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  • 4 de Janeiro, 2013
  • Por Carlos Esperança
  • Ateísmo

DAS CHAGAS E DAS MENTIRAS

Por

David Ferreira

Ao longo da minha vida, sempre que a ocasião o propicia, tenho colocado o dedo na chaga permanentemente aberta e purulenta que debrua a bandeira de quase todas as religiões. É um acto consciente e muitas vezes solitário, que se manifesta inconscientemente, como quem anseia desaguar o excesso de águas inquinadas que a enxurrada sociocultural vai acumulando ao longo dos recantos pantanosos do subconsciente.

Por diversas vezes me questionei acerca do porquê de tal necessidade de alívio mental imediato perante o vislumbre de qualquer centelha mais perniciosa de religiosidade, mas sem necessidade, uma vez que, no fundo, sempre soube a resposta. Mas se o porquê já não me assiste, então para quê?

As religiões não são somente uma proposta ou uma visão filosófica daquilo que apreendemos como realidade, muito menos um simples e cosmológico retransmissor de entidades sobrenaturais indefinidas e indefiníveis que se apresentam, num perverso jogo multidimensional das escondidas, como últimos criadores incriados a necessitarem de constante atenção, como crianças que nunca tiveram pais, em apoplética e eterna carência afetiva.

As religiões são, sobretudo, a materialização e a implementação de uma outra forma de poder, alternativa e concorrente ao poder secular. Se o poder dos homens sobre os homens, assente tanto em pilares de bom senso como, por vezes, na falta dele, serve para regular a manutenção e a subsistência do nosso Eu físico, numa desejada e inevitável harmonia social, já o poder religioso, o de um ou vários deuses sobre os homens, conforme o delírio ou o grau de intoxicação alucinogénia, assenta nos maleáveis pilares evolucionários da moderação comportamental e da sobrevivência, como o medo do desconhecido, o sofrimento, a angústia, a necessidade de explicar fenómenos naturais poderosos para uma adaptação mais sincrética à realidade e, talvez o mais importante de todos, a percepção inequívoca da morte.

É neste limbo de percepções inefáveis e de sentimentos impetuosos, que o espectro da religiosidade estende os seus tentáculos, cheio de espiritualidade mas com muito pouca espirituosidade, com o objectivo de subjugar, regular e comandar o sempre volúvel Eu incorpóreo.

Seja com o Cristo que incessantemente se ressuscita, condenado a salvar os homens por intermédio da exibição morbígena e pornográfica da sua execução, seja com o profeta quezilento e rancoroso que não aceita um gracejo sem suar aziúme por todos os interstícios lendeosos das veneráveis barbas, os arautos do paraíso acotovelam-se diligentemente no resguardo dourado das suas bancas de feira e apregoam aos sete céus a originalidade misericordiosa que aduba os seus terrenos contrafeitos, numa competição desenfreada pela máxima acumulação de almas no mínimo de espaço-tempo possível. Vendem sonhos, compram almas. Contrabandeiam acções virtuosas, lucram indultos ansiados fervorosamente, analgésicos místicos que atenuam a dor auto-infligida que o transtorno dissociativo de personalidade provoca. Publicitam virtudes, mascaram imperfeições. Apelam à doçura, esquecem, ocultam e, por vezes, praticam a tortura. Criticam a idolatria, gerem multinacionais de arte sacra. Perfilham a ciência, praticam exorcismos. Exaltam a criação do Homem e conspurcam-na com pecados originais, vergonhosos e capitais. E tantos malabarismos que tais.

São vendedores de sonhos que reclamam o reino eterno, negociando a eternidade a troco de mentiras que se eternizam. Vendem o desejo de que a certeza, adquirida e multiplicada pelos outros voluntariamente e de uma forma viral, de reza em reza, lhes remova ilusoriamente a agonia da sua própria incerteza e lhes conceda o antídoto perfeito que domestique e tranquilize complacentemente o Mr. Hyde de sono leve que hiberna no seu convulso Dr. Jekyll.

Para quê, então, a necessidade de apalpar periodicamente essa ferida hemofílica que teima a sarar? Para estimular a produção de glóbulos brancos. E para que ela não se esqueça que não é mais que uma ferida que teima em evoluir até à imponência tranquila, natural e adulta de uma cicatriz. E, sobretudo, porque não gosto de mentiras, mesmo que o mitómano que as conceba seja um obsessivo e compulsivo portador de boa vontade.