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Treta da semana: Einstein dixit.

Segundo José Reis Chaves, espiritista brasileiro, «Os materialistas do passado incomodavam-se com a Igreja. Os de hoje se preocupam mais é com o espiritismo, por ser ele uma religião científica. […] Não é, pois, por acaso, que têm surgido muitos ateus fanáticos contra a doutrina codificada por Kardec, “o bom senso encarnado”.»(1) Pessoalmente, não me preocupo muito com o espiritismo, o Kardec ou a cor do seu bom senso. Preocupam-me mais coisas como o Estado português ter de pedir autorização ao Vaticano para mudar feriados, o negócio da religião não pagar impostos ou a forma como se ensina religiões nas escolas públicas. Se a «médium psicógrafa dra. Marlene Saes, de São Paulo (SP)» publica o «seu novo livro “Nas Águas do Mar da Vida”, pelo espírito Luizinho» e alguém o compra, pois que lhe faça bom proveito. Quanto à alegação de que o espiritismo é uma “religião científica”, concordo parcialmente. Dizer que «Para a física quântica, as coisas invisíveis são mais importantes do que as visíveis. E o espírito é invisível» ou «o espírito do médium tem que vibrar na sintonia da do espírito comunicante» não tem nada de científico, mas para religião basta.

O que me interessa mais no texto do José Reis não é a comunicação «de períspirito para períspirito», a aura, a quinta-essência ou o corpo bioplasmático. É esta frase de Einstein, tantas vezes mal compreendida quantas é usada em defesa da tretologia: «A religião sem ciência é cega, e a ciência sem religião é aleijada». Esta frase é frequentemente invocada como querendo dizer que a ciência complementa, e é complementada por, uma crença esperançosa no sobrenatural, uma devoção a um suposto criador e essas superstições envolvendo deuses, espíritos e vida depois da morte que associamos ao termo “religião”. No entanto, não era nada disto que Einstein queria dizer. No artigo de onde citam apenas aquela frase e, normalmente, sem referir a origem, Einstein explica bem que sentido estava a dar ao termo.

«em vez de perguntar o que é religião eu preferiria perguntar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dê a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser alguém que, de acordo com as suas capacidades, se tenha libertado dos grilhões dos seus desejos egoístas e se preocupe com pensamentos, sentimentos e aspirações aos quais se prende pelo seu valor sobrepessoal. Parece-me que o que é importante é a força deste conteúdo sobrepessoal e a profundidade da convicção acerca do seu significado avassalador, independentemente de haver alguma tentativa de unir este conteúdo a um Ser Divino, pois de outro modo não seria possível contar Buda e Espinosa como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de que não tem dúvidas acerca do significado e elevação desses objectos e propósitos que vão além da sua pessoa e não requerem nem admitem um fundamento racional. Existem com a mesma necessidade e factualidade da própria pessoa. Neste sentido, a religião é o esforço milenar da humanidade em se tornar claramente e completamente consciente dos seus valores e propósitos, e de constantemente os fortalecer e estender os seus efeitos.»(2)

Ou seja, neste sentido, “religião” refere um esforço de se guiar por algum ideal que transcenda interesses pessoais, mas sem implicar nada acerca de deuses, espíritos ou crenças no sobrenatural. Um ateu pode perfeitamente ser religioso no sentido que Einstein dá ao termo, e o exemplo que Einsten dá é que a «ciência só pode ser criada por aqueles que estejam completamente imbuídos de aspiração para a verdade e a compreensão». É isto que Einstein quer dizer com essa frase tão célebre e tão deturpada. A devoção sem conhecimento objectivo é cega e a investigação sem devoção à verdade é paralítica.

Isto não tem nada que ver com as crenças que normalmente chamamos religiosas nem com o espiritismo do José Reis Chaves, superstições acerca das quais Einstein também foi bastante claro. Por exemplo, nesta carta ao filósofo Erik Gutkind:

«A palavra Deus não é para mim mais do que a expressão e o produto da fraqueza humana, a Bíblia uma colecção de lendas honráveis mas puramente primitivas, lendas que, no entanto, são bastante infantis. Nenhuma interpretação, por mais subtil que seja pode (para mim) alterar isto… Para mim, a religião judaica é, como todas as outras religiões, uma encarnação da superstição mais infantil.»(3)

Os argumentos de autoridade são muitas vezes falaciosos e quase sempre fracos. Mas penso que há boas razões para concordar com Einstein para além do simples facto de se tratar de Einstein. E, seja como for, invocar Einstein como autoridade para apoiar doutrinas espíritas e tretas afins é um tiro no pé, seja no da aura, no bioplasmático ou no do períspirito.

1- Blog de Espiritismo, José Reis Chaves – ‘Abalado está o ateísmo’
2- Sacred-Texts, Science and Religion II, Science, Philosophy and Religion, A Symposium, 1941.
3- Letters of Note, The word God is the product of human weakness.

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