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Treta da semana: telepadres

No Encontro Nacional da Pastoral da Saúde, em Fátima, a ministra da saúde disse que «é preciso garantir a assistência espiritual nos tratamentos de saúde prestados em casa dos doentes»(1). O plano parece ser expandir o contingente eclesiástico que, pago pelo Estado, já há tempos prega nos hospitais públicos. Agora querem fundos adicionais para prestar este serviço ao domicílio.

O comunicado da AAP (2) aponta várias objecções a este plano da ministra Ana Jorge. Não é preciso assegurar nada disto porque religiões que venham bater à porta não é coisa que nos falte. Além disso, a assistência religiosa é uma vocação dos sacerdotes e faz parte da vivência do crente na sua comunidade. Não é nem terapia nem serviço para prestar contra reembolso pela ADSE. Finalmente, é um desperdício. Os ordenados que os serviços de saúde pagam aos padres dariam para ajudar muita gente a comprar os medicamentos de que precisam e que não conseguem pagar. A ministra deve garantir primeiro os medicamentos, e só depois se preocupar com o tal espírito que muitos dizem ter mas que ninguém vê.

Mas aqui, falando só por mim, gostava de acrescentar uma objecção importante. A assistência “espiritual” é uma mentira. Não é apenas uma questão das pessoas gostarem de ter lá o representante da sua religião. Não é assistência psicológica ou mero consolo emocional. Em geral, as pessoas sentem necessidade deste apoio porque as convenceram de que aquilo é verdade. Julgam, conforme lhes foi ensinado, que o padre, o rabino, o imã, o monge, ou o que lhes tenha calhado, sabe mesmo o que os deuses querem, tem poderes mágicos para perdoar pecados, dá impulso extra às orações e é mediador indispensável na negociação com as divindades.

Isto não é o mesmo que gostar de música clássica ou de ficção científica, ao contrário do que sugerem alguns que argumentam em favor de subsidiar os padres porque também se subsidia artes e espectáculos. A diferença é que gostar deste cantor ou daquela actriz não implica acreditar em mentiras. Não é o mesmo que acreditar em Shiva, ou que Maomé falava com o criador do universo ou que só a fé em Jesus nos pode salvar.

Este problema afecta toda a sociedade. Não temos leis no código penal punindo quem diga mal do Benfica ou da Madonna, mas “vilipendiar” religiões pode dar prisão. Não se deve troçar da religião das pessoas, segundo dizem. Só da sua afiliação política, crença na astrologia, convicção de que somos visitados por extraterrestres ou tudo o resto que não seja religioso. Alguns crentes religiosos têm a honestidade de afirmar que só a religião deles é verdadeira. Esses vemos logo que são presunçosos e prepotentes. Outros preferem dizer, condescendentes, que todas as religiões são igualmente válidas, cada uma à sua maneira. Só que não tão igualmente válidas que aceitem que os filhos escolham uma diferente da sua.

Isto tudo porque a experiência religiosa depende sempre de assumir como verdadeiros, e em exclusivo, os dogmas de uma religião específica. Ninguém é religioso genérico. É sempre de uma marca qualquer. A “assistência espiritual” é um eufemismo enganador para uma diversidade conflituosa de “assistências”: católicas, evangélicas, judaicas, muçulmanas e assim por diante, todas afirmando-se como a única virtuosa e verdadeira. O apoio estatal só incentiva esta divisão nefasta. Quer façam como agora, subsidiando apenas os católicos em detrimento dos outros, quer passem a contratar ministradores de tudo o que é religião, acabam por pagar a cada um para dizer que só ele tem razão e que os outros estão enganados.

Para mais, é pura superstição. As crenças acerca do Buda, de Maomé, de Moisés, de Jesus, de Xenu ou das placas de Mórmon são tão infundadas como o medo do dia 13 ou a confiança em amuletos. Não digo que o Estado deva reprimir estas crenças. Se alguém achar que a figa de ouro ajuda a curar uma infecção, que atribui a um mau olhado em vez de micróbios, os serviços de saúde devem limitar-se a dar a medicação e deixar a pessoa acreditar no que quiser. Mas o Estado também não deve incentivar estas parvoíces. Será um mau exemplo a ministra garantir que todos os pacientes tenham acesso gratuito a figas de ouro.

Uma objecção importante a esta medida é ser asneira incentivar estas tretas que tanto dividem qualquer sociedade. O que está em causa aqui não são apenas gostos pessoais ou sequer a fé de cada um, já de si fracas desculpas para gastar o parco orçamento do Serviço Nacional de Saúde. A crença religiosa é mais do que meramente pessoal. Quem adere a uma religião compromete-se não só a aceitar como verdade hipóteses sem qualquer fundamento, mas também a condenar como imoral a sua rejeição. Por exemplo, que o menino Jesus criou todo o universo e que quem não acreditar nisso merece uma eternidade no inferno. Não é racional investir os nossos impostos na propagação destas ideias.

1- Ecclesia, Ministra da Saúde quer assistência religiosa em casa dos doentes
2- Diário Ateísta, Serviço Nacional Religioso (SNR) Comunicado da AAP

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