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A confissão (excertos)

(…)

A velhota acabou por sair. Pelo tempo que demorou, não devia ter rezado mais que dezassete ave-marias, provavelmente mais dois padre-nossos, presumivelmente ainda uma salve-rainha, mas isto já são conjecturas. A senhora saiu e, já no adro, ainda se voltou para o edifício, fazendo um último sinal da cruz, em jeito de quem se despede de Deus, esquecendo-se de que Ele está em toda a parte e, portanto, não há hipótese de nos vermos livres d’Ele. Seguidamente, depositou uma moeda de vinte e cinco tostões[1]  na suja mão estendida do pedinte, enquanto murmurava seja em desconto dos meus pecados. Mesmo sem cuidar de saber a quantos e quais pecados corresponderia o desconto equivalente a 2$50[2] , a idosa afastou-se e acabou por desaparecer na esquina à esquerda, e o largo ficou quase deserto, e este quase não aparece aqui fortuitamente, o largo só estaria deserto se não houvesse ninguém nele, ora, nós sabemos que havia, pelo menos, uma pessoa, qual seja o vosso desconhecido, e digo vosso com toda a propriedade, porque eu, autor, sei perfeitamente de quem se trata, você, leitor, é que ainda não sabe, mas não se preocupe, que esse seu desconhecimento tem os minutos contados. Bastantes, certamente, mas contados mesmo assim.  Agora, olhando assim a igreja, esta parecia-lhe bem maior do que quando, ainda na “Taberna do 21”, sorvia lentamente a cerveja loira – pálida e loira, muito loira e friae o seu lábio tristíssimo sorria. Sentiu um certo temor. O calor apertava, e o nosso jovem desconhecido, porque de um jovem se tratava, digamos que ainda não tinha atingido a idade para poder ser eleito presidente da república, embora pouco faltasse, transpirava.

Decidiu-se.

Entrou.

Cá ao fundo, de costas para a porta, e para a “Taberna do 21”, o padre Cristiano lia o breviário. Soletrava, para melhor o compreender. Saboreava-o, estão a ver?

O desconhecido e, ainda por cima, forasteiro, foi-se aproximando, lentamente, até chegar junto do sacerdote:

— Padre eu quero confessar-me,

“Meu Deus, como Tu és grande”, pensou o padre – Cristiano, de seu nome – para com os botões da sotaina, erguendo os olhos para um enorme crucifixo que dominava a nave central (e única) da capela. “Eis uma ovelha tresmalhada que quer regressar ao Teu rebanho. E uma ovelha ranhosa”, concluiu depois de observar de relance o jovem, que fungava ferozmente.

— Então meu filho, que tens para me dizer? Podes confessar-te mesmo aqui, que a igreja está vazia, não há necessidade de irmos para o confessionário.

Suspendeu-se por momentos, e prosseguiu:

— Um dos requisitos para uma confissão bem-feita, já tu estás disposto a cumprir, que é a confissão de boca. Mas há outros requisitos que terás de preencher, sem os quais a confissão não terá qualquer valor. São eles o exame de consciência, a dor de coração, o propósito firme de emenda e a satisfação de obra. Queres que te explique em que consistem estes requisitos?

— Não haverá necessidade, padre. Quando andei na catequese o padre Gaudêncio explicou-me isso tudo muito explicadinho.

— Então, muito bem.

O padre Cristiano compenetrou-se por momentos, e deu início ao ritual da confissão:

— Ave Maria Puríssima…

— …Sem pecado concebida. Abençoe-me padre, porque pequei.

— Quando foi a última vez que te confessaste?

— Fiz a minha última confissão quando tinha dez anos, aquando da comunhão solene.

— Muito bem, meu filho. E quais são os teus pecados?

O confessando titubeou, visivelmente perturbado:

— Padre, eu não sei como dizer, tenho vergonha… é só um pecado, mas é um pecado tão grande…! Hesito, tergiverso, não sei se terei perdão… será que vou ter uma grande penitência?

— Meu filho – disse o padre – a penitência será sempre em função do, ou dos pecado ou pecados cometido ou cometidos. Depois, levarei em conta as circunstâncias agravantes, atenuantes e dirimentes. De qualquer modo, a indulgência é sempre possível desde que haja propósito firme de emenda e arrependimento. Deus é grande, e infinita é a Sua misericórdia.

Padre Cristiano, porém, começava a ficar em suspense. Não era costume haver tantas hesitações, nas confissões. Começou a perder a longanimidade que, diga-se em abono na verdade, nunca tinha sido muita e que ia minguando na razão directa do cumprimento dos aniversários. Que já eram muitos, diga-se de passagem, os que tinham ficado para trás e, o que é mais grave mas terá de ser dito, o padre Cristiano, quando perdia a paciência perdia, também, por efeito directo, a capacidade de cuidar da língua, adoptando expressões pouco católicas e nada cônsonas com a sua condição pastoral:

— Mas, afinal, que raio de pecado é esse?

O desconhecido parecia não saber o que fazer às mãos. O tempo escoava-se lentamente, esvaindo-se em gotas que os ponteiros do relógio da torre da direita (de quem entra, entenda-se) iam sublinhando.

— Padre, eu roubei.

A igreja pareceu ruir. O silêncio, absoluto, tornou-se completamente inaudível. No relógio da torre, o ponteiro dos minutos hesitou alguns segundos antes de se decidir avançar mais um espaço. Da “Taberna do 21” chegava um ténue mas inconfundível cheiro a pataniscas de bacalhau, enquanto o padre empalidecia, a face a tornar-se lívida, em oposição à sotaina.

— TU, meu filho, ROUBASTE?! Mas roubaste o quê?

— Um relógio.

— Um quê????

— Sim, padre, um relógio. Roubei, mas não consigo aguentar mais. Roubei um relógio, mas ele queima-me, ele pesa-me, ele alucina-me, por favor, padre tome-o, fique com ele, eu não o aguento mais na minha posse, fique com ele, peço-lhe, suplico-lhe, imploro-lhe, rogo-lhe, reitero, depreco, solicito-lhe, peço deferimento.

O padre – Cristiano, de seu nome, não sei se já tinha dito – sobressaltou-se, como o Demónio ao ver a cruz. Nunca tinha ouvido, em confissão, um pecado daqueles! Lá na pequena freguesia, ninguém roubava nada a ninguém, pelo que as confissões eram uma pasmaceira de todo o tamanho. Nunca iam além de umas facadas no matrimónio, pronto, já se sabia que a Hermínia do Isildo andava metida com o Rodrigo Farroco, a mulher deste tinha feito uma escandaleira das antigas uma das vezes que a Hermínia foi à fonte buscar água, houve puxões de cabelos e tudo, enfim, de vez em quando lá havia umas sacholadas por causa da rega, de outra vez era o Libório que insultava o Germano porque a vaca da mulher ia pastar no lameiro dele, isto é, do Libório, o Germano bem argumentava que a vaca não lhe pertencia, pertencia à mulher, porque estavam casados com separação de bens, Eu não tenho nada a ver com o que a vaca da minha mulher faz, mas nada adiantava, Tu é que tens de ter mão na vaca da tua mulher, Eu?! Era o que me faltava, eu tenho trabalho que chegue para cuidar do meu boi, a partir dali era tudo insultos, filho desta, filho daquela, o padre Cristiano nunca percebeu lá muito bem o que é que o boi do Germano tinha a ver com aquilo tudo, o boi do Germano era manso, não se metia com ninguém nem incomodava, mesmo com os cornos do tamanho que tinha, já que era de raça barrosã, enfim, tricas sem grande importância, mas que davam sabor à vida e animação ao pequeno burgo, e que eram desfiadas no confessionário como se de contas de um rosário se tratasse, era o que ia valendo para quebrar o quotidiano medíocre da freguesia, pouco maior que uma pequena aldeia, e que ia permitindo ao bom padre Cristiano conhecer o ambiente da freguesia e ir controlando os fregueses. Agora, roubar um relógio?! Nunca se tinha ouvido tal desconchavo.

Padre Celestino olhou mais atentamente para o jovem

— Tu não és daqui, pois não?

— Não, padre. Sou dali, de Ilhós da Veiga.

— E porque vieste confessar-te aqui? Não achas estranho? Ou dar-se-á o caso de o meu colega já não ter mais absolvições para te dar? Sim, porque tudo tem um limite e as absolvições não são excepção, se um paroquiano passa a vida a pecar, é mais que certo que, a partir de certa altura, já não há absolvição possível. Faz-nos falta um cadastro a nível nacional, para ver quem são os reincidentes…

— Não, padre, não se trata de nada disso. Eu é que não tive coragem… Ali em Ilhós da Veiga toda a gente se conhece, e não queria que as pessoas começassem a desprezar-me e a olhar para mim com desconfiança…

— Tu não estás bom da cabeça, pois não? Já ouviste falar no segredo da confissão?

— Já, padre, já ouvi; mas também sei que a Henriqueta, a filha do Ambrósio, fez um desmancho, e ela não o contou a mais ninguém, mas já toda a gente sabe…

— Bom, bom, bom – atalhou o padre. – Isso não é para aqui chamado. Onde é que tens o relógio?

— Tenho-o aqui, padre. Fique com ele, por favor. Olhe que é a maneira de me sentir melhor. Quer vê-lo?

— Nem penses! Nem quero olhar para isso. Esse objecto é fruto do pecado, nem o quero ver.

— Mas… porque é que o padre não fica com ele?

— Nem penses! Nunca! Que diabo… Ia agora ficar com o relógio? E ir de cana[3]  como recepta?[4]  És besta, ou fazes-te?

Subitamente, apercebeu-se de que a linguagem que estava a utilizar não era a mais correcta. Parou por moimentos, respirou fundo para se acalmar e prosseguiu:

— Tens mas é que o devolver à vítima. Isso sim, é prova de arrependimento – prosseguiu, numa linguagem já mais católica. – Conheces a pessoa, ao menos?

— Sim padre. Conheço.

— Óptimo! Então, livra-te desse pecado. Devolve o relógio imediatamente!

— Desculpe, padre, não sei se conseguirei… Pegue no relógio, padre, fique o senhor com ele, que certamente terá meios de o fazer chegar às mãos do legítimo dono. Estou certo de que durante a homilia, se disser que foi encontrado um relógio alguém se há-de acusar…

— Meu filho, tem paciência, mas não posso aceitar. És tu quem terá de o devolver ao dono, pois só assim mostrarás a Nosso Senhor o teu arrependimento, aquilo que, na confissão, se chama dor de coração. Sem essa dor de coração, não há absolvição possível, meu filho.

— É que há um problema, padre, esquecia-me de lhe dizer: eu já tentei, mais do que uma vez, devolver o relógio ao dono.

— Ah! Graças a Deus! E o que foi que o dono disse?

— Pois, o dono disse que não queria o relógio. Não aceitou.

— Não aceitou? Não aceitou? Mas como não aceitou? — Custava-lhe a aceitar a explicação. Hesitou, algo aturdido: como é que era possível?

— Espera aí: tu estás a tentar dizer-me que furtaste o relógio, tentaste devolvê-lo ao dono, e ele não aceitou? E queres que acredite nisso?

— Padre, vai ter de acreditar. Que Deus me fulmine já com um raio, se estou a mentir!

Deus não fulminou o anónimo confessando. Aliás, no céu, que se mantinha límpido e esplendoroso, nem sequer se vislumbrava nuvem, miserável que fosse, donde pudesse vir raio que partisse o pecador, pelo que só se pode concluir que estava a falar verdade. Conclusão a que também o padre Cristiano chegou sem grande esforço:

— Bom, isso é tudo muito estranho, mas…Se não aceitou, não há pecado… Ora vejamos: tu gamaste  o relógio; tentaste devolvê-lo e o gajo não aceitou. Foi? – interpelou o sacerdote numa linguagem mais do que discutível, considerando a sua posição pastoral.

— Foi, padre. Já lhe jurei que sim, e volto a jurar, se for preciso.

— Sendo assim, é mais fácil dar-te a absolvição. Se o lesado não quis o relógio de volta, significa, só, que se trata de uma alma nobre. Perante isso, Deus Nosso Senhor só tem uma coisa a fazer, que é perdoar-te também.

–…E posso ficar com o relógio?!

— Sendo assim, podes. Não vejo qualquer problema. Agora, repete comigo: Senhor Jesus, Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça da Espírito Santo; purifica-me de todos os meus pecados e faz de mim um homem novo. Amém.

O jovem repetiu a ladainha e o padre deu por finda a confissão:

— O Senhor perdoou os teus pecados. Vai em paz – ao mesmo tempo que traçava, no ar, o sinal da cruz.

O desconhecido levantou-se lentamente. Esfregou os joelhos doridos e beijou a mão do sacerdote.

— Deus o abençoe, padre.

Molhou os dedos na pia de água benta e saiu. Sem mais um pio.

O silêncio voltou ao templo, o tempo foi-se passando.

O santo padre – “santo”, era considerado pelos paroquianos – que tinha mergulhado novamente no breviário, breve se alheou do mundo circundante. O caso do jovem desconhecido foi remetido para o arquivo dos casos encerrados, mesmo sem despacho da hierarquia. O silêncio absoluto regressou à Casa de Deus.

Ouviu que os sinos da igreja tocavam às Trindades. O escuro da noite já ameaçava cair, a “Taberna do 21”, religiosamente começava a animar-se, como era costume todos os dias. Que horas seriam, ao certo? Meteu a mão ao bolso da sotaina, buscando o relógio… Não estava lá! Nem no outro bolso! Nem no outro! Nem no outro! Nem no…

— Valha-me Deus! Mas onde é que eu deixei o relógio? – perguntou aos botões da sotaina que, naturalmente, se mantiveram mudos. Aliás, nem outra coisa seria de esperar.

Entrou em ebulição mental. Diria, talvez, em erupção… Temeu começar a comportar-se como uma truta epiléptica e elevou aos céus uma silenciosa oração, pedindo ajuda divina para manter a calma. Sem grandes resultados, diga-se de passagem, mas isso nem é surpreendente. Deus é para rezar, mas quem quiser acalmar-se toma “xanax”, que é calmante e, além disso, ainda é palíndromo, coisa de que nem todos os medicamentos de podem gabar. Deus não é medicamento, aliás nem sequer é palíndromo, nada de blasfémias. Tentou reconstituir os passos dados desde a última vez que viu o relógio, assim a modos de quem vê um filme pela segunda vez. Já tinha experimentado essa técnica por várias vezes, a conselho da Alzira, a velha governanta, e sempre com bons resultados. A idade não perdoa, já naquela altura não perdoava, e o padre Cristiano era useiro e vezeiro em esquecer-se dos objectos o que, aliás, nem fazia de propósito, mas coisas há que o comum dos mortais não consegue controlar inteiramente, e a mente é uma delas. “Vamos a ver: a última vez quem vi o relógio foi antes de almoçar. Ou teria sido já depois, para ver se já eram horas do terço? Mas, a que propósito é que eu iria tirar o relógio do bolso da batina, se ele até estava preso com a corrente de ouro? Ná… devo tê-lo deixado em qualquer sítio… Mas onde, valha-me Deus, onde?

 

In “O Retrato de Judite” – José Carlos Moreira, Casa das Letras, 2005


[1] Moeda existente à época valendo dois escudos e cinquenta centavos. Equivaleria, aproximadamente, aos actuais €001,5.

[2] Era assim que se escrevia, em números; em letras, podia ser “dois escudos e cinquenta” vinte e cinco tostões”, ou “cinco coroas”.

[3] O mesmo que “ir dentro”,” ir de saco”. Ir preso.

 

[4] O mesmo que “intruja”, “invejoso”. Receptador.

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