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Evolução: Por toda a parte

É comum, e errado, pensar a evolução como progredindo para um fim. A sequência do peixe que se transforma em anfíbio, réptil, mamífero e finalmente em homem sugere que o peixe já planeava unhas e cabelo. Mas a evolução é mais como um balde de berlindes despejado contra a parede. Em retrospectiva, cada encontrão e ressalto parece ter servido para pôr aquele berlinde exactamente ali. Mas ia parecer o mesmo qualquer que fosse o sítio ou o berlinde. O filme de cada berlinde faz parecer que havia um plano a seguir mas a visão do conjunto desengana-nos.

Assim, podemos distinguir dois problemas. Um é compreender as nossas origens sabendo já que existimos. É traçar, em retrospectiva, o trajecto que o berlinde percorreu. A física e a teoria da evolução explicam o que levou aquele berlinde ou aquela espécie a estar ali e a ser como é. Bem diferente é ponderar o que temos de especial para que a evolução conspirasse criar-nos. Esse é um falso problema. É como perguntar o que tem o berlinde azul de especial para que todos os outros o empurrassem exactamente para onde calhou. Nada. Se repetíssemos a experiência nem aquele berlinde ia parar ali nem nós seriamos como somos.

Isto não reduz a física e a teoria da evolução à narrativa do passado. A curto prazo podemos prever com detalhe as trajectórias dos berlindes ou as variações das características nas populações. O que faz a incerteza eventualmente dominar as estimativas é a complexidade dos sistemas, não a natureza das teorias. E há aspectos previsíveis mesmo a longo prazo. Podemos prever aproximadamente a distribuição dos berlindes pela sala em função da altura a que despejamos o balde, da espessura da alcatifa ou dos obstáculos que há no chão. E como olhos, pernas, asas e mandíbulas evoluíram independentemente várias vezes, podemos prever que se repetíssemos a evolução da vida na Terra, essas características iriam surgir de novo*.

Outro falso problema é haver seres vivos cada vez mais complexos. A vida surgiu com microorganismos simples que se juntaram em organismos multicelulares e eventualmente deram florestas, baleias e nós. Parece que uma tendência misteriosa os empurrou para a complexidade. Mas a tendência, tal como nos berlindes que se espalham pela sala, é apenas que a vida se espalhe pelas configurações que se reproduzem com sucesso. E a vida também começou contra a parede, encostada ao mínimo de complexidade abaixo do qual não é possível competir como ser vivo. Dali só havia um lado para onde se espalhar. De qualquer forma, ainda hoje quase todos os seres vivos são bactérias. Salvo raras excepções, a vida continua encostada à parede.

A evolução não conduz a vida a um destino ordenado. Espalha-a caoticamente por todos os cantos e feitios em que esta prolifere, revelando que, contrariamente ao que se acreditou durante muito tempo, o universo não foi feito a pensar em nós. E isto incomoda alguns. Como ao berlinde que desse graças pela posição privilegiada que supunha merecer, também a muita gente incomoda saber que somos o que nos calhou pelo entornar do balde. Além disso, a evolução não é só algo que aconteceu. Está a acontecer. Os berlindes espalham-se com o balanço da queda e param em pouco tempo, mas a evolução é empurrada pela energia de uma estrela com cinco mil milhões de anos pela frente.

Por isto, a teoria da evolução é incompatível com um propósito inteligente para a nossa origem. Alguns tentam conciliar a teoria da evolução com um plano divino propondo que a evolução foi apenas o mecanismo que o criador escolheu para nos criar, mas isto não faz sentido. Estamos a meio do processo e não é coisa a que recorra quem sabe o que quer e como o obter. Para pôr o berlinde azul exactamente naquele canto não se despeja o balde do outro lado da sala. A evolução, como método de criação inteligente, só faria sentido se o criador não soubesse bem o que queria e pusesse tudo a mexer a ver se dava alguma coisa interessante.

Mas o pior em tentar conciliar a teoria da evolução com uma criação inteligente é não perceber uma parte importante do que a teoria nos diz. Que não é preciso inteligência nem propósito para a vida surgir, evoluir e tornar-se inteligente. Basta herança com modificação e tempo para que, mais cedo ou mais tarde, a vida se espalhe o suficiente para encontrar um canto de onde possa compreender a sua origem.

* Assumindo que já havia triploblastos (quase todos os animais excepto alguns como alforrecas, esponjas e corais). A evolução é mais complexa que um balde de berlindes, e pode ter sido uma grande sorte terem surgido certas coisas como eucariontes e embriões com três camadas.

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