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  • 30 de Setembro, 2009
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Memórias achadas (Crónica)

A certeza do encontro não atenuou o pasmo da chegada e a emoção da despedida num dia de Agosto que começou tarde demais e depressa se findou.

Aquele olhar carregava quatro décadas e meia de separação. Quem pensa que a ausência é esquecimento? É a memória fechada no baú do tempo e a separação um laço forte em estado de gravidez sem previsão de termo.

Saiu-lhe da carteira um artigo de jornal com uma foto, dobrada e tão puída, que logo se desfez por entre os dedos como um vestido de seda preso nos espinhos de um silvado.

Quando dobrou de novo o papel, pelos vincos rasgados, ele afastou o olhar para ocultar o efeito atordoador da surpresa, naquela forma natural, com tanta gente a ver, capaz de reacender as brasas da paixão que o tempo não apagou.

Tantos anos livre de quem não a mereceu e, agora, feliz, num reencontro afectuoso, braços abertos ao abraço que já não pode prendê-la, face oferecida aos lábios sequiosos, a depor um beijo terno de quem esqueceu ou já perdoou. Há vinte anos tinha havido um encontro, breve e alegre, de quem esquecera o rosto até recordar a suavidade da voz e o brilho do olhar, sobressalto aquietado pela constante interrupção do diálogo por uma multidão de convivas. Agora era diferente, não esteve na origem uma efeméride ou um desses acasos que surgem nas andanças da vida. Foi um encontro planeado, com desejo mútuo a torná-lo possível e a prolongá-lo com o pretexto de festejos populares. A vida é feita de acertos e desacertos, de enganos e ilusões, da ambição de agarrarmos quem estremecemos e do receio de nos prendermos a quem perdemos.

Na ditadura tudo era negado, éramos só nós tudo o que tínhamos, e nada ousávamos por ser proibido. Desse tempo, dessa saudade, ficou o remorso de não termos arriscado, o desalento de não crermos no futuro, a vergonha de termos sentido medo e a raiva de não o termos vencido. Do mundo que poderíamos ter construído restam a derrota, as feridas e as dúvidas sobre o futuro que seria. Não é possível voltar atrás e reiniciar, como se a vida pudesse repetir-se ou a mesma água do rio banhasse de novo o leito.

A vida não é o que olhámos, é o que vimos, o que lembramos, os silêncios resignados, respostas por achar para a rendição sem glória. Quem um dia desiste de lutar nunca mais sai vitorioso, ficou inacabado o voo de quem fechou as asas. Que importa a renúncia por amor ou o silêncio por devoção? O que não se diz no tempo certo não se repete depois. O Sol não surge com o crepúsculo embora a claridade nos faça sonhar com a madrugada que desperdiçámos.

Somam-se acasos e frases incompletas, sons que chegam sem liberdade, guardados por cumplicidades e disfarçados em pretextos. Sonhar é um direito que resiste ao tempo e à vontade, quimera que se inventa para afagar o coração e disfarçar o remorso.
Um dia, o telefone toca. Chega a voz esperada na véspera e ansiada na manhã seguinte, voz que acompanha a carruagem que se afasta a cento e trinta quilómetros por hora, tão tarde, para impedir o embarque, tão breve, com tanto para dizer, e tão triste, com o som a perturbar os sentidos e a dilacerar a memória. Que raio de sorte a do viajante que não pode inverter a marcha do comboio que o aprisiona, que desolação para quem deixou fugir o bálsamo para a ferida que não sarou.

O amor é um sentimento que resiste ao tempo e ao bom senso, capaz de comprometer o recato e a tranquilidade, roleta russa que compele ao disparo, com jogadores dispostos a morrer por se sentirem a sangrar por dentro e a esvair. O remorso, esse, é o espinho cravado na memória ferida.

Sabemos que amámos quando nos despedimos sem partir ou, partindo, ficamos presos. E quando, caminhando sem rumo, tropeçamos na memória.