido. A própria Conferência Episcopal desistiu da pastoral da mercearia.

E vem agora a Câmara Municipal do Porto com um regulamento sobre horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais na cidade, capaz de os encher ao Domingo, enquanto à luz mortiça das velas um padre boceja uma homilia para meia dúzia de resignados devotos.

9 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Religiões e ditaduras

Conheci bem a conivência da Igreja católica com as ditaduras ibéricas. Ainda me recordo dos apelos feitos nas missas para que Deus protegesse os «nossos» governantes, lhes desse longa vida e iluminasse a inteligência, sendo certo que Deus foi sensível aos primeiros pedidos e completamente surdo ao último. De Salazar ouvi a vários padres que a Providência o tinha designado para governar Portugal. Creio que nasceu aí o meu desprezo por Deus e a desconfiança nos seus padres. Mas até o cardeal Cerejeira avisou Salazar desse desígnio providencial, de que teria conhecimento pelas confidências da senhora de Fátima à Irmã Lúcia. E escreveu-o com o mesmo despudor com que João Paulo II confirmou ao mundo que a beata Alexandrina de Balazar passou mais de uma década sem comer, nem beber, em anúria, a alimentar-se apenas de hóstias consagradas.

Em Espanha o caudilho era idolatrado pelo clero e muitas missas de acção de graças foram celebradas em sua honra, agradecendo ao Senhor a encomenda. Mons. Escrivá de Balaguer, já na altura bastante íntimo do divino, incensava o generalíssimo e combatia os seus adversários. Foi um apóstolo denodado do franquismo na região de Burgos, primeiro, e um pouco por toda a parte, depois. Como compensação levou para o túmulo o truque para fazer milagres e rapidamente chegar a santo.

Pio IX excomungava os que defendiam a separação entre a Igreja e o Estado. Pio XI declarou numa missa grandiosa em honra do «Duce», que ascendeu ao poder com o apoio activo da ICAR: «Moussolini é um homem que a Providência Divina nos enviou». Na sequência do atentado falhado de que foi alvo pelo jovem Anteo Zamboni, militante da Liga ateísta, com 15 anos de idade, este foi preso no local e linchado por fascistas. O Vaticano fez difundir nas igrejas e escolas uma imagem piedosa mostrando a morte do jovem Zamboni, «joguete do Diabo, inimigo da fé, punido pela mão de Deus».

A simpatia de Deus pelos ditadores comprometeu-lhe o prestígio e afastou-lhe a clientela quando as democracias se popularizaram. Exceptuando o comunismo em que Staline (um ex-seminarista que quase chegou a padre) se entregou a uma demência sanguinária, as ditaduras tiveram quase sempre o apoio militante e entusiástico do clero, da Europa à América latina, com grande destaque para a ICAR. Pinochet ainda hoje é um devoto da missa e desenvolveu pela eucaristia uma síndroma de habituação e dependência. Nos países árabes, onde o livro sagrado é de cumprimento obrigatório, sabe-se como a tolerância e a liberdade ofendem Alá, irritam o seu profeta e obrigam o clero a proceder em conformidade.

Penso, no entanto, que é menos a fé do que a volúpia do poder que atira o clero para relações promíscuas com o Estado. A sedução por regimes autoritários é o corolário lógico da verdade única, do ser supremo, do respeito pela hierarquia, da obediência cega. A submissão e a obediência são apresentadas como virtudes e estimuladas pelos guardiões da fé. Quando o poder vem de Deus instala-se o poder discricionário e a violência institucionaliza-se. Quando o sufrágio universal e secreto se conquista, Deus reduz-se à sua insignificância e os homens tornam-se livres.

8 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Os crentes e a tolerância

O aparecimento de crentes tolerantes vai-se tornando uma constante a que urge estar atento. É um fenómeno das sociedades democráticas onde a secularização exerce a sua pedagogia. A religião não faz ninguém bom, mas não estraga todos por igual. Os livros sagrados reflectem a violência da época e a idiossincrasia de quem os escreveu, mas são poucos os crentes que os lêem e menos os que os levam a sério.

A verdade revelada dos quatro livros escolhidos no consulado de Constantino teve mais a ver com os interesses do império romano do que com as necessidades espirituais do Imperador. Esses livros, evangelhos, reflectiam interesses políticos que se tornaram determinantes para a organização política da ICAR e a conquista do poder temporal que logrou. Outro tanto aconteceu com a Tora, primeiro, e o Alcorão, depois.

Curiosamente, ainda hoje a ICAR vai buscar aos evangelhos que ela própria declarou apócrifos factos e personagens a que atribui valor canónico. É o caso de Ana e Joaquim, acoimados de santos e distribuídos a Jesus, como avós maternos cuja vida e respectiva existência os «verdadeiros» omitem.

Exceptuando épocas de crise em que o sentido literal da Tora, Bíblia e Alcorão são objecto de um proselitismo infrene, a tendência vai no sentido da relativização dos textos e o cumprimento da vontade de Deus aligeira-se como se o próprio, suspeito de Alzheimer, começasse a merecer desconfiança.

Com crentes tolerantes e civilizados é possível alargar os espaços democráticos no planeta e levar o respeito pelos direitos humanos a regiões onde são desconhecidos. Seria trágico que, por questões de assepsia, os ateus recusassem dar as mãos aos crentes de qualquer credo que sobreponham o espírito da paz à paranóia do proselitismo. Basta, para desgraça, que a inversa se verifique.

Infelizmente, à medida que a instrução, a diversidade cultural, o pluralismo e a miscigenação vão aproximando povos e criando laços fraternais entre eles, recrudesce no seio do clero das diversas religiões o pânico pela perda do poder, o horror à extinção, a volúpia da supremacia e a obsessão pelo absolutismo e a verdade única.

O clero tem reflexos tribais que urge conter com a difusão e aprofundamento da laicidade e tendências prosélitas que a separação da Igreja e do Estado minoram. A vocação totalitária, que a sociedade civil deve refrear, precisa de uma vacina que permita a vitória da paz, da liberdade e do livre-pensamento. A vacina existe – chama-se laicidade -, e interessa a ateus, crentes e agnósticos.

7 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

A fé tem cura

«Por um lado, as pessoas que vão à missa no Domingo [na diocese de Lisboa] são cerca de 13%. Por outro, [de acordo com uma sondagem] 33% declaram-se católicos praticantes.»

«O número dos praticantes [em Portugal] é dos mais significativos do Ocidente.»


(Declarações do Patriarca Policarpo, em entrevista à Visão, 06-01-04)

Na ICAR a fé diminui mas o poder aumenta.
6 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Momento de lucidez

«Isto leva-me a duvidar da existência de Deus»

(ROWAN WILLIAMS, arcebispo de Cantuária, sobre a catástrofe nos países do Índico, Visão, 06-01-04)


5 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Mártires da ICAR

As Igrejas pelam-se por mártires. Os santos têm baixa cotação e poucas se dedicam à criação e exploração. A ICAR entrou na era industrial com JP2, um caso de superstição obsessiva e doentia fixação em cadáveres, a quem atribui virtudes passadas e poderes perenes. Para fabricar um santo basta inventar dois milagres e cobrar os pesados emolumentos do processo canónico. Para produzir mártires urge encontrar algozes adequados à transformação das vítimas em mito.

Os mártires podem ser dementes que procuram o Paraíso ou infelizes que estão à hora certa no lugar errado com parasitas de Deus à espera de explorarem a desgraça. Os suicidas islâmicos estão no primeiro caso, os missionários que caíram entre canibais fazem parte do segundo. Estes, em vez de serem amados pela eucaristia que levavam eram apreciados por si próprios, como manjar divino, em ávida antropofagia.

O nacionalismo e a fé andam de mãos dadas. A vontade divina coincide muitas vezes com a do príncipe e este é habitualmente um agente predestinado. A glória terrena facilita-lhe a bem-aventurança eterna. A rainha Santa Isabel fez aquele milagre das rosas, um milagre de que uma tia avó, húngara, certamente lhe enviara a receita para Aragão. Além do nome, herdou-lhe, com o truque, a santidade.

Nuno Álvares Pereira andou aí, depois de muitas humilhações nas provas para santo, a ser ultrapassado pelas bentinha de Balasar, os pastorinhos de Fátima e outros pios cadáveres com milagres comprovados e devoções firmadas. Faltou-lhe o martírio que infligiu aos castelhanos e a coragem da Cúria Romana para enfrentar Espanha. Agora que já poucos acreditam em milagres encomendaram-lhe um para dinamizarem a estatuária e colocarem nas igrejas uma peanha mais.

Destinados à santidade, o Vaticano, bairro que também usa a alcunha de Santa Sé, acaba de publicar a lista dos empregados mártires em 2004: 12 sacerdotes, 1 missionário, 1 religiosa e 3 leigos. As mortes são de lamentar mas o seu aproveitamento para fins de propaganda é uma macabra operação de marketing de que a ICAR se aproveita. O Cardeal Crescenzio Sepe, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, recorda este «generoso tributo de sangue de muitos irmãos e irmãs para o crescimento da Igreja no mundo».

Morrer ao serviço de Deus é garantir o Paraíso – prometem os padres com a mesma convicção com que na praça nos garantem a excelência da hortaliça e no talho a saúde do animal de que nos cortam os bifes.

4 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

O Diário Ateísta e os seus críticos

Face ao artigo «Ainda a respeito do Diário Ateísta» de Filipe Alves, publicado na Terra da Alegria, blogue que integra o segmento da Teosfera do DA, dado que me refere expressamente repetidas vezes, apraz-me esclarecer e comentar algumas afirmações, de forma sucinta:

1 – O nome, Carlos Esperança, corresponde efectivamente ao «blogger» cuja foto, idade e morada aparecem clicando no nome que se encontra na lista de colaboradores do DA e é o mesmo que deu a entrevista à Agência Lusa sobre a criação da Associação Ateísta Portuguesa de que é activista.

2 – O Diário Ateísta (DA) existe baseado na liberdade de expressão, direito recente em Portugal, aparecido há 30 anos sobre os escombros de uma ditadura cuja longevidade a cumplicidade da ICAR prolongou. Convém referir que o ensino da religião católica era obrigatório nas escolas do Estado e a sua prática severamente exigida e fiscalizada pelos Directores das Escolas do Magistério aos futuros professores.

3 – Na opinião de Filipe Alves, o DA integra pessoas «moderadas e bem educadas», donde parece excluir-me, mas, na sua diversidade, o DA não inclui ninguém que não aceite a «Declaração Universal dos Direitos Humanos», frequentemente postergada por todas as religiões, como um conjunto de princípios que é dever observar.

4 – Não tenho legitimidade para falar em nome do DA, mas, na qualidade de ateu praticante e militante, garanto que me empenho para que os homens e mulheres de todo o mundo possam abraçar qualquer religião, tenham a permissão de mudar e o direito de não professarem qualquer uma.

5 – A violência que atribuo às religiões baseia-se na perseguição e penas infligidas aos que as abandonam ou que as não praticam de acordo com a vontade do clero. A apostasia e a blasfémia são «crimes» exclusivamente de natureza religiosa que todos os credos se esforçam por criminalizar e que só a vitória da laicidade subtraiu ao braço da lei. Mas, de violência, estão a Tora, a Bíblia e o Alcorão cheios.

6 – Não pretendo «converter» ninguém ao ateísmo. O proselitismo é uma tara exclusiva da evangelização a que as religiões se dedicam. Chegam ao ponto de baptizar crianças recém-nascidas sem o mínimo respeito pela autodeterminação religiosa das pessoas, entrando em concorrência pela hegemonia, sem hesitarem no recurso à guerra. Não falo da Idade Média, falo do milénio que há pouco começou, da Europa, do catolicismo, do islão, do protestantismo e da Igreja Ortodoxa.

7 – Dizer que não há publicações católicas fundamentalistas é ignorar centenas de publicações paroquiais que pululam pelo país e cuja leitura faz corar de vergonha qualquer crente urbano ou alfabetizado. Falo de publicações actuais e não no diário «Novidades», órgão do patriarcado de Lisboa que desapareceu após o 25 de Abril. Podia ainda referir as posições do poderoso cardeal Joseph Ratzinger da cúria romana.

8 – Reconheço que também há crentes tolerantes mas, apesar da linguagem vigorosa que uso, fui incapaz de referir às autoridades democráticas o padre da Covilhã que em 1961 me denunciou à PIDE e era incapaz de ficar indiferente à prisão ou ao assassinato de um crente. Ao contrário, a Igreja portuguesa silenciou crimes desses, cometidos durante a ditadura, com a excepção honrosa de um único bispo, António Ferreira Gomes, que pagou com o exílio a honradez.

9 – A tolerância existe mais nas atitudes do que nas palavras. Pode considerar-se tolerante uma igreja que exige uma concordata que reserva para si privilégios que nega às outras religiões? Que pretende servir-se das escolas públicas para se promover? Que reservou direitos para a sua Universidade que nenhuma outra, particular, possui?

10 – Acerca de Deus, sobre quem os crentes fazem recair a suspeita de ter criado o mundo, não há o mais leve indício da sua existência nem o mais insignificante esforço da sua parte para provar que, depois disso, tenha feito o que quer que seja. Assim, não é possível provar a sua não existência mas cabe-lhe a ele fazer prova de vida.

Correcção – «A religião quer-se como o sal na comida, nem de mais nem de menos» são palavras de António Alves Martins, bispo de Viseu no reinado de D. Luís, palavras frequentemente apagadas da sua estátua, durante a ditadura salazarista, e de novo repostas clandestinamente por anónimos. Para mim, a religião está como o sal para os hipertensos – a mais pequena dose é prejudicial, mas o bispo acreditava em Deus. Ninguém é perfeito.

3 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

No Sri Lanka só a fé ficou incólume

Há catástrofes cuja dimensão semeia a desolação e o pânico. A dor extrema conduz à inacção ou ao desespero. Não há meio termo. A revolta, a angústia e o medo espalham-se no ar que cheira a morte e transporta pesadelos sombrios.

A televisão mostra-nos milhares de cadáveres juncando o chão, mortos que urge remover depressa para evitar que as epidemias lhes juntem outros. A morte, na sua obscena dimensão, deixa de interessar. São os vivos, espoliados de tudo, sem família, sem abrigo, sem água potável, sem alimentos, sem presente nem futuro, corpos desnudados, fantasmas vagueando sem destino, a respirar o ar que cheira a morte, são esses vivos a quem a tragédia bateu à porta que esperam solidariedade e a rapidez do nosso apoio.

As praias do Índico, que há dias regurgitavam de vida num ambiente idílico, são hoje cemitérios que rodeiam um continente mais pobre, desesperado e lúgubre. Mas sempre que o cheiro dos cadáveres se adensa logo as aves de repina se aproximam.

No Sri-Lanka, onde a agitação da terra e a fúria do mar se conjugaram para arrasar um país e dizimar a população, estátuas de Buda, de cimento e gesso, sobraram intactas, quando, à sua volta, tudo ficou destruído. Até um templo resistiu ileso.

Tanto bastou para que a tragédia fosse confiscada em benefício da religião. «As pessoas não vivem de acordo com as virtudes religiosas. Por isso, a natureza dá-lhes alguns castigos porque não seguem o caminho de Buda. As pessoas têm de aprender a lição», diz Sumana, um monge budista. – lê-se no «Público» de hoje. Não foi apenas o templo e alguns budas que resistiram ilesos – a crueldade, a ignorância e a chantagem reforçaram os alicerces.

No Sri-Lanka, como no resto do mundo, os abutres estão sedentos de carne putrefacta. A morte é o alimento predilecto das religiões e o medo o argumento para a conversão e submissão ao poder do clero. Perante a sinistra interpretação eclesiástica só a erradicação do fantasma de Deus pode fazer algo pela libertação da humanidade.

Apostila – Uma menina inglesa, de dez anos, com os conhecimentos científicos adquiridos na aula de geografia, apercebeu-se da iminência da catástrofe e conseguiu que uma centena de pessoas fugisse da praia. Salvou mais gente a sabedoria de uma criança do que a fé de todos os adultos.