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O pulmão natural.

Os dirigentes da Igreja Católica têm estado a decidir se a Idade Média já acabou. O assunto pode parecer simples para quem está de fora mas, como o Espírito Santo diz umas coisas ao Papa e outras aos bispos, a decisão está complicada. Entretanto, alguns comentadores católicos por cá já chegaram à sua verdade revelada. Admito que aquilo que João César das Neves pensa acerca do casamento e do divórcio é entre ele a a sua esposa, e o que Gonçalo Portocarrero de Almada pensa é só com ele. Mas achei piada aos argumentos que apresentam para fazer de conta que não defendem um disparate.

Neves argumenta que o divórcio é inadmissível com uma analogia entre o cônjuge e o pulmão. «Tenho problemas respiratórios desde pequeno, com asma, bronquites, etc. Viver com os meus pulmões não é nada fácil, mas nunca me passou pela cabeça andar sem eles.» Foi «pelas mesmas razões» que não lhe ocorreu divorciar-se (1). É uma analogia estranha mas reveladora da noção que Neves tem do casamento. Eu não trocaria os meus pulmões porque, com a medicina que temos hoje, isso teria consequências desagradáveis. Mas se, quando eu tiver sessenta anos, a medicina permitir trocar de pulmões com a mesma facilidade com que se tira um apêndice, não verei problema ético nenhum em trocar os meus pulmões de sessenta anos por uns de vinte. Trocar assim de cônjuge já não seria um acto moralmente neutro. Mas, ao contrário do que Neves defende, isto não tem nada que ver com preservarmos «aquele corpo a que pertencemos desde que nascemos». Não se trata de um dever de permanecer juntos só porque calhou estar juntos. Tem que ver com o cônjuge ser uma pessoa e não um apêndice.

À primeira vista, isto pode parecer dar ainda mais razão à tese de Neves por ser pior trocar de cônjuge do que de pulmões. Mas o dever de ter consideração pelo cônjuge pode tornar o divórcio numa obrigação moral se a relação não for aquela que ambos merecem. A tese de Neves revela um problema comum a muitas religiões: descurar o facto de que, mesmo quando fazem parte de famílias, comunidades ou cultos, as pessoas continuam a ser indivíduos. Não passam a ser órgãos.

Gonçalo Portocarrero de Almada tenta chegar ao mesmo sítio por outra via. Invoca que «O matrimónio cristão [é] o casamento natural elevado à condição de sacramento» e que, por ser natural, «essa união só pode ser estabelecida entre uma mulher e um varão e deve durar enquanto os dois cônjuges forem vivos.»(2). Concordo que o casamento é algo natural na nossa espécie. A nossa espécie é, apesar do que por vezes parece, especialmente inteligente, e temos muito a ganhar por viver em grupos mistos de adultos e crianças. No entanto, as nossas crias precisam da atenção de ambos os progenitores, o que exige que os machos saibam quais são as suas crias. A dificuldade de combinar a vida em grupo com o investimento paternal e evitar que os machos matem as crias dos outros obrigou a nossa espécie a criar rituais e normas de comportamento que permitissem este tipo de colaboração. O casamento é um dos mecanismos resultantes desta pressão.

Mas se há algo natural na nossa espécie é a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. É por isso falso que o casamento tenha de ser entre “uma mulher e um varão” e durar a vida toda. Todas as culturas têm formas de divórcio e quantos casam com quem e com quantos depende das condições em que vivem. Culturas nas quais os homens arriscam frequentemente a vida em confrontos para capturar recursos tendem a favorecer a poliginia. Habitar em regiões mais pobres pode favorecer a poliandria, com uma mulher tipicamente casando com dois irmãos, o que lhe permite reunir os recursos necessários para criar os filhos. Com a formalização legal das uniões e a separação entre o Estado e a vida privada, é perfeitamente natural que o casamento possa ser a união entre duas pessoas, qualquer que seja o sexo. Não será um matrimónio no sentido original do termo mas, como as evidências claramente demonstram, não sai do intervalo de adaptabilidade destas normas sociais.

É perfeitamente legítimo que os católicos concebam o seu casamento como bem entenderem. Mas a sua condenação do divórcio é uma idiossincrasia religiosa que não reflecte qualquer realidade profunda acerca da natureza humana ou dos transplantes de órgãos.

1- DN, Amputação
2- Voz da Verdade, Divórcio, casamento natural e matrimónio cristão

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