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  • 21 de Fevereiro, 2015
  • Por Carlos Esperança
  • Ateísmo

A fé e a ciência

– Email enviado por

Casa do Oleiro

Se houvesse um julgamento após a nossa morte, na sequência do qual – na medida em que nos contentássemos com a personagem que nos foi dada  nesta vida e nos mostrássemos humildemente obedientes e crentes – fôssemos recompensados, vivendo alegremente  até ao fim dos tempos num refúgio/paraíso permanente que nos protegesse do sofrimento e da agitação do mundo. Era assim que seria  se o mundo tivesse sido pensado e planeado para ser justo. Era assim que seria se os que sofrem recebessem o consolo que merecem.

Assim, as sociedades que pregam a satisfação com a nossa actual passagem pela vida na expectativa de uma recompensa depois da morte  tendem a vacinar-se contra a teoria da evolução.

Além disso, o medo da morte, que, nalguns aspectos, é adaptativo na luta evolucionária pela existência, é inadaptativo na guerra. As culturas que ensinam a existência de uma outra vida de bem-aventurança para os heróis – ou mesmo para aqueles que apenas fizeram  o que lhes disseram os detentores da autoridade – podem conseguir uma vantagem  competitiva.

Deste modo, a ideia de uma parte espiritual da nossa natureza que sobrevive à morte, o conceito de uma outra vida, deve ser fácil de vender pelas religiões e pelas nações. Neste campo, não podemos esperar um cepticismo muito generalizado. As pessoas querem acreditar  nisso, ainda que os indícios sejam escassos, para não dizer nulos.

Se eu sonho que me encontrei com um progenitor ou com um filho morto, quem é capaz de me dizer que isso não aconteceu realmente?

Se tiver uma visão de mim próprio, a flutuar no espaço olhando lá para baixo, para a Terra, talvez esteja de facto a flutuar no espaço; por quem se tomam os cientistas, que nem sequer partilharam a experiência, para me dizer que tudo se passa na minha cabeça? Se a minha  religião ensina que é a palavra de Deus, inalterável e infalível, que afirma que a idade do universo é de apenas alguns milhares de anos, os cientistas só podem estar a ser ofensivos e ímpios quando afirmam que o universo existe já à alguns milhares de milhões de anos.

É irritante a ciência pretender estabelecer limites àquilo que podemos ou não alcançar. Quem disse que não podemos deslocar-nos mais  depressa que a luz? Já diziam isso acerca da velocidade do som, não é verdade? Quem nos impedirá, se tivermos instrumentos realmente  poderosos, de medir simultaneamente a posição e o movimento linear de um electrão? Se somos muito inteligentes, porque não haveremos  de construir uma máquina de movimento perpétuo, que gera mais energia do que consome e que nunca pára?

Quem se atreve a impor limites ao engenho humano?

De facto, é a natureza que o faz. De facto, nesta lista de actos “proibidos” está contido um resumo razoavelmente sistemático das leis da  natureza, das leis que regem o funcionamento do universo. É revelador que a pseudociência e a religião não reconheçam limitações na natureza. Pelo contrário, “todas as coisas são possíveis”. Prometem um orçamento de produção sem limites, por mais que os seus aderentes tenham ficado desiludidos e se tenham sentido traídos.

(Este texto foi retirado do livro de Carl Sagan “Um mundo infestado de demónios”.)